O acordo
Passava das 6 horas da tarde, quando decidi que não esperaria mais por André.
Eu tinha uma vida e não tinha como ficar esperando a boa vontade dele para dizer se podia ou não voltar a viver.
- Pra mim já deu - digo levantando do sofá.
Rota para de assistir a novela e me olha.
- Quê? - diz baixo.
- Vou trabalhar.
- Bruna.
Dou alguns passos até a porta, parando.
- Não vou mais ficar esperando pelo André. Ele sumiu o dia inteiro, nem se deu o trabalho de atender o celular - digo irritada, saindo da casa.
Precisei andar 20 minutos para chegar na casa de André. Por sorte, o portão e a porta da frente estava destrancada.
Não havia nenhum sinal de André por ali, muito menos que a casa havia sido invadida. Tudo parecia estar em seu devido lugar, inclusive minhas coisas.
Um banho rápido depois e vestida em roupas limpas, já estava pronta para uma noite agitada de trabalho.
No ponto de ônibus, não consigo não olhar para os lados, ainda impactada com as palavras de Átila. Mas só foi o ônibus chegar, que me senti um pouco segura.
Entretanto, minha sensação de paz sumiu, dando lugar a apreensão, quando via o ônibus parar em todo ponto e alguém hesitava alguns segundos para subir. Começava a imaginar que alguém poderia entrar de repente atirando e matando todos que estivessem pela frente, inclusive eu, que deveria ser o alvo ali.
Engulo em seco, percebendo que estava suando, apenas quando passei a mão sem pensar pelo rosto.
Minutos depois, desço do ônibus e ando em direção da boate, cumprimentando alguns colegas assim que me aproximo do local.
Rodrigo já estava no bar, organizando algumas taças.
- Chegou cedo - Comento, me aproximando.
- Oi - Ele dá um meio sorriso, parando o que estava fazendo - Como você está?
- Eu? - Faço uma pausa, lembrando da quase desculpa esfarrapada que usei para não ir trabalhar - Melhorando.
- Tem certeza? Ainda dá tempo de ir na farmácia.
- Tô bem - digo com a voz firme - Sério. Pronta para trabalhar.
As horas seguintes pareciam tudo dentro da normalidade. As pessoas chegavam aos poucos, pediam seus drinks, dançavam, sorriam.
Era bom ver a felicidade das pessoas e melhor ainda, estar num ambiente que emanava bem estar.
Mesmo em meio a tantas pessoas, sempre alguém parecia não se encaixar. Pessoas que íam a boate, se vestiam para ir numa boate mas, sempre havia alguns que não íam vestidos para uma boate.
Foi o caso de dois homens.
Mesmo ocupada com os drinks e atendendo pessoas, os notei em meio as pessoas. Se destacavam facilmente com roupas um pouco simples para a ocasião.
Mas era algo que costumava acontecer, então voltei para meu trabalho, entregando o drink que havia acabado de fazer.
Tudo em seguida, aconteceu muito rápido. Tempo necessário de me virar.
A primeira coisa que senti foi estilhaços de vidro, para em seguida, ouvir os tiros.
Me abaixo instintivamente, indo para em baixo do balcão, lembrando que fazia isso frequentemente quando era criança. André costumava ficar bem perto de mim, tão perto que sentia sua respiração e seu coração batendo.
Puxo minhas pernas para junto do meu corpo, me encolhendo o máximo que conseguia.
Só após alguns segundos, que me dou conta que Rodrigo não estava ali comigo, isso me faz abrir os olhos e o procurar, só então o notando meio que sentado no chão com a mão no ombro e a expressão assustada.
Os tiros continuam, até que cessam de repente, do mesmo modo que começaram.
Naquele momento, todos meus sentidos estavam mais aguçados do que o normal. Podia ouvi-los andar por cima dos cacos de vidros e conversar baixo entre eles.
Procuravam alguma coisa e eu tinha a sensação que era eu.
Estavam se aproximando do balcão, quando os tiros recomeçaram, mas não vinham deles e sim da direção oposta.
Me encolho novamente, até cessarem.
Já estava prestes a aceitar que iria morrer, ao ouvir mais passos se aproximando e contornando o balcão.
Rodrigo arregala os olhos, se afastando ainda sentado. Já estava vendo ele sendo morto e sem antes de acontecer, já estava apavorada.
Mas Rodrigo não morre e invés de vê-lo estirado na minha frente, vejo Átila se agachar em minha frente segurando uma arma.
Respiro pela boca sentindo meu corpo tremer, meus olhos neste instante estavam cheios d’água.
- Cadê meu irmão? - pergunto com a voz trêmula.
