02 - Emília Morales
Escuto o despertador tocar e resmungo ainda com muito sono... Minha vontade era poder dormir até uma da tarde no minímo, porém quem mora nessa selva de pedra que é São Paulo, não pode se dar a um luxo desses no meio da semana, então ainda muito sonolenta levanto e vou me arrastando até o banheiro.
Dormímos tarde ontem, e o Rafael, meu ficante exclusivo continua dormindo tranquilamente, nem escutou o despertador tocar.
Preciso parar de deixá-lo dormir aqui em casa ! Penso nisso enquanto lavo meu cabelo.
Estamos juntos por volta de seis meses, mas não quero assumir um relacionamento, mesmo porque o meu pai jamais vai aceitar um namoro entre nós.
Isso porque o Rafa não é lá o tipo de homem que os pais desejam para suas filhas... Ele mora em Heliópolis, a maior favela de São Paulo e é amigo íntimo do dono do morro.
Ele nunca escondeu de mim a sua ligação com o crime organizado, mas me trata super bem, o sexo é bom e eu gosto da companhia, porém ele tem dormido demais aqui em casa, daqui a pouco vai começar a parecer que somos um casal.
Se meu pai ficar sabendo do nosso envolvimento não quero nem ver a reação dele... Depois que meus pais biológicos morreram vitimas de um cartel criminoso, ele tem horror a qualquer coisa que tenha relação com crime.
Sim, o Jorge me adotou desde que fiquei sozinha no mundo, ele me trouxe da Colômbia para o Brasil quando eu tinha cinco anos.
Três anos mais tarde ele se casou com a dona Arlene, uma mulher muito especial e ela com seu bom coração também me adotou como filha.
Na época ela tinha uma pequena pizzaria e meu pai tinha dinheiro guardado, então investiu capital para ampliar o negócio, hoje em dia a pizzaria é uma das mais famosas de São Paulo.
Os dois fizeram de tudo por mim, me deram uma vida confortável, pagaram bons colégios e também foram eles que montaram a loja que eu tenho no shopping.
Mas o melhor de tudo que me deram foi o amor incondicional que têem por mim, eles me amam como se eu tivesse o sangue deles e mesmo sabendo que sou adotada, eu nunca quis saber muito sobre o meu passado, pois meus pais me são mais que o suficiente.
Além disso meu pai não sabe quase nada da minha família biológica e também prefere não tocar no assunto, pois não gosta que falem que ele não é meu pai.
Me contou apenas que estava de mudança para o Brasil quando a tal chacina aconteceu, cártéis brigavam por território e morreram muitas pessoas, inclusive meus pais... Ele era voluntário de uma obra social que ajudava crianças em situação de abandono, abusos ou que ficaram orfãs.
Diz que quando olhou para mim teve certeza de que me queria como filha, então me adotou ! Naquela época era muito fácil adotar, principalmente na Colômbia, então sem muita burocracia ele conseguiu me registrar como filha e me trazer para o Brasil com ele.
Eu não lembro nada daquela época, minha psicóloga disse que meu subconsciente provavelmente bloqueou as lembranças para me proteger do sofrimento. Porém as vezes eu tenho pesadelos com barulho de tiros e vejo meu pai me carregando no colo ainda pequena.
Acho que esse sonho remete ao fato do Jorge ter me "salvado" quando resolveu me adotar, por isso quando começam os tiros e gritos, ele me pega no colo e me tira daquele lugar... O pesadelo acaba quando meu pai me carrega para longe de todo o barulho.
Como ele mesmo diz, me trazer para o Brasil foi a melhor coisa que fez, pois não sabemos quem eram os meus pais e o motivo exato pelo qual morreram, então eu poderia não ficar segura naquele país.
Assim me tornei Emília Santos Fuentes, filha de Jorge Torres Fuentes e Arlene dos Santos Fuentes. Não sei como era meu nome antes disso, mas tenho uma vida tão boa no Brasil que nada me faz querer saber quem eu fui antes dos cinco anos.
Na Colômbia meu pai também era muito bem de vida, isso facilitou tudo... Desde agilizar minha adoção, até ter grana para construir uma vida nova em um novo local.
Hoje o ano é de 2024, já se passaram vinte anos desde que o destino cruzou minha vida com o melhor homem do mundo, me dando o privilégio de ser sua filha.
Eu sempre fiz de tudo para ser a melhor para ele também ! Nunca dei trabalho, sempre fui boa aluna, comportada... Sou formada em gestão comercial e tenho uma linda loja de roupas de grife.
Nesses vinte anos a primeira coisa que eu faço que eu sei que irá desapontar meus pais é ter me envolvido com o Rafael... Eu sei que se souberem vão surtar.
Conheci ele por acaso na porta da minha loja... Ele olhava atentamente as roupas da vitrine e minha funcionária logo me informou da sua presença, mas quando fui botar reparo, não olhei para a tornozeleira, e sim para o fato dele ser extremamente lindo.
-Patroa, olha lá fora....
-Que gato ! Pensei alto.
