Sete
Minha volta para a casa, não foi tão rápida e agradeci por isso, já que por mim, gostaria de ir para outro lugar, que não fosse a Rocinha.
Não teve como não me odiar, como não odiar o fato dele não sentir nem um pingo de atração por mim. O.k, eu não tinha roupas boas para isso, a grande maioria das minhas roupas, havia sido de doações da igreja, eu sempre, fazia de tudo para comprar roupas para Júlia e eu... ia deixando para quando desse, quando sobrasse dinheiro, só que nunca sobrava dinheiro.
Desde que ela nasceu, eu só vinha dando meu melhor, todos os dias, sempre o meu melhor e parecia que o mundo não reconhecia isso. Tinha ido até para um presidio, para tentar quitar uma divida e não consegui fazer com que um detento se interessasse por mim.
Não teve como não chorar, diante da situação que estava, chorei tudo que já estava segurando algum tempo e pela primeira vez, me senti melhor ao fazer isso, ao colocar tudo para fora, inclusive que eu não era de ferro, que chegava uma hora, que eu precisava parar para respirar.
E eu estava tão cansada, tão cansada daquela minha vida de lutas diárias, eu só queria respirar normalmente, sem ter que me preocupar com alguma coisa.
A vida continuava normalmente na Rocinha, como se não vivessémos no cenário que já estávamos acostumados. Ali era um leão por dia, desde o mais pequeno, até o mais temido e os matávamos, sim, não deixávamos ser engolidos e eu acho que era isso que eu tinha que continuar fazendo, mesmo sentindo que não tinha mais forças e que não iria aguentar nem dar mais um passo. Eu aguentava, eu sabia, precisava continuar, só não sabia por quanto tempo mais aguentaria...
Continuo subindo a favela, cumprimentando alguns conhecidos no caminho, mais alguns passos e um sorriso aparece no meu rosto, quando na minha direção vem Lu, com certeza se preparando para abrir seu bar.
- Oi, Luíza! - diz com um sorriso gigante no rosto.
-Oi, Lu - digo, arrumando a alça da bolsa no meu ombro.
- Foi trabalhar hoje?
- Hã. Não. Só fui... - Me detenho, sabendo que não queria dizer que havia ido num presídio e passado pela minha primeira rejeição na minha vida - resolver umas coisas.
- E conseguiu resolver? Tudo fechado hoje também, né?
Balanço a cabeça de um lado para o outro.
- Não foi como eu queria - murmuro, com uma pontada de tristeza na voz.
Ele franze levemente o cenho, compadecido com a minha situação, que ele nem sabia qual era.
- Que pena, Luíza - diz baixo, colocando lentamente um sorriso no rosto - Mas acho que posso diminuir um pouco sua tristeza.
Se ele tivesse o dinheiro que eu precisava dentro de uma daquelas sacolas que ele estava levando, tinha certeza absoluta que aquela minha tristeza daria rapidamente lugar a felicidade. Mais como eu sabia que não tinha o quê eu queria ali, teria que me contentar com o quê ele tinha para oferecer para mim naquele momento.
- Gosta de almôndegas? Minha vó fez algumas pra vender no bar hoje.
Sorrio levemente sem mostrar os dentes, observando-o começar a falar sem parar.
Lu tinha sem dúvida alguma, um coração bom. Não estava dizendo aquilo dada aquele nosso encontro daquele momento, mas pelo modo que ele se comportava e lidava com as pessoas, era o homem ideal que não se via por aí, que estava praticamente extinto. Era cuidadoso, atencioso e ainda por cima...bonito.
E é claro, que nunca teria olhos para mim. Uma mulher com filho, casada mesmo não estando fisicamente e nada atraente. Ele devia ter mulheres mais interessantes do que eu atrás dele.
- De gostar eu gosto - respondo por fim, vendo-o abrir uma das sacolas e um tapuer grande, mostrando o conteúdo cheiroso.