- Vem, amor - Ele me estende a mão e mesmo sendo estranho ele me chamar de amor, seguro sua mão.
Minhas pernas estavam igual a gelatina, claramente não conseguia me manter em pé sozinha. Encosto no balcão, sentindo meu corpo trêmulo.
Rodrigo levanta ainda com a mão contra o ombro, com o rosto suado.
- Tá machucada? - Átila pergunta.
Olho para meu corpo, não encontrando nenhum ferimento.
-... não - sussurro. Ergo a cabeça, só então me virando e notando o caos que estava ali.
Havia pessoas caídas no chão, não dava para saber se estavam vivas ou mortas. Havia também sangue e objetos, móveis quebrados.
- A gente tem que ir embora.
- Liga pra uma ambulância, tem gente ferida - murmuro.
- Faço isso quando a gente sair daqui - Ele segura meu braço, me puxando para longe do balcão.
- Não. Espera. Bruna - Rodrigo chama, tentando vir até nós.
- Eu não posso deixar ele aqui desse jeito - digo olhando para Átila, não conseguindo fazê-lo parar de andar.
- Ele vai se virar.
- Pelo amor de Deus! - digo irritada, tentando me soltar.
- Pelo amor de Deus, digo eu - A voz dele também emana irritação - A polícia pode tá chegando e duvido que vai conseguir explicar o que aconteceu aqui.
- Aqui tem câmera de segurança - Ergo o queixo.
- Mais um motivo pra gente dá o fora daqui - Ele continua me puxando e antes de sair, por cima do ombro, encaro Rodrigo completamente confuso.
Havia meia dúzia de homens do lado de fora que entraram em carros, assim que nos viram. Átila entra numa Land Rover, dando partida bruscamente.
- Não era pra você tá aqui - diz ele com os olhos fixos na empresa - Pensei que ficaria na minha casa.
- E eu pensei que vocês íam resolver - Forço um sorriso, olhando para ele - Resolveram?
- Não.
Inspiro profundamente.
- Acho que já deu pra perceber isso - digo baixo - Ainda não me disse aonde tá meu irmão.
- Não sei do André.
- Como não? - Olho para ele novamente - Ele trabalha pra você, até onde eu sei.
- Mas não fica comigo 24 h por dia e achei que ele resolveria o problema como tinha falado ontem.
Encosto minha cabeça no volante.
- Pelo menos sabe se ele está vivo?
- Deve tá.
Aquilo não era uma certeza. André poderia estar morto naquele momento e poderíamos não saber.
- Ele tem que resolver isso. Tenho que voltar a trabalhar, se é que a boate ainda vai funcionar.
- Ainda tem aquela opção.
Viro a cabeça para Átila.
- Que ainda não entendi muito bem.
- Não é muito difícil de entender - Ele me olha - Você só precisa ficar no lugar dela - diz com a voz com uma pintada de tristeza.
- No lugar da sua... - Hesito - noiva?
Ele respira fundo, assentindo.
Por um momento, me esqueci que Átila havia perdido a noiva, vítima de uma emboscada há dois dias.
Mas o fato de ele querer que eu ficasse no lugar da noiva falecida dele, era mais do que estranho.
- Me desculpa o que vou perguntar, mas... por quê?
Ele aperta levemente o volante.
- Íamos nos casar semana que vem, meu relacionamento com ela, acabou num acordo. Uma aliança entre Heliópolis e Paraisópolis, onde iríamos nos fortalecer.
- Ela é filha do cara que tá comandando Paraisópolis?
- É.Isso aí.
Com certeza isso deixava Átila numa posição complicada. Duvidava que os pais da noiva dele, o pai em questão, acreditaria que foi uma emboscada.
- Sinto muito - murmuro.
- Mas você pode impedir que uma guerra comece e que me matem.
Eu podia...
Solto o ar dos pulmões, inspirando profundamente, ponderando tudo.
Precisava da minha vida de volta, só que para isso acontecer, precisava não morrer.
Não me sobrava outra alternativa além daquela.
- Quanto tempo vou precisar fingir?
- Posso responder isso depois?
- Tá - Passo a mão pelo meu rosto - André não vai gostar disso.
- Você tá se salvando.
Sim, eu estava. Isto deixava claro que não precisava de um homem para tomar decisões por mim, principalmente quando se tratava da minha vida.
Quando percebo já estou novamente na casa de Átila, entrando no pátio. André aparece de repente com Rita ao seu lado e pela sua cara, não estava nada bem.
Desço do carro, precisando de alguns instantes para começar a andar.
- Por que você foi trabalhar?
