O Acidente
Tia Rose é o oposto da minha mãe. Séria, calada, tímida. Enquanto a irmã se casou cedo, aos vinte e dois anos, minha tia nunca se casou. No entanto, teve um filho de um namorado da adolescência, meu primo Nathan, que tem quase trinta anos agora e vive com a esposa em algum lugar no Canadá. Ela quase nunca fala sobre ele, mas sei que costumam trocar e-mails.
Não dá para acreditar que meu pai achou mesmo que a tia Rose poderia me presentear com pérolas de sabedoria materna. Prova disso é que nós mal trocamos algumas palavras desde que eu cheguei! A maior parte das vezes para me dar conselhos inúteis.
Depois de uma semana em sua casa, eu já estou pronta para ligar para o meu pai e implorar. Mas duvido que isso funcionaria. Apesar de amoroso, ele também é bem cabeça dura e, se acha que com isso vai me ensinar alguma lição, nenhum ato de histeria fará com que mude de ideia. Pelo contrário, só irá dar razão a ele.
A única forma de sair dessa e recuperar minha vida é arrumando um emprego. Então dia e noite eu sento no sofá, com o jornal de classificados em uma das mãos e uma caneta vermelha na outra, circulando qualquer oferta que pareça menos exigente. Mas toda vez que ligo para alguma delas ou compareço em alguma entrevista, tudo o que recebo é uma dispensa educada. Pelo que parece, até mesmo para atender telefones ou servir mesas é preciso ter alguma experiência.
Tia Rose não se cansa de dizer que eu posso continuar com ela pelo tempo que precisar. Isso me incomoda. Odeio que ela banque a alma caridosa quando, tantas vezes, presenciei brigas terríveis suas com a minha mãe. Mesmo vendo a irmã doente, e até mesmo no leito de morte, ela nunca se cansou de distribuir arrogância e presunção em forma de comentários cruéis.
Por alguma razão, as filhas do Sr Lancaster não saem da minha cabeça. Aqueles rostinhos ficaram gravados na minha memória. Nunca tive uma ligação especial com nenhuma criança, mas confesso que as duas pestinhas mexeram comigo. O que será que o pai faz e por que precisa de uma babá em horário integral, mesmo tendo uma governanta? Provavelmente é um daqueles ricaços que pensa que o fato de colocar duas crianças no mundo não implica em ter responsabilidade sobre elas.
Esse pensamento me enche de tristeza. Apesar de terem uma a outra e, com certeza, um monte de empregados, viver em uma mansão tão grande com pai ausente deve ser solitário. Coitadinhas.
São dez da manhã. Eu levanto do sofá, incapaz de ficar ali mais um minuto, remoendo minha incapacidade de conseguir um emprego. Tomo um banho, troco de roupa e aviso a tia Rose que vou atrás de uma vaga de camareira em um hotel do outro lado da cidade. Ela se oferece para preparar um lanche, mas eu pego apenas uma maçã na cozinha e, sem dar muita bola para ela, saio de casa me sentindo muito determinada.
Tenho que pegar um ônibus, porque sobre uma coisa eu não menti. Estou indo mesmo para o outro lado da cidade. Só que não pretendo ir atrás de trabalho nenhum dessa vez.
Sem dinheiro para o táxi, começo a sentir falta do meu precioso carrinho. Que saudade... meu pai está certo. Eu não tenho mesmo juízo. Como fui me colocar em uma situação como essa? Só de pensar no quanto me arrisquei...
Suspiro, a cabeça encostada na janela do ônibus. Culpa e arrependimento me perseguem até que eu chego ao bairro luxuoso da família Lancaster, já perto da hora do almoço.
Meu estômago ronca. Se eu fosse menos orgulhosa teria aceitado o lanchinho que a tia Rose ofereceu. Mas não. Melhor assim. Prefiro evitar ficar devendo ainda mais favores a ela. Quando voltar, eu mesma posso preparar alguma coisa para comer. Não devo demorar muito de qualquer forma. Isso se Abigail me permitir ver as crianças e se elas quiserem também me ver.
Quando chego na esquina da rua, tenho uma surpresa e tanto. As duas garotinhas estão na calçada do outro lado. Elas descem de um carro chique, em seus uniformes escolares, blusa branca de algodão e saia cor de vinho. Estão lindas, tão perfeitinhas! Alinhadas e bem penteadas, inclusive, nem parecem as monstrinhas bagunceiras do outro dia.
Sorrio ao lembrar do que aprontaram comigo e de como devolvi na mesma moeda.
Durante a longa viagem, fiquei imaginando como seria revê-las, que tipo de reação teriam ao descobrir que eu havia atravessado a cidade apenas para encontrá-las.
A pequena é a primeira a notar minha presença. Quando nossos olhares se cruzam, ela sorri com entusiasmo acenando na minha direção como se fôssemos velhas amigas e não duas quase estranhas. Sua espontaneidade mexe comigo e me faz sorrir de volta. Eu aceno também. Sentindo-me um pouco boba, faço uma careta para ela, que dá uma risadinha.
