As Duas Pestinhas
Abigail é uma mulher beirando os sessenta anos, cabelos escuros bem pintados e um sorriso afetuoso no rosto.
Assim que eu chego a casa dos Lancaster, ela me leva até a sala de visitas e faz com que eu me sente em um sofá confortável, o que é um tremendo alívio para os meus pés que vieram espremidos em um par de saltos altos.
É a primeira entrevista de emprego da minha vida e eu não tinha a menor ideia do que vestir para a ocasião. Por isso, me decidi por uma blusa branca de babados e detalhes em fita vermelha. É uma peça bonita e delicada, muito diferente do visual básico que eu costumo usar no dia a dia.
Suspiro, alisando as pernas da calça jeans enquanto luto para não me sentir tão nervosa. Mas é claro que isso é impossível. A cada dois minutos, tenho vontade de sair correndo e vomitar o almoço.
- Meu Deus, como você cresceu, Chloe! Eu mal posso acreditar. Como o tempo passou rápido - ela exclama, sentando-se diante de mim em uma poltrona bege de encosto alto. - Lembro de quando você era só uma garotinha, correndo pelo jardim nas suas festas de aniversário.
Eu sorrio de volta para ela, sem saber exatamente o que dizer a respeito. Tenho poucas lembranças de Abigail. Sei que esteve presente na minha infância, mas não consigo relacioná-la a nada do que está me falando agora.
Lembro que nos meus aniversários, nos primeiros que consigo recordar pelo menos, eu estava mais preocupada em pular, brincar e comer todos os brigadeiros que pudesse aguentar sem desmaiar.
- Obrigada pela oportunidade, Sra Hayes.
- Abigail - ela me corrige. - Comigo você não precisa manter esse tipo de formalidade.
A mansão Lancaster é realmente impressionante. Três andares e uma fachada moderna com linhas curvas. A calçada de pedras na entrada é espetacular, mas foi a sacada de vidro que me deixou realmente sem fôlego.
Já a sala de visitas é provavelmente maior do que toda a minha casa, toda em tons claros, como branco e bege, e revestimento em madeira no piso. Mesmo com essa aparência suntuosa, eu noto que é também aconchegante, talvez pela enorme lareira no canto.
Abigail me explica que, desde que a Sra Lancaster morreu, é ela quem cuida de todos os assuntos da casa.
- E as filhas do Sr Lancaster?
Ela sorri, com um olhar carinhoso.
- São duas crianças muito especiais, mas também muito solitárias. Perderam a mãe há dois anos - sua voz muda para um tom pesaroso e é impossível não notar um lampejo de tristeza em seus olhos. - Evie é a mais velha e é uma garota inteligente, com uma personalidade única. Maisy é a caçula - ela abre novamente um sorriso com evidente orgulho. - Você irá adorá-la. Ninguém consegue escapar ao seu charme.
- Eu vou conhecê-las hoje? - pergunto, curiosa para saber mais sobre Evie e Maisy.
Abigail pega o bule de chá de uma bandeja de prata, na mesa de canto, e serve em duas xícaras de porcelana. Eu aceito de imediato. Estou tão ansiosa que acho que vou ter um treco. Um chá deve ajudar a me acalmar um pouco.
- Se você for aprovada por mim, sim - ela garante, com o olhar afável. - Mas, primeiro, eu preciso saber mais sobre você, Chloe. Qual a sua pretensão com esse emprego? Além, é claro de reconquistar o respeito do seu pai. Você deve ter planos para o futuro.
Eu me me mexo no sofá, endireitando a postura. Desde que nos falamos ao telefone, Abigail foi muito gentil e até concordou em não falar nada com meu pai a respeito até que eu mesmo o fizesse. Mas a verdade é que eu não preparei um discurso. Nem sei o que devo dizer. Devo ser honesta ou mentir? Como posso começar sem parecer uma idiota?
- Bem, eu gosto de crianças. Gosto mesmo. Pensei em estudar Pedagogia, algum dia, mas ainda não me sinto preparada para... tomar essa decisão - desabafo, gaguejando nas últimas palavras. - Acho que cuidar das meninas será uma excelente experiência para mim nesse sentido.
Ela balança a cabeça, concordando e parecendo impressionada.
- É, sim, Chloe. Você está certa. E que bom que tem planos de continuar seus estudos, isso é algo muito importante! - a governanta toma um longo gole de chá antes de prosseguir. - Você costuma cuidar de muitas crianças?
