Capítulo 1. Introdução
Quinze anos atrás:
No meio da madrugada, uma Van parou na beira da calçada debaixo do viaduto. O local era feérico e lúgubre neste ponto específico. Não havia ninguém no local, os que moravam ali, estavam mais afastados daquele ponto, que era o início da subida do grande viaduto.
Dois homens estranhos e truculentos, desceram da Van e abriram a porta traseira. Um entrou, pegou algo embrulhado num cobertor e passou para o outro que ficou do lado de fora.
Assim que passou o embrulho, desceu da Van e fechou a porta devagar. Não queriam fazer barulho, chamar a atenção de alguém que não estivesse dormindo e percebendo o barulho resolvesse verificar mesmo a distância. Enquanto isso, o outro colocou o embrulho sobre um papelão embaixo do viaduto, próximo a uma das pilastras de sustentação. Olhou ao redor novamente, para ver se via alguém olhando e foi embora.
Naquela hora da noite, dentro dos malfeitos barracos embaixo do viaduto, todos dormiam. Para sorte dos dois homens e não perceberam a chegada de mais um integrante para a família de moradores de rua.
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Enquanto isso, do outro lado da cidade, dois adolescentes escalaram o muro da casa de um condomínio de luxo. Quando conseguiram passar para o lado de dentro, sentaram no chão aliviados e caíram na risada. Divertiam-se com o fato de burlar as leis e saírem impunes.
O condomínio onde entraram, era de luxo, as casas eram protegidas por seguranças armados, que ao contrário do que os dois adolescentes pensam, sabiam de suas peripécias e fingiam não ver, deixando os garotos se divertirem.
– Puxa, Rafa, essa foi por pouco! – Falou um dos garotos.
– Para de ser maricas, Carlos, não aconteceu nada e nem ia acontecer. Você é muito medroso, eu tento fazer você ser mais ousado, te levando comigo, mas parece que não adianta. – Respondeu, Rafael.
– Vamos entrar, temos mais algumas horas para dormir antes que meus pais acordem. Você sabe que sou assim, mas vive forçando a barra – falou Carlos e saiu caminhando em direção a casa.
Rafael seguiu-o calado, já estava ficando cansado de puxar o amigo daquele casulo que ele insistia em fazer para si. Caminharam até a mansão e entraram por uma porta lateral.
Quem os visse, pensaria que eram ladrões. Com a roupa velha, larga e suja de poeira e tinta, os dois riquinhos mimados, saíram de madrugada escalando prédios de forma perigosa, só para pichar lugares inusitados, queriam sentir a adrenalina no sangue.
Pelo menos Rafael, queria sentir a euforia de burlar a lei, mas Carlos quase colapsava cada vez que acompanhava Rafael nessas aventuras malucas.
Suas pinturas não eram uma obra de arte maravilhosa, mas também não eram rabiscos que sujavam tudo, antes, eram desenhos bonitos de cores fortes que enfeitavam as paredes velhas e feias dos bairros mais antigos.
Rafael sempre as assinava com o desenho de uma cara de gato no canto inferior direito da pintura, com a assinatura: Gatuno.
Atualmente
Meu nome é Guilhermina, mas quem quer ter um nome tão grande? Por isso me apelidei de Mina. Tenho 21 anos, eu acho. Não tenho família, nem amigos, nem ninguém. Gosto de ser sozinha. Não tenho casa e nem emprego. Não tenho identidade e nem escolaridade.
Quem sou eu?
Nem eu sei. Se for pensar em termos de legalidade, não existo.
Mas existo, como podem perceber.
Cada dia tô num canto diferente do bairro que conheço desde que acordei debaixo do viaduto e durmo onde me deixam ficar. Aprendi a me virar muito cedo e descobri que a maioria das pessoas, valorizam demais as coisas materiais e nem percebem que se vive bem melhor sem nada desses luxos que atraem tantos "gatunos".
Não cheguei até aqui andando nas nuvens, tive que descobrir muito cedo como sobreviver nas ruas. Quando não se tem nenhum documento, parente, amigo e memória, fica muito difícil evitar a maldade humana.
Por outro lado, encontramos boas pessoas também. Vários grupos de assistência social trabalham nas ruas. Eles distribuem refeições, roupas, cobertores e até carinho. Também aprendi sobre Deus pai, filho e Espírito Santo.
Tive aulas escolares, junto com outras crianças, embaixo da ponte, mas eram dadas por um professor voluntário, por isso não havia registro de escolaridade.
Mas, foi quando sofri uma violência que nenhuma criança deveria sofrer, que aprendi que não podia confiar nas pessoas e precisei aprender a me defender.
Eu tinha oito anos e já estava há dois anos morando na rua, quando um homem abusou de mim. Na época, a única coisa que entendi foi a dor que senti por todo o corpo e os machucados que ficaram, principalmente nas minhas partes íntimas. Não contei pra ninguém, mas comecei a me distanciar mais e ficar longe de qualquer um que se aproximasse, sem que eu conhecesse.
Passei a me esconder nas sombras da noite e me enrolar toda para dormir. Cortei os cabelos bem curtos com um canivete emprestado e passei a pegar roupas de menino na Van da Misericórdia.
O incrível é que ninguém nunca investigou de onde eu vim ou quem eu sou, a comunidade que morava debaixo da ponte, era tão grande e estava sempre saindo e chegando moradores novos, então foi fácil driblar as perguntas sobre com quem eu morava.
O melhor dessa época, foi encontrar meu melhor amigo, na verdade foi ele que me encontrou, me protegeu e me ensinou a sobreviver nas ruas. O nome dele é Rui, tinha quase 12 anos quando nos conhecemos, seus pais moravam no morro, numa favela próxima de onde eu ficava.
Com ele aprendi a comer, beber, me limpar e fazer minhas necessidades na rua, em banheiros químicos. Foi ele que me deu o primeiro café da manhã, quando acordei neste lugar, totalmente desmemoriada, sem saber me virar para nada.
É incrível como eu e muitas pessoas conseguem sobreviver nas ruas, se a pessoa souber, onde e quando vão estar os voluntários com suas doações, conseguirão o necessário para sua sobrevivência. Tinha dia e hora certos para cada grupo entregar seus chamados donativos. Foi assim que fui crescendo, driblando daqui e dali, sendo ajudada por quem nunca vi na vida.
Depois da violência que sofri, para me defender, pedi ao Rui para me ensinar a lutar. Ele me levou a um grupo que ensina capoeira debaixo da ponte. No início, fiquei só observando e depois de alguns dias, comecei a imitar o que faziam. O professor viu minha "performance" e me convidou para ingressar em sua turma de alunos e comecei a ter aulas com eles.
No final, estimulou outras crianças a aprenderem também. Tudo debaixo do viaduto.
As pessoas que me abandonaram naquele lugar, tatuaram no meu braço, o nome Guilhermina, 5 anos e acrescentaram +1, com caneta, daí veio meu nome e idade.
Aprendi muitas outras coisas, mas no momento, minha preocupação é não me deixar pegar por um tal:
GATUNO!