Mas então, algo inesperado acontece e rompe a bolha de alegria em que nos encontramos. A pequena solta a mão da irmã mais velha e dispara na minha direção como um foguete. É tudo tão rápido, tão de repente, que eu só consigo assistir, paralisada.
Ela atravessa a rua como um raio. Meu Deus!
O ronco de uma moto quebra o silêncio e o meu coração ameaça sair pela boca. Vejo o motorista surgir de repente, capacete vermelho e jaqueta de couro preta. É como um filme de terror, onde quero fechar os olhos, mas simplesmente não posso.
A menininha atravessa na frente do veículo e o meu estômago se contrai. Sinto um gosto horrível na boca. Quero gritar, mas minha voz ficou presa na garganta.
Não sei o que acontece comigo, nem por qual motivo eu faço o que faço. Mas corro na direção da rua, tão rápido que é como se meus pés nem tocassem o chão. Com o coração martelando nas costelas e o sangue zumbindo nos ouvidos, eu me atiro sobre a menininha sem pensar duas vezes, empurrando-a para o chão na direção da calçada.
A moto bate contra o meu corpo. Eu sinto o som de ossos se quebrando, enquanto giro no ar uma vez antes de ser jogada contra o asfalto e apagar completamente.
A primeira coisa que escuto, ao acordar, é o apito constante da máquina ao meu lado.
Abro os olhos devagar, tentando me habituar a claridade. Procuro virar o pescoço para o foco de luz, mas uma dor lancinante me atinge, como fogo líquido dançando pelos meus músculos. Acho que tem uma janela aberta. É por onde o sol deve entrar, pois sou capaz de vê-lo banhando o lençol branco que cobre a metade de baixo do meu corpo.
Então sinto um aperto na minha mão e me esqueço de todo o resto.
- Puta que pariu - era para ser um grito de reclamação e eu fico assustada, porque minha voz sai tão baixa que eu mal sou capaz de escutar.
- Vejo que você já melhorou - meu pai diz, coçando a nuca sem jeito. Ele odeia palavrões. Sempre odiou. Quando minha mãe xingava, dizia que iria lavar sua boca suja com sabão. Mas, na verdade, acho que preferia silenciá-la com beijos.
- Ei, pai, me desculpe - sinto o peito cansado com o esforço que faço para respirar. - O que aconteceu?
Ele olha para mim, surpreso.
- Você não se lembra?
- Não muito - sussurro, estranhando a minha voz pastosa. - Foi um carro?
Ele balança a cabeça, arregalando os olhos.
- Graças a Deus, não. Uma moto - me corrige, com um alívio evidente. - Ou o estrago poderia ter sido pior.
Sorrio, sentindo meu rosto repuxar em músculos que eu nem sabia que tinha. Não imagino como poderia me sentir pior se tivesse sido um caminhão.
- E a menina? Como ela está?
Meu pai ergue as sobrancelhas grossas e grisalhas bem alto. Adoro quando ele faz isso. Mas, dessa vez, minha risada se converte em uma dor nas costas aguda e terrível.
Eu me contorço na cama e ele se aproxima, preocupado. Aperta minha mão de novo, com mais força, e isso só faz eu me contorcer de novo. Puta merda.
- Chloe, por que você fez aquilo? Por que se jogou na frente de uma moto? Será que você é tão imprudente assim?
Ah, lá vem.
Será que nem no meu leito de morte meu pai é capaz de me dar um desconto?
Começo a respirar fundo, mas desisto no caminho. Melhor continuar respirando superficialmente.
O quarto é um quarto normal de hospital. Branco, sem graça, tão estéril que eu até tenho medo de transmitir alguma coisa para ele. Minha cama é a única do lugar. Fica no centro do ambiente, com máquinas tão cheias de luzinhas coloridas que lembram a aparelhagem de um DJ.
Ok, nem tanto.
- Não sei por que eu fiz isso, papai. Foi, sei lá, instinto - argumento, sentindo-me fraca outra vez. - Ela ia ser atropelada.
- E então, você foi atropelada no lugar dela.
Eu reviro os olhos. Ele tem razão. Instinto burro e idiota.
Meu pai senta-se ao meu lado na cama e acaricia os meus dedos dentro da sua mão, ligeiramente enrugada e muito maior do que a minha.
- Você não pensou no que seria de mim se perdesse você, Chloe? - percebo que engole com dificuldade como se houvesse um nó atravessado em sua garganta - Se depois de perder sua mãe, eu também não tivesse você... eu acho que eu morreria.
Suas palavras me atingem com a força de um soco. Abro a boca para respirar melhor e meus olhos transbordam
- Por que dói tanto, afinal? - mudo de assunto. - O que foi que eu quebrei?
Ele suspira, enfiando as mãos nos bolsos largos.
- Mais coisas do que deveria - resmunga, contrariado. - O médico virá falar com você. Estava só esperando acordar.
Meu pai parece frágil e cansado. Suas roupas estão amarrotadas, da camisa branca de botões a calça cargo. Outro detalhe sobre o meu pai é que ele se veste muito, muito mal. Mas amarrotado, bom, é difícil eu ver isso.