A pergunta me pega desprevenida e eu travo, piscando várias vezes sem conseguir dizer nada.
O meu silêncio faz acender uma centelha de desconfiança no olhar da Sra Hayes.
- Chloe? Eu preciso que você seja honesta.
Ai. Meu. Deus. Por que, meleca, eu não planejei minhas respostas antes de vir até aqui? Tempo, aliás, foi o que não faltou no caminho. Foram quase duas horas de ônibus. Minha bunda já estava quadrada e, quando achei que havia chegado ao meu destino, descobri que ainda precisava enfrentar vinte minutos de caminhada.
Deixo escapar um suspiro, balançando a cabeça em seguida.
- Você nunca foi babá antes? - a governanta pergunta, surpresa. - Nem mesmo com os filhos dos vizinhos?
- Mas eu levo jeito com crianças - tento amenizar. - E aprendo rápido. Sei que posso me adequar às regras da casa e desempenhar uma boa função, Abigail. Só preciso que você me dê uma chance.
Abigail deposita sua xícara vazia de volta na bandeja e eu percebo que mal toquei na minha.
Ela me olha nos olhos por um longo momento e as minhas esperanças murcham quando vejo a sua expressão.
- Precisa de mais do que isso para esta vaga, Chloe. O Sr Lancaster exigiu experiência em carteira. Na verdade, ele pediu que eu contratasse uma agência especializada, mas eu o convenci de que uma moça conhecida, de boa família, seria o suficiente dar conta da função com a minha supervisão - ela esclarece, visivelmente sem jeito. - Mas nesse caso... sem nenhuma recomendação anterior, fica mesmo fora do meu alcance.
Abaixo a cabeça, com um nó apertado na garganta. Eu deveria ter desconfiado, era bom demais para ser verdade. Trabalhar para o Sr Lancaster significaria não apenas mostrar ao meu pai que eu estou, enfim, criando juízo, mas também deixar a casa da minha tia Rose de uma vez por todas.
- Obrigada por me receber, Abigail - sussurro num fio de voz.
A governanta me acompanha em direção a saída, enquanto me pede mil desculpas pelo meu tempo perdido. Não digo nada, é claro, mas nos últimos dois dias, meu tempo tem sido bem aproveitado com programas aleatórios de tv, como novelas e reallity shows.
Assim que alcançamos o jardim, ouvimos o telefone tocar lá dentro. Eu vejo Abigail hesitar por um momento breve, mas por fim, se resigna.
- Você me aguarda um instante? Estou esperando uma ligação importante, preciso atender.
- É claro.
Ela dá meia volta para o interior da mansão, me deixando sozinha e rodeada por rosas, bromélias e outras flores cuja identidade desconheço totalmente.
Eu fico admirando o jardim e pensando na minha falta de sorte, quando um falatório nos fundos da casa rouba minha atenção. Vozes altas ne alertam para o que parece ser uma discussão.
Estico o pescoço para procurar por Abigail, mas ela desapareceu lá dentro. Espero voltar, ansiosa. Alguns minutos se passam e a briga parece ganhar volume, o que me deixa aflita para ver o que está acontecendo.
Travo uma batalha interna entre ir até lá e ver o que está acontecendo e permanecer bem onde estou, sem me intrometer. O tempo vai correndo e os ânimos continuam exaltados, parece que a discussão não vai ter fim. Ou pior, que o fim será trágico.
Quando ouço um grito alto, seguido de um longo momento de silêncio, acabo tomando uma decisão e corro para os fundos da mansão.
Sem poder mais esperar, dou a volta na fachada da mansão e me aproximo da origem das vozes com passos cautelosos. Sei que não tenho motivo algum para fazer o que estou fazendo, a não ser quem sabe, ajudar alguém que esteja precisando de ajuda.
Estou pronta para bancar a intrometida, mas o que mais pode me acontecer? Eu já perdi o emprego mesmo.
Pisco os olhos, incrédula, quando, para minha surpresa, vejo duas garotinhas gritando enquanto atiram balões de água uma na outra.
Arregalo os olhos. Meu Deus, que bagunça!
O jardim daquele lado está completamente encharcado, e as meninas sequer estão usando roupa de banho. Seus vestidos molhados se confundem, dando a impressão de que tratam-se de gêmeas, mas é só impressão, claro. Olhando melhor, uma delas é nitidamente mais velha, com cabelos castanho claros e bem lisos um pouco abaixo dos ombros. A menor está de costas para mim, e tudo o que posso ver é uma cascata de longos cabelos louros e encaracolados.
