Capítulo 1
MELISSA
Tic tac, tic tac, tic tac...
Esse é o som das batidas do relógio, é o som das horas passando, do tempo se esvaindo, escorrendo entre meus dedos. Acho isso soa mais como uma metáfora sobre minha vida do que do sobre o tempo em si.
A cada dia eu definho um pouco, uma parte de mim morre, deixa de existir como se nunca tivesse feito falta. Aqui jaz a alma de quem um dia foi Melissa Revoredo, o que resta é apenas essa casca vazia pois a essência evaporou com os dias, dias esses que eu nem me lembro mais quantos foram e quantos ainda estão por vir. Estou há tanto tempo nesse lugar que as vezes acho que é o inferno, contudo este era o lugar que havia se tornado minha casa a qual já havia me acostumado durante os anos.
Depois que vim parar aqui nunca mais saí, não consigo nem me lembrar de como é a sensação do sol tocando minha pele e aquecendo meu corpo. A única luz que ultimamente tenho visto é da lâmpada fluorescente que ilumina parcamente o ambiente a minha volta.
Balanço minhas pernas que pendem do assento da cadeira formando sombras no assoalho de madeira que me lembravam vagamente a forma que os pássaros adquiriam no céu.
Minha mente ociosa aproveita as poucas horas de sossego enquanto não tem que se preocupar com nada e nem ninguém, apenas com o nada, com o confortável vazio.
Deixo minha mente vagar por um instante pensando se fazia realmente algum sentindo continuar prolongando minha existência no mundo, pensei em como isso colocaria um fim ao meu sofrimento e que isso não afetaria a ninguém já que ninguém havia ido atrás de mim por todos os malditos sete anos, eu era só uma garota quando fui arrancada brutalmente do meu mundo adolescente e jogada nessa vala obscura programada para morrer lentamente.
Minha atenção volta para a realidade quando ouço o som de chaves balançando e o barulho da porta se abrindo.
Gouveia havia chegado.
Fechei os olhos em uma prece silenciosa pedindo a Deus para me tornar invisível, entretanto isso não se tornou realidade, ao invés disso meus ouvidos foram atingidos pela voz grave e máscula que dominava meus piores pesadelos.
-Lissa, querida... onde você está? -ele perguntou em um falso tom de calma.
Continuei no mesmo lugar, a porta do quarto estava trancada com se pudesse me proteger do mal que estava atrás dela.
-Lissa, trouxe sua comida favorita. Não vai querer que ela esfrie, não é?
Ele disse como se fosse a algo normal, mas eu podia claramente entender a ameaça implícita. Eu já havia sentido na pele o peso daquelas palavras. Então pulei desastradamente da cadeira em que estava sentada e me apressei em abrir a porta.
Do lado de fora do quarto pude vê-lo de costa para mim arrumando a comida sobre a mesa, e antes mesmo que eu dissesse alguma coisa ele sentiu minha presença por perto.
-Ah, pequena lissa que bom que chegou. -ele disse ainda de costas enquanto ajeitava os pratos e talheres sobre a mesa.
Fiquei estagnada a alguns metros de distância.
-Como foi seu dia, querida? -Gouveia se virou para mim e puxou uma cadeira.
Entendi aquele gesto como uma ordem, não um convite, para me sentar. Aproximei-me devagar e me sentei sem olha-lo nos olhos apenas encarando chão.
-Minha lissa, o que aconteceu? Porque está tão distante essa noite?
Ele estava atrás de minha cadeira eu podia sentir o calor de seu corpo em minha costas.
-Tem alguma coisa haver com o fato de você ter trancado a porta do quarto? -ele segurou meu queixo em sua direção. -Eu já te disse muitas e muitas vezes para não fazer isso. -seu polegar acariciava minha mandíbula. -Mas prometo não me aborrecer com isso hoje, tenho uma ótima notícia para contar. -ele sorriu e beijou meus lábios enfiando as mãos em meus cabelos.
Não protestei com medo de que acabasse como da última vez e eu fosse dormir sentindo como se meu rosto estivesse em chamas. Mas isso não era o pior, Gouveia tinha jeitos bem piores de me torturar, por isso preferi não provoca-lo.
Gouveia se afastou e sentou-se no outro lado da pequena mesa ficando de frente para mim. Pensei em como eu tinha vontade de limpar minha boca, lava-la com força até sentir o gosto de sangue invadindo minha língua.
Me remexi em meu lugar incomodada com a presença daquele homem a minha frente, mas não disse nada, meu estômago estava enjoado e eu havia perdido a fome.
-Hoje o dia foi muito melhor do que eu havia previsto, você tinha que ver, lissa. -ele disse animado enquanto servia nossos pratos. -Eu nem poderia imaginar que depois de tanto tempo Marcos ainda tinha tantas ideias estúpidas naquela mente inútil. Uma investigação estava acontecendo na empresa sem que ninguém tivesse conhecimento, na verdade eu conduzi essa investigação durante um ano, e o que descobri foi surpreendente. Acredita que o canalha do Marcos havia se debandado para a concorrência e continuava na minha empresa como informante? Aquele bastardo foi desmascarado semana passada na frente da diretoria, eu juro que vou fazer da vida dele um inferno e faze-lo pagar por isso. Como ele pode? Eu fico me perguntando como ele teve a ousadia e a frieza de prejudicar um amigo de longa data, que havia confiado tudo a um garoto inexperiente que não tinha nada na vida. Eu ainda mal consigo acreditar, você entende lissa?