- Então vem comer um pouco lá no bar - diz passando por mim, andando em direção do bar.
- Lu, não dá...
Ele para no mesmo instante, me olhando com o rosto sorridente.
- Por quê não dá? - É, Luíza, por quê não dá?, minha mente também questiona, cruzando os braços.
- Por que... - Balbucio sem saber o quê dizer, só queria ir para casa, me esconder na minha cama e esquecer que aquele dia aconteceu - Júlia deve estar me esperando.
- Júlinha não vai se importar de esperar mais alguns minutos - Inclino a cabeça para o lado, respirando pela boca - Olha, prometo que não vai se arrepender.
Estava com fome, não tinha como negar. Não havia tomado café antes de sair, não havia conseguido na verdade e já passava da hora do almoço, Vaneide já deveria ter dado almoço para Júlia e eu teria que me virar com o quê achasse em casa.
- Tá bom - Cedo, seguido ele, conseguindo um sorriso amplo como resposta.
Enquanto Lu abre o bar, o ajudo colocando as mesas para fora e as cadeiras, tentando o ajudar da melhor forma, mesmo sabendo como era a rotina dele naquele bar.
- Agora senta aí pra comer - diz ele, ao vir com um prato.
Obedeço, vendo ele colocar na minha frente um prato com bastante almôndega.
- Você disse que era só um pouco - lembro olhando para ele.
- Só come - diz ele, indo para dentro do bar, me deixando ali com aquele prato que estava me chamando cada vez mais alto.
Achei que não iria conseguir comer tudo, mas me surpreendi comigo mesma, comi tudo e ainda fiquei desejando por mais.
Lu volta com um refrigerante de latinha, colocando na minha frente, enquanto ele abria um para ele.
- Estava uma delícia - Comento sem jeito, por ter limpado praticamente o prato, não deixando uma migalha para trás - A única pessoa que cozinha tão bem como ela é a Rosana, a mulher que trabalha comigo na casa da doutora Gabriela.
- Minha vó manda bem mesmo na cozinha.
Dou um gole no refrigerante.
- Geralmente mãe e avó cozinham bem mesmo.
- Minha mãe não cozinha - Ele fixa o olhar na latinha entre suas mãos - Quer dizer, quando ela cozinhava, ela nem cozinha mais em casa.
Olho Lu com atenção, o cabelo preto que já estava crescido o suficiente para ser cortado, a pele bronzeada por causa do sol forte, as sobrancelhas grossas e os lábios carnudos vermelhos. Chegando a conclusão que ele devia ter sido uma criança ainda mais bonita e sorridente.
- E o seu pai, Lu? - pergunto baixo. Não sabia muita coisa sobre o pai dele, apenas da mãe, sabia o que as pessoas comentavam por aí que, ela nunca foi mãe mesmo e que está pagando toda a tirania dela do passado, quando ela era mulher de traficante e usurfruia disso muito bem.
Sobre o pai de Lu, não sabia muita coisa, na época que ele foi preso, praticamente estava lidando com uma gravidez indesejada na adolescência, então não reparei muito neste acontecimento, a única coisa que sabia, era que ele havia comandado a Rocinha antes do índio e outros que vieram depois da prisão dele. Apenas isso.
- Na mesma - diz sem muita cerimônia - Tá preso ainda.
- E não tem ideia de quando ele vai sair?
- A verdade, Luíza, é que tanto faz pra mim, ele dentro daquela cadeia ou fora. Ele nunca foi tão presente na minha mesmo.
- Mais é seu pai.
- Que nunca me deu um bom exemplo - Ele me olha - Acho que a única pessoa que iria gostar, é a Larissa, nem minha mãe iria gostar.
Suspiro, entendendo aos poucos o ponto de vista dele. Lu precisou aprender a ser independente, desde pequeno, quando a vó tinha que conseguir dinheiro para comerem e a mãe ia de festa em festa, enquanto o pai deles estava preso.