Evie e Maisy. Só podem ser elas.
A menina de cabelo mais curto percebe a minha presença, então pisca um olho para a irmã que se abaixa. Ela então abre um sorriso travesso e atira um balão na minha direção.
O balão explode em cheio na minha cara, encharcando o meu cabelo e também minha blusa branca. A minha blusa novinha! Que pestinha.
- Foi sem querer. Eu queria jogar nela, a culpa foi toda sua - ela dá de ombros, cobrindo a boca para esconder o sorriso.
A outra se vira para mim e só então vejo o seu rosto. Tem o nariz pequeninho e arrebitado, e lábios tão pequenos quanto. Seus olhos são azuis intensos como os da irmã. A menina parece uma boneca com toda aquela beleza e aquele ar angelical.
Mas de anjo não tem nada, penso quando lembro o que as duas acabaram de aprontar.
- Tudo bem - eu dou de ombros, imitando o gesto da mais velha. - Eu estava sentindo mesmo calor com essa roupa.
- Sério? Não parece - ela levanta as sobrancelhas com atrevimento, assistindo os pelos do meu braço se arrepiarem com o jato de água fria.
Bem, pelo menos é observadora.
- E vocês estão sentindo muito calor, não é? -pergunto com casualidade forçada, chegando perto do estoque de balões aos pés da pequena. - Não têm medo de pegar um resfriado?
- E você é nossa mãe ou o que? - de novo é a mais velha que responde, com a testa franzida. - Sabe de uma coisa? Por aqui não gostamos de gente intrometida.
A resposta da menina me pega de surpresa. Fico sem jeito. Pior do que isso, meu rosto esquenta e tenho certeza de que estou vermelha como um tomate. Olho para sua irmãzinha, que parece ter três ou quatro anos, mas ela continua sem dizer nada, apenas me encarando com as duas bilhas azuis.
- Verdade, você tem toda razão - ergo as mãos em um sinal de paz. - Se vocês se resfriarem, tudo o que vai acontecer é ficarem uma semana de cama, trancadas dentro de casa, tomando remédio. Que importância tem, né?
A pequenininha olha para a outra, com os olhos arregalados.
A mais velha olha dela para mim, e franze ainda mais a testa, parecendo mesmo muito brava.
- Pare de assustar minha irmã. Você não tem vergonha? - me repreende - Ela é só um bebê.
Eu aperto os lábios, evitando rir. As duas são praticamente da mesma idade. Sabiamente não digo nada, evitando levar outra bronca da chefe das anãs.
- Vamos, Emily - a garotinha atrevida diz, indo até a irmã e puxando-a na direção da casa. - A chata chegou para acabar com a brincadeira.
Elas passam por mim sem verem minha careta de indignação. Chata, eu? Eu sou superlegal, tá bom? Chata é essa aprendiz de pintor de rodapé. Se não fosse a forma como eu encontrei as duas, gargalhando e molhadas com balões de água, eu diria que essa menina é um vampiro de quatrocentos anos.
Cruzo os braços, vendo as duas se afastarem. A diferença de tamanho não é tão mínima assim. Mesmo assim ambas são pequenas, magrinhas e parecem desengonçadas nos seus vestidinhos cor de rosa. Sorrio, me perguntando quem teve a ideia brilhante de vestir as duas como fantasmas da época da Renascença, enquanto pego dois balões cheios de água no chão.
Com sede de vingança, explodo um nas costas de cada uma, satisfeita ao ver as duas pularem de susto.
As crianças ficam paralisadas por um momento. Depois se viram para mim, em movimentos quase sincronizados.
Que assustadoras.
Para o meu espanto, a pequena abre um sorriso banguela capaz de derreter as geleiras da Antártida.
Pelo olhar, a maior está pensando em formas de me matar usando apenas as próprias mãos.
De novo, eu dou de ombros, fazendo a cara mais inocente do mundo.
Ops. O que eu posso fazer? Elas despertaram o meu lado cruel.
A chefinha puxa a irmã com toda a força, quase arrancando seu braço e as duas correm na direção da casa.
A menor olha para mim por cima do ombro com o mesmo sorriso apaixonante, e quase tropeça na barra do vestido antes de olhar para frente outra vez.
Acho que eu acabei de conquistar uma nova amiga.
Infelizmente, é provável que a primeira vez que nos vemos, também seja a última.