- Desculpe por trazer tanta preocupação - levanto o máximo que consigo minha mão, que ele segura, agora com extremo cuidado, por causa do acesso venoso. - Sei que sou uma filha horrível...
- Não, você não é - balança a cabeça com convicção. - Fui eu que falhei com você. Como pai e como amigo.
Eu suspiro. Quero dizer um milhão de coisas a ele, mas não consigo. É um momento incrível, único, absolutamente perfeito para pedir seu perdão, pedir a ele uma nova chance. Mas minha garganta parece ter sido atacada por um enxame de abelhas africanas.
- Minha garganta está doendo. Você pega um copo de água?
- Claro - ele assente. - Vou buscar no corredor.
- Ok.
Meu pai não demora muito para voltar, mas quando volta não está sozinho. O médico vem com ele, todo cheio de informações técnicas sobre as dores que eu sinto. Meu quadro vem evoluindo dentro do esperado, é só o que consigo entender. Preciso mais de repouso do que qualquer outra coisa para me recuperar, além de muitos, muitos remédios para dor, no momento.
Minha perna quebrada irá receber uma bota ortopédica, não um gesso, o que traz, mais uma vez, uma expressão sincera de alívio ao rosto do meu pai. Outras pequenas fraturas em ossos menores irão se recuperar com o tempo e fisioterapia.
- Você teve sorte - são as palavras do médico pouco antes de deixar o quarto.
- Engraçado, eu não me sinto assim - confesso ao meu pai, que sorri, acariciando o meu queixo.
Seus olhos gentis amorosos não me largam nunca. Meu Deus, como tive coragem de colocar todo esse sentimento a perder? Depois que minha mãe se foi, meu pai tem se mostrado o meu eixo, o meu mundo. Infelizmente, vezes demais, o meu mundo se tornou grande demais para ser limitado a ele.
Mas as coisas iriam mudar, com certeza. Eu faria tudo para que mudassem. A partir de hoje, vou ser a filha que meu pai merece, não importa o quanto precise abdicar, o quanto tenha que sacrificar.
- O que importa é que, em pouco tempo, você estará em casa outra vez - ele tenta me confortar, com a voz embargada.
Minhas pupilas se dilatam. Isso quer dizer o que eu acho que...?
O telefone do quarto toca e meu pai atende, tão depressa quanto possível. Acho que está com vergonha do suor masculino no canto dos olhos. Tão típico, rolo os olhos, ansiosa pelo desfecho da nossa conversa.
- Ah, sim, claro - ele pigarreia, afastando a emoção ainda presente em sua voz. - Pode mandar subir.
Eu olho para ele, com uma interrogação no meio da testa.
- Quem é?
- A Srta Hayes - revela, tão surpreso quanto eu.
- O que será que ela pode querer comigo?
Ele dá de ombros.
- Provavelmente agradecer pelo seu gesto de humanidade - e acrescenta, em tom de repreensão. - Seu gesto insensato de humanidade.
Eu sorrio.
- Tudo bem, papai. Eu sei que você está orgulhoso, já pode admitir - eu digo, me divertindo.
Ele estala a língua em um muxoxo e começa um sermão sobre respeito aos mais velhos. Mas antes que termine, ouvimos duas batidinhas educadas na porta e eu me ajeito na cama, arrumando os cabelos com as mãos.
- Entre - meu pai pede, alisando as rugas presentes na calça cargo sem muito sucesso.
A porta é entreaberta e o rosto da Sra Hayes aparece na fresta. Está muito bonita, com os cabelos presos em um coque e uma maquiagem leve no rosto. Parece ainda mais simpática do que a última vez em que a vi, talvez porque agora não esteja me recusando um emprego.
- Espero que você me desculpe, mas eu não consegui deixar enganar essas duas levadinhas... - antes que termine de falar, Evie e Maisy irrompem pelo quarto como dois pequenos tornados de proporções calamitosas.
Minha nossa... elas são mesmo terríveis!
Mais uma vez, estão vestidas como gêmeas, com vestidos de marinheira combinando. O laço vermelho no peito é um exagero e me faz revirar os olhos, mas simplesmente não consigo deixar de me contagiar com a alegria delas e um calor invade o quarto, a despeito do ar condicionado e do clima frio de hospital.
Meu pai e a Srta Hayes assistem a tudo, confusos, sem a menor ideia de como proceder.
Evie e Maisy abrem para mim um sorriso capaz de derreter os maiores icebergs do planeta. Seus olhinhos azuis brilham como se estivessem olhando, não para outro ser humano, alguém comum, mas para a única pessoa em que pudessem confiar em todo o universo.
- Chloe Henderson - a chefinha volta-se para mim ao lado da cama, com um incrível ar solene. - Você aceita ser a nossa nova babá?
Sinto os meus olhos ficarem marejados. Puta merda. Estou quase chorando e não posso evitar. Que pestinha linda!
Eu balanço a cabeça, assentindo. As meninas pulam e gritam como se estivessem em um estádio de futebol lotado
Afinal de contas, sinto que não importa se eu não consegui o emprego.
Por que, definitivamente, eu conquistei minhas duas novas melhores amigas.