- Larissa continua dando dor de cabeça?
- Acho que ela nunca vai parar. Aquela menina... só muita reza pra fazer ela mudar aquela cabeça dura dela.
- As vezes é uma fase.
- Fase?! - diz sério, balançando a cabeça de um lado para o outro - Júlinha passa por fases, minha irmã passa por fogo no rabo.
Coloco a mão na frente da boca, não querendo rir da fala dele. Ele estava tão sério naquele momento, que não queria rir de algo que para ele era muito sério.
- Já tentou... - Me recomponho rapidamente - conversar com ela?
Ele me olha sério, sem demonstrar qualquer emoção.
- Já tentei de tudo com ela, Luíza! De tudo! Só falta eu... - Ele pressiona os lábios com força, inspirando profundamente - exorcizar ela.
- Entendi - Não sabia qual conselho dar para ele sobre o que estava passando, na verdade, não sabia dar conselho algum para ninguém, já que eu não sabia dar conselhos para mim mesma, então...
- Você pode falar com ela.
- Eu?
- É. Talvez ela escute você.
Eu não era a melhor pessoa para falar com ninguém, quando a questão era opinar. Larissa já era maior de idade, não tinha mais a idade de Júlia, então ela fazia o que ela queria da vida dela, mas o problema ali, era Lu, que queria proteger a irmã do mundo, da Rocinha, algo que ele nunca iria conseguir e talvez era mais eficaz tentar mostrar isso à ele.
- Lu - digo devagar, limpando a garganta, escolhendo as palavras certa - Não é melhor você deixar ela quebrar a cara dela sozinha?
- Não - Ele nem pensa, o que é assustador - Minha irmã tá com uma ideia maluca na cabeça dela, que só tem uma consequência.
- Então faça ela ver que não vai dar certo.
- Já tentei, Luíza. Não adianta.
Tudo indicava que o caso era sério, bem sério, para ser mais exata. E Lu, não sabia o quê fazer.
- Ai, Lu - digo afagando a mão dele - Você não devia passar por isso, ficar se preocupando com a sua irmã, quando era seus pais que deviam estar fazendo isso, enquanto você vive sua vida. É muita responsabilidade pra você - E realmente, era mesmo, ele não devia carregar um fardo tão pesado como aquele, ele entendia isso, eu sabia, mas não via um jeito de simplesmente deixar aquele fardo e continuar andando.
Ele olha para minha mão sobre a dele, o quê me faz tirar minha mão devagar e sorrir sem mostrar os dentes, olhando por último dentro dos meus olhos.
- Queria que as coisas tivessem sido diferentes - diz ele baixo, sustentando meu olhar. Não entendi exatamente sobre o quê ele estava se referindo, o quê me fez apenas continuar sorrindo e afagar o ombro dele quando levantei.
- Obrigada pela comida e o refrigerante.
Ele pisca algumas vezes, mantendo o olhar fixo em mim.
- Quer levar um pouco pra casa?
- Não, Lu. Não precisa.
- Leva um pouco pra Júlinha - Ele faz menção em levantar, mas o detenho.
- Não precisa mesmo, obrigada.
- Tá - Caminho para fora do bar, sentindo o olhar dele em mim - A gente se vê - diz quando já estou saindo do bar, apenas aceno para ele, começando minha caminhada para casa que, dura quase dez minutos.
Quando finalmente entro na rua de casa, estou mais do que cansada, querendo um banho, uma roupa fresca e a minha cama, não era pedir muito depois do rolê aleatório que tive só naquela manhã.
Vaneide estava molhando as plantas quando me aproximo, ficando surpresa ao me ver.
- E aí, mulher, como foi lá?
Solto o ar dos pulmões, franzindo os lábios, os movendo de um lado para o outro. Não sabia como lhe dizer tudo que Marco havia me dito,m me rejeitando por completo.
- Não foi.
- Como não?
