Seja boa e gentil (II)
- Talvez não... Por muito tempo. Mas acredito muito em Deus. E aposto que um dia ele promoverá nosso encontro novamente. Só espero, do fundo do meu coração, que quando este chegar dia, você ainda me ame. E entenda que tudo, absolutamente tudo que fiz, foi para o seu bem.
- Eu sempre amarei você, mamãe.
Ela tocou a ponta do meu nariz com o dedo e sorriu:
- Quem tem o nariz mais lindo do mundo?
- Eu... – Sorri.
- E os olhos?
- Eu...
- E... A barriga? – Me fez cócegas.
- Eu... – Gargalhei.
Todos os dias ela fazia aquilo comigo antes de dormir. E eu não conseguia adormecer sem que minha mãe fizesse as cócegas e aquela brincadeira que conheci desde sempre.
- Só seja você, Maria. E sei que isto será o suficiente para tocar o coração de seu avô.
Mordi o lábio, devastada pelo que sabia que estava acontecendo. Sim, por mais que ela sempre tivesse me preparado para aquele momento, não sabia que doeria tanto.
Mamãe me abraçou com força e naquele momento eu soube que era chegada a hora de dizer adeus, o momento ensaiado ao longo dos meus nove anos.
- Amo você, Maria. E sempre amarei. Que Deus sempre esteja com você. – Deu-me um beijo na ponta do nariz.
Em seguida minha mãe levantou-se e tocou a campainha.
- Pois não? – Ouvi a voz vinda de além, parecendo sair de dentro do muro.
- Avise Alexis que ela chegou. – Mamãe falou de forma séria e firme.
- Um segurança está indo buscá-la. – A voz sem rosto avisou.
Mamãe foi até o carro e pegou minha sacola de roupas e entregou-me. Depois arqueou meus cabelos e os pôs para o lado, em seguida colocando no meu pescoço um cordão preto com dois corações dourados unidos um ao outro.
- O que é isso? – Perguntei, tocando os corações que brilhavam muito.
- Eu queria que ficasse com uma lembrança minha... – sorriu – O cordão não tem valor algum... Mas o pingente é de ouro.
- Ele... É bem bonito! – Fiquei maravilhada com o quanto a peça brilhava.
- Economizei muito dinheiro para comprar – sorriu – Que bom que gostou. Sempre que se sentir sozinha, lembre-se que estou com você... No seu coração.
- Obrigada, mamãe.
Vimos um carro vindo pelo caminho do interior da propriedade e logo o portão se abriu de forma automática, me assustando.
Fui para trás dela, imediatamente, amedrontada. Um rapaz saiu de dentro do carro, usando um terno preto e camisa branca. Tinha até uma gravata, coisas que eu só via nos filmes.
- Vim buscar a menina. – Falou para minha mãe sem sequer cumprimentá-la antes.
Ela me deu um beijo na bochecha e virou as costas. Não soltei a mão da dela, tentando impedi-la de me deixar. Quando percebi que insistiu na tentativa soltar-se, sem sequer me olhar, comecei a gritar:
- Não, mamãe! Eu não quero ficar! Não me deixe aqui!
Corri e agarrei-me a ela, que seguia de costas. O homem pegou-me com facilidade, enquanto eu me segurava com toda força ao corpo de minha mãe, aos berros. Me debati com violência, usando os pés e braços para tentar me desvencilhar dele, que me levou à força, passando pelo portão em direção ao carro.
Aos gritos, vi minha mãe embarcar novamente no táxi, no banco de trás, e o carro partiu. A última imagem que ficou na minha mente foi dos seus olhos cheios de lágrimas e um “eu te amo” sem voz que saiu dos seus lábios.
Resisti em entrar no carro. Nunca senti tanto medo e raiva na vida. Não era justo mamãe me deixar ali, com aquelas pessoas que eu nem conhecia. Eu precisava explicar-lhe que não me importava de ser pobre para o resto da vida. Só queria ficar ao lado dela.
Mas aquele homem com cara de mau não se preocupou com minha angústia. Simplesmente apertou-me contra seu corpo e me pôs no carro, no banco de trás, dizendo ao motorista:
- Tranque todas as portas, por favor.
Ouvi o som das portas trancando e tentei abrir a do meu lado, inutilmente. Eu estava presa... Para sempre.