- Dependo de mim mesma, não posso me dar o luxo de não trabalhar.
- Tava resolvendo a situação.
- Percebi - Dou de ombros - Mas não precisa mais, já resolvi - Olho para Átila.
André olha para Átila e depois para mim.
- Você não tá pensando em...?
- É. É isso mesmo.
- Ficou louca?!
- Tô fazendo o que sempre fiz desde que me entendo por gente.
- Então agora é assim?
- É.
- Vai resolver as coisas do seu jeito?
- Exatamente.
Ele tenciona o maxilar.
- Que se foda - diz de repente, passando por mim.
- É assim? - Me viro para ele.
Ele para, me olhando.
- Você já resolveu, não já? - diz irritado - Já não decidiu que vai entrar de cabeça no tráfico?
- Não vou entrar de cabeça no tráfico.
- Você vai ficar no lugar de uma pessoa que viveu nesse meio. Tá achando mesmo que não vai entrar?
- Eles quase me mataram hoje! - grito.
Por um momento, ele apenas absolve, antes de falar novamente.
- Se estivesse aqui com a Rita, não teriam tentado.
Cruzo os braços.
- Não tem como conversar com você.
- E tem como conversar com você, Bruna? Você nunca pensa nas consequências.
- Já estou na lama, se não percebeu! - rebato.
- Estava apenas suja, agora está se enfiando sozinha!
- Gente - diz Rita calma.
- Já que você tinha tudo sob o controle, me diz o que você resolveu.
Ele engole em seco.
- Tô quase descobrindo quem tá por trás disso.
- Quase - repito - Essa palavra já faz parte de você.
- Já que tá achando ruim, faz melhor.
Dou de ombros.
- Já fiz.
Ele estreita os olhos, balançando a cabeça de um lado para o outro, apontando por fim o dedo indicador na minha direção.
- Depois não diga que não avisei - Ele continua a andar.
- Nós dois sabia o que acontecia com quem entrava no tráfico - digo elevando a voz - Você sabia e mesmo você entrou. Tá aí, arriscando sua vida todos os dias. Eu só quero me proteger, ter minha vida de volta, André.
Ele não se vira, muito menos diz nada, simplesmente voltar a andar como se nada fosse nada.
Era o jeito que ele tinha para fugir dos problemas. Das situações que não tinham seu controle e uma parte minha entendia, já a outra, o achava covarde demais e isso me dava ainda mais raiva.
Átila coloca as mãos nos bolsos da calça, erguendo as sobrancelhas.
- Ele não falou sério. Só tá com raiva.
- Você não conhece meu irmão.
- Mais eu conheço e acho que ele só tá com raiva mesmo - diz Rita, afagando minhas costas antes de seguir o marido.
André não era do tipo que demonstrava seus sentimentos. Era difícil saber quando ele estava com raiva, triste e alegre. Simplesmente, ele sempre estava com a mesma expressão que não denunciava absolutamente nada.
Não sabia se isso era preocupante ou não. Só sabia que as vezes não sabia lidar com ele e isto ao mesmo tempo que me frustrava, me irritava.
Me afasto de Átila, pegando meu celular no bolso de trás da calça. Ligo para o celular de Rodrigo que chama até cair na caixa-postal.
Se ele não quisesse falar comigo depois daquele dia, entenderia. Havia deixado ele ferido para trás, precisando de ajuda, de mim e ido embora.
Se fosse eu no lugar dele, não queria vê-lo nunca mais. Mas dada a circunstância, se fosse ele, entenderia. Só que não sabia se ele me entenderia.
Solto o ar dos pulmões.
- Dá um tempo pra ele - diz Átila - Ele vai esfriar a cabeça.
- Não tô ligando pro meu irmão - Me viro para ele, guardando o celular no bolso - Tava ligando pro meu namorado, que deixei ferido na boate e que você não quis ajudar.
- Tá me culpando? - Ele pergunta calmamente.
Estreito os olhos, sem saber se ele tinha ou não alguma coisa haver com tudo de ruim que estava acontecendo nos últimos dois dias.
- Não.
Ele suspira.
- Tá tarde. Bora entrar - Sem me esperar, ele se vira, entrando na casa.
Observo ele se afastar, não conseguindo enxergar um bandido perigoso ali. Pelo menos, ele não parecia perigoso, pelo contrário, poderia estar errada mas, para descobrir, precisava deixar acontecer.
Olho para o céu que dava aos poucos sinais que iria amanhecer, acabando por ceder. Estava exausta e a única coisa que eu poderia fazer naquele momento, era dormir e tentar esquecer de todo aquele caos.