- Ele não me quis - Era bem simples, não tinha como negar.
- Como não quis você? Ele tá louco?! - Ela controla o tom de voz, com certeza por que o marido deveria estar em casa.
Dou de ombros.
- Eu não sei, Vaneide - E também não queria mais saber, não me importava mais o quê ele achou ou não de mim, só queria esquecer que um dia falei com ele. Só isso.
Ela olha para a porta, antes de desligar a torneira e sair até a calçada me puxando de lado.
- Me explica isso direito, Luíza.
- Eu cheguei lá e... fui revistada, depois fui saber quem era ele - Solto o ar dos pulmões - Ele estava no quarto e assim que me viu, vi estampado na cara dele que não gostou de mim, depois me encheu de perguntas, perguntou onde eu morava, se tinha filhos, só faltou querer saber a cor da minha calcinha, por quê o resto ele perguntou. E depois, simplesmente disse que eu não estava querendo transar.
- E você não estava?
- Sim. Não! - digo no mesmo momento em dúvida - Eu... só não sabia o quê fazer, mas ele tivesse dito o quê era pra fazer, eu tinha feito, Vaneide. Era muito dinheiro pra ficar de orgulho besta - Minha voz soa ressentida - Depois disso ele me mandou embora. Ficou claro pra mim que eu não era o quê ele queria, ele não sentiu um pingo de tesão em mim. Também... - Engulo em seco, apertando a alça da bolsa surrada - olha minha bolsa, meu cabelo, que homem que iria sentir tesão nisso?
- Também não é pra tanto, Luíza.
- É sim! - Aquele não era um bom momento para ela tentar diminuir o que eu achava sobre mim, era a verdade e ela precisava concordar comigo que, eu não era o quê ele estava esperando lá, que ele queria. Nós duas poderíamos até achar que eu poderia ser, mas estávamos enganadas, ele queria uma mulher mais nova ou que aparentasse com o corpo durinho, usando um short curto e um croped, loira de preferência e não uma negra que parecia estar assustada e que deveria nem saber chupar um pau direito.
Poderia não ter experiência com homens, mas entendia que eram visuais, gostavam de mulheres que chamavam atenção, que brincavam com a mente deles e eu naquela manhã, não consegui despertar nada nele, além de... dó talvez, por ter ido até lá, achando que ele iria se satisfazer comigo e depois iria querer que eu voltasse. Óbvio que não.
- Só quero esquecer isso.
- E o Índio? - Ela lembra o quê eu queria esquecer, sendo que não dava para esquecer.
- Vou dar um jeito - murmuro.
- Que jeito agora, Luíza? - diz preocupada - Uma boa chance era essa com o Marco.
- Mas ele não me quis, Vaneide - digo irritada, controlando assim como ela o tom de voz - Vou fazer o quê?! Me arrastar atrás dele.
- A gente tem que pensar em alguma coisa.
- Não tem mais o quê fazer - Passo minhas mãos pelo meu rosto suado - Amanhã vou tentar pedir um adiantamento pra doutora Gabriela sem o marido dela ver, uma coisa impossível, por que ele faz questão de estar ao lado dela quando estou lá, acho que... com medo que eu peça dinheiro.
- E você acha que ela vai dar todo esse dinheiro?
- O dinheiro todo não mas, uma pequena parte...
- Índio não vai se contentar.
- Vaneide - O marido dela chama de repente na porta, fazendo nos calar no mesmo instante.
- Oi - diz ela, sorrindo levemente, ao olhar para ele.
- As crianças estão com fome.
- Já tô indo - Ela volta a me olhar - Vou fazer uma pipoca pras crianças, depois a gente de fala.
- Tá. Pode mandar a Júlia vir pra casa? - pergunto quando ela está quase entrando em casa.
- Depois da pipoca - diz entrando na casa, me deixando sozinha com o meu fardo pesado demais para eu carregar sozinha e que tinha nome. Índio.