- O que ? Eu estou falando da tornozeleira e não da beleza...
Ele reparou que falávamos dele e após me encarar por uns segundos, se afastou da loja.
- Ai Raiane... Ele reparou que estávamos falando dele, coitado !
- Coitado ? Eu dou é graças a Deus ! Estava com medo já.
- Ele só estava olhando, não ia fazer nada não.
- Não confio.
- Nós não sabemos o motivo pelo qual ele foi preso, não podemos julgar.
-Coisa boa é que não é... Ninguém vai preso por ser um cidadão de bem, trabalhador e honesto.
-Você está falando igual ao meu pai !
- Que bom que seu pai pensa assim também.
- Eu só reparei que ele é um gato.
- Ele é bandido... Não interessa se é bonito ! Se eu tivesse sozinha na loja e ele entrasse, acho que chamava a polícia.
- Que maldade ! Talvez ele só quisesse comprar um presente para a namorada.
- Aqui ? E favelado lá tem dinheiro para comprar algo aqui ?
-Você não disse que ele é bandido ? Geralmente eles tem mais grana do que nós... Além disso ele está bem vestido. Falei rindo.
- Para ter dinheiro só se for roubado... Ou de tráfico ! E não adianta estar bem vestido, tem cara de cria de qualquer jeito.
-Você tem certeza que não é filha do meu pai garota ? Brinquei.
Ela sorriu e disse que não seria nada mal ser filha do seu Jorge ! Depois não tocamos mais no assunto do criminoso gato, mas eu passei o resto do dia com ele na cabeça.
Após passado por volta de um mês, estava em um posto de gasolina esperando o frentista me ajudar a calibrar os pneus do meu carro, quando uma moto ninja parou do meu lado.
Quando o homem retirou o capacete eu reconheci... Era ele, o cara do shopping !
De perto ele era ainda mais atraente... Forte, musculoso, tatuado e com um olhar sedutor. Novamente eu olhei para ele fixamente.
-Vai encher moça ? Perguntou apontando para o calibrador.
-Pode usar... Eu estou esperando o moço vir me ajudar...
-Quer que eu te ajude ?
-Se você puder eu quero ! O posto está movimentado então os meninos estão demorando para desocupar.
Enquanto ele enchia os pneus, me falou que estava lembrando de mim do shopping e disse que aquele dia só queria comprar um presente para a irmã, pois era aniversário dela.
-E porque não entrou ? Tem tanta coisa linda na minha loja...
-Vi o modo que vocês olharam para a minha perna... Principalmente a outra mocinha, aí desisti de comprar lá.
-Peço desculpa por ter te deixado constrangido... Eu até conversei com ela sobre isso.
-Relaxa, eu estou acostumado, já faz um tempo que estou usando.
-Mas se os olhares te imcomodam porque não dá um jeito de cobrir ? Sei lá... Tipo, não usar short e tal.
- Não me incomodam, as pessoas é que se incomodam comigo na verdade ! Eu não entrei na loja para que a moça não se sentisse desconfortável, não foi por mim... Eu não ligo.
-Na verdade eu nem teria reparado se ela não tivesse me mostrado... Sério, eu estava te olhando porque você é bonito e não por causa da tornozeleira.
-Mês que vem vou tirar já... Depois que não tiver mais com ela topa sair comigo ? Perguntou sendo bem direto.
-Porque só depois que tirar ? Fui direta também.
-Porque você não é mulher para andar ao lado de um cara com isso na perna não.
- Só me fala uma coisa... Porque foi preso ?
-Burrice ! Rodei porque fui burro...
-Estou perguntando qual foi o crime.
- Artigo 33...
-Oi ?
-Tráfico de drogas gata !
-Entendi... Na verdade eu perguntei só para saber se não era assassino ou estuprador.
-Assassino eu sou.
Eu arregalei os olhos e gelei por dentro.
-Qualquer traficante é moça... Tantas pessoas morrem por causa de droga, indiretamente o culpado é quem vende.
- Então porque você não para ?
- Porque não é assim que funciona... Entrou, não dá para sair de boa.
-Eu quero, mas primeiro preciso saber seu nome ! Falei após uns segundos de silêncio.
-Quer o que ?
- Sair com você !
-Ah sim... Meu nome é Rafael. Disse sorrindo e ficou ainda mais bonito.
-Emilia ! Falei estendendo a mão para ele que segurou e deu um beijo.
-Me passa seu contato então... Quando eu tirar esse troço, te procuro! Gostei de você menina.
-Você pode ir lá em casa tomar um vinho nesse final de semana se quiser, moro sozinha, lá ninguém vai ver seu "acessório" além de mim... Brinquei apontando a tornozeleira.
-É sério isso ? Não tem medo de me colocar na sua casa ?
-Não ! Rolou algo legal entre nós, eu quero te conhecer melhor.
Ele sorriu novamente... E desde esse dia estamos juntos ! Ele já não usa mais a tornozeleira faz um tempo e nós saímos direto a noite, mas meus pais não sabem de nada e nem podem saber.