Pensei no absurdo que eu estava ouvindo saindo da boca dele. Minha vontade era pular na mesa e quebrar um prato na sua cabeça, pensei em como ia ser satisfatório ver sua cara surpresa quando eu enfiasse uma faca em sua garganta. Contudo, isso era apenas uma ilusão criada pela minha cabeça, eu sabia que não poderia fazer nada daquilo, porque haveria consequências ao menor sinal de rebeldia e eu não seria idiota de irrita-lo.
-Imagino. -foi só o que respondi com a voz mais baixa do que o normal.
Foi por isso que acho que ele nem percebeu o que eu disse e continuou a tagarelar.
-E hoje os resultados que recebi foram surpreendentes. A empresa sofreu uma alta por causa dos muitos investidores satisfeitos com o rumo que as investigações tomaram. Eles liberaram grana como se fosse bala. Outras empresas também demonstraram interesse em fazer sociedade conosco.
Fiquei revirando com o garfo a comida no prato enquanto Gouveia não calava sua enorme boca.
-Lissa, você não está me ouvindo.
Não foi uma pergunta e sim uma afirmação. Isso me fez lembrar a primeira vez que ele havia dito a mesma frase e a primeira punição física que ele havia me afligindo.
* **
(Alguns anos atrás)
Eu havia acabado de completar o primeiro mês em cárcere privado e tinha somente dezesseis anos de idade. Não conseguia entender o que estava fazendo naquele lugar e nem o porquê de Álvaro, como eu o chamava na época, estar fazendo aquilo comigo.
Então em uma noite resolvi quebrar uma de suas estúpidas regras, não compareci a mesa no enfadonho horário de sempre para o ridículo jantar. Ao invés disso, me tranquei no quarto e me escondi debaixo da cama, não queria por nada no mundo ver a aquela cara em minha frente por um segundo sequer.
Quando Álvaro chegou, me chamou umas três vezes, entretanto não respondi uma única vez. Contudo ele não insistiu em gritar meu nome e quando em fim achei que estava livre dele, ouvi o barulho da porta sendo arrombada. Estremeci dos pés a cabeça. Poucos segundos depois ele puxou minhas pernas retirando-me de debaixo da cama.
Ele jogou-me sobre suas costas e pôs-se a caminhar pelos cômodos do pequeno porão que de longe imitava uma casa, até parar de frente a uma porta escura. Álvaro tirou um molho de chaves do bolso da calça e segurou uma chave também de cor escura e girou-a abrindo a porta.
Uma espécie de sala vazia apareceu atrás da porta, não tinha um só objeto ou móvel decorando o local, suas paredes eram todas das da cor pretas ou era o que parecia já que eu não conseguia enxergar muita coisa só com a luz que vinha do corredor.
Então colocando-me no chão, segurou-me pelos cabelos quando tentei correr, no íntimo eu sabia que alguma coisa muito ruim ia acontecer.
-Lissa, você não está me ouvindo. Vou ter que ensiná-la uma lição para que saiba me respeitar.
Dito isso Gouveia arrancou minhas roupas de maneira rude e saiu fechando a porta, me deixando nua, envergonha, com medo e na escuridão. Para minha infelicidade ele ainda não havia acabado, quando a porta se abriu novamente eu mal tive tempo para virar a cabeça naquela direção, pois logo fui atingida por um jato de água forte e gelado, tentei me proteger de alguma maneira, mas foi impossível.
Eu tremia feito vara verde, e sentia algumas partes do corpo doendo por causa da pressão da água batendo contra minha pele. Não fazia a mínima ideia de onde todo aquele líquido vinha, só sentia como estava gelada e que me fazia encolher em posição fetal no chão com os cabelos pingando grudados ao redor do rosto.
Fiquei dessa maneira por mais ou menos três dias, isolada, com frio, medo e fome. E só depois desse período pude sair daquele calabouço desejando nunca mais voltar para lá.
O que mais cedo ou mais tarde, voltou a acontecer.
* * *
Saí do transe dos meus pensamentos e voltei a realidade.
-Eu sinceramente não sei mais o que fazer com você. -ele bateu a mão sobre a mesa.
Quase pulei de susto com o barulho.
-Desculpe. -murmurei com os olhos baixos.
Mas por dentro eu queria poder dar uma resposta atrevida.
-Arrume essa mesa e lave a louça, vou me deitar agora. -disse se levantando e indo em direção ao quarto.
Fiz tudo como ele havia ordenado com lentidão, tentando adiar o máximo possível o momento que viria a seguir. Então quando terminei as tarefas apaguei a luz da cozinha e me direcionei para o quarto como quem vai para o matadouro.
Abri a porta devagar na esperança de que ele estivesse dormindo, mas me decepcionei como em todas as demais vezes que pensara o mesmo.
Gouveia estava deitado sobre a cama somente com a calça jeans que chegara usando e lia algo em seu celular. Quando me viu seus olhos se escureceram, ele guardou o celular no bolso, se levantou e veio em minha direção como um leão correndo atrás de sua presa indefesa.
Como ele era bem mais alto, abaixou-se na altura da minha orelha com as mãos apertando minha cintura, e sussurrou como uma ameaça.
-Pensei em você o dia inteiro.
Senti meus olhos se encherem de lágrimas, eu não tinha para onde correr, isso só pioraria tudo.