Limpei as lágrimas e sentei-me, olhando as árvores que pareciam ter todas exatamente o mesmo tamanho. Teriam elas também o mesmo número de folhas cada? Entre os caules longos e finos, cinzas, haviam folhas no chão, todas iguais, secas, amareladas. E para cada lado que eu olhava, era a mesma coisa.
O motorista abriu uma fresta do vidro, que abaixou de forma automática. Toquei a parte de cima e senti o cheiro de frescor e leveza entrando no carro, como se minha mãe estivesse limpando a casa. Fechei os olhos e aspirei, deixando que o ar entrasse dentro dos meus pulmões.
- São eucaliptos. – Ouvi a voz masculina e abri imediatamente os olhos, vendo o motorista explicar, enquanto me olhava sorridente pelo espelho retrovisor.
- Tem cheiro de chiclete de menta! – Ri.
- Sabe que é verdade? Nunca me dei em conta disto. – Ele sorriu também.
Olhei para o homem que estava sentado ao meu lado, que não se moveu, como se fosse um robô. Sequer seus olhos piscavam.
Enfim, a estrada de pedras acabou e o carro parou na frente da casa. As portas foram destrancadas automaticamente e o homem que estava no banco de trás, que havia me tirado a força dos braços da minha mãe, desceu e abriu a porta para mim.
Desci e fiquei observando a casa gigantesca, de dois andares, branca, que fiquei em dúvida de onde seria o final dela, que parecia não existir. Me lembrou a Casa Branca, do Governo dos Estados Unidos, por seus quatro pilares redondos e enormes na parte da frente, que sustentavam uma estreita varanda.
Havia somente uma porta de entrada, subindo dois degraus, abrigada pela varanda. Ao lado dela, duas janelas cinzas, com venezianas abertas e vidros quadriculados. Acima, mais três janelas, exatamente iguais. Olhei para um lado e para o outro e só vi as mesmas janelas... Tantas que mal dava para contar.
Minha mãe havia me dito que não era um orfanato, que era a casa da família do meu pai. Mas duvidei que aquilo pudesse ser um lugar onde morasse uma única família. Era impossível poucas pessoas viverem num lugar tão grande. Para se verem durante o dia marcavam um encontro? O que seriam todos os cômodos por trás daquelas tantas janelas?
Talvez mamãe não tivesse me explicado que os Hauser eram uma família enorme! Ou quem sabe fossem de sangue nobre e por isso o formato de algumas partes parecia um castelo, como se houvessem pequenas torres quadradas no telhado, de quatro em quatro metros, ambas com vidros quadriculados. Seriam calabouços?
O jardim não tinha flores e sim folhagens... Muito verdes. Plantas trepadeiras e daquelas miniaturas onde no filme Edward Mãos de Tesoura ele as deixava crescerem para com suas mãos de tesoura podá-las em diferentes formatos. Ali elas faziam um caminho até a casa. E não havia sequer uma folhinha crescendo fora do limite de corte.
Das árvores que haviam ali, a maioria delas se encontravam secas. Fiquei em dúvida se não estavam mortas.
Andei um pouco até que encontrei um pequeno pé de jasmim entre as plantas sem graça. Corri até lá e toquei as flores brancas que tinham pétalas tão agradáveis ao toque como se fossem um tecido de seda. Sempre achei o cheiro do jasmim parecido com algum doce que eu não conseguia lembrar o nome. Porque me dava vontade de comer aquele cheiro. Ele me remetia à primavera, quando mamãe e eu caminhávamos nas ruas próximas de nossa casa e procurávamos pequenos insetos voadores dentro das flores. Ela sempre levava uma lupa para eu poder vê-los de perto. E eu amava quando fazíamos aquilo.
O homem me pegou com força pelo braço, fazendo-me pular sobre os arbustos verdes em miniatura:
- Vamos lá, garota! Não seja inconveniente.
A contragosto o segui, até que ele bateu na porta e uma mulher com um vestido preto atendeu. Era idosa e os cabelos brancos estavam amarrados num coque no alto da cabeça.
- Seja bem-vinda, pequena! – ela deu um sorriso gentil e tirou-me das mãos do homem robô de preto, levando-me para dentro da casa.