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Teodora Pires
Aquela noite foi como tantas outras, cercada por lembranças e sentimentos contraditórios. Eu me encontrava na sala de estar da casa, onde Lucilene sempre guardava suas garrafas de vinho barato na prateleira empoeirada. Como de costume, eu tinha acabado de chegar em casa depois de um longo dia de trabalho e buscava algum alívio para as tensões do dia.
A vida com Lucilene nunca foi fácil, no entanto, ela era uma presença constante desde que perdi meus pais aos quinze anos. Eles eram amigos próximos, e ela sentiu que era sua obrigação cuidar de mim após a tragédia. Eu fui morar com ela e, desde então, tenho permanecido em sua casa. Ela sempre insistiu que era minha responsabilidade estar ao seu lado enquanto ela envelhecia, e isso se tornou um fardo que carreguei silenciosamente ao longo dos anos.
Naquela noite, enquanto observava a garrafa de vinho barato na prateleira, uma sensação de rebeldia começou a se formar dentro de mim. Eu me sentia sufocada pelas obrigações que Lucilene impunha sobre mim. Era como se eu estivesse presa em um ciclo interminável de dependência emocional.
Com o coração acelerado, estendi minha mão e peguei a bendita garrafa de vinho. Foi um gesto pequeno, mas suficiente para desencadear a tempestade que estava por vir. Lucilene entrou na sala naquele exato momento, seus olhos fixos em mim e na garrafa em minha mão. Um misto de raiva e decepção transparecia em seu rosto enrugado.
Ela não precisou dizer uma palavra. Seus olhos falavam por si só. Eu sabia que estava desafiando sua autoridade, quebrando as regras não escritas que ela havia estabelecido. Mas naquele momento, senti uma urgência dentro de mim, uma necessidade de me libertar das amarras invisíveis que me prendiam a essa vida que não era minha.
Lucilene começou a fazer um escândalo, suas palavras cheias de desaprovação ecoando pela sala. Seus gritos ecoaram como um lembrete constante de minha suposta dívida com ela. Mas, naquele momento, decidi que já era hora de buscar minha própria felicidade, mesmo que isso significasse enfrentar o caos e a incerteza.
Com coragem renovada, olhei nos olhos dela e disse que era hora de seguir meu próprio caminho. Não seria mais sua responsabilidade me proteger ou cuidar de mim. A vida tinha me dado uma segunda chance, e eu estava determinada a aproveitá-la.
Enquanto as palavras escapavam de meus lábios, uma mistura de surpresa e tristeza atravessou o rosto de Lucilene. Talvez ela não esperasse que um dia eu me rebelasse contra suas expectativas. Naquele momento, eu me sentia forte o suficiente para enfrentar o mundo, mesmo que isso significasse perder a única figura familiar que restava.
Saí da sala de estar com a garrafa de vinho em mãos, deixando para trás a vida que havia sido construída sobre obrigações e deveres. Era hora de descobrir quem eu realmente era, longe das sombras do passado e das expectativas impostas sobre mim. E, enquanto fechava a porta atrás de mim, senti uma mistura de medo e esperança, sabendo que a jornada que se seguia seria desafiadora, mas finalmente seria minha própria jornada.
♡♡♡
Um mês havia se passado desde que eu tomei a decisão de deixar a casa de Lucilene em busca da minha própria liberdade. Aos vinte e oito anos, eu estava determinada a encontrar meu caminho e descobrir quem eu realmente era. No entanto, a realidade nem sempre segue nossos planos, e eu me vi envolta em outra situação embaraçosa.
Eu estava morando em um apartamento barato, que mal poderia ser chamado de lar. A sensação de independência ainda estava fresca em minha mente, mas as responsabilidades que vinham com ela estavam começando a pesar sobre meus ombros. Eu estava tentando me sustentar trabalhando em um emprego temporário, enquanto buscava minha verdadeira paixão e um futuro mais promissor.
Foi em uma noite de sábado, quando decidi aproveitar um pouco da minha liberdade recém-encontrada, que tudo deu errado. Eu me deixei levar pela atmosfera vibrante de uma boate, mergulhando em uma noite de diversão e despreocupação. A música alta pulsava em meus ouvidos, enquanto eu me permitia dançar sem inibições.
No entanto, a tragédia espreitava nas sombras, pronta para me lembrar de que nem tudo era tão fácil como eu havia imaginado. Em um momento de descuido, acabei tropeçando nas escadas da boate, desequilibrando-me e caindo de forma desajeitada. O som do meu próprio grito ecoou pelos corredores, misturado aos risos e conversas animadas que me cercavam.
Quando finalmente me recuperei do impacto, percebi que algo estava errado. Uma dor intensa latejava em meu braço, fazendo-me perceber que algo estava seriamente errado. O constrangimento tomou conta de mim enquanto as pessoas ao meu redor paravam para me observar, a música e a alegria momentaneamente interrompidas por minha queda desastrosa.
Com lágrimas de dor e constrangimento nos olhos, tentei me levantar, entretanto, logo percebi que isso não seria possível. Meu braço estava quebrado, minha liberdade agora aprisionada em gesso e dor. A humilhação era esmagadora, e eu sentia os olhares curiosos e condescendentes sobre mim.
Fui ajudada por alguns funcionários da boate e levada para um lugar mais calmo, onde pude recuperar um pouco da compostura. Lá estava eu, aos vinte e oito anos, com um braço quebrado e incapaz de trabalhar, dependendo novamente da generosidade dos outros.
Enquanto sentia a dor latejante em meu braço, uma mistura de frustração e vergonha tomou conta de mim. Eu havia deixado a casa de Lucilene em busca de liberdade e autodeterminação, mas agora me via em uma situação vulnerável e humilhante. Era um lembrete doloroso de que a liberdade vem com suas próprias consequências e responsabilidades.
Naquele momento, eu percebi que a verdadeira liberdade não era apenas sobre romper laços e buscar prazeres passageiros. Era sobre assumir responsabilidade por minhas escolhas e enfrentar as consequências, mesmo quando elas eram dolorosas e embaraçosas. Eu sabia que tinha que encontrar uma maneira de me reerguer, aprender com meus erros e continuar em busca da vida que eu desejava construir para mim mesma.
Joaquim um amigo de longa data acabou indo morar comigo para me ajudar em tudo que precisasse. Me sentia mal por estar dependendo de alguém que eu sabia que nutria mais do que sentimentos de amizade por mim. Ele se aproximou de mim me trazendo um copo de suco.
— Ah, Joaquim, que gentileza sua preparar um suco de laranja para mim! Obrigada, estou realmente com sede.
— De nada, Dora! Fico feliz em poder ajudar. Afinal, é bom cuidar um pouco de você depois de tudo o que você passou ultimamente.
— É verdade, a vida tem sido um desafio, mas estou determinada a superar esses obstáculos. E ter você ao meu lado como um amigo é reconfortante.
— Sempre estarei aqui para você. Sabe, às vezes as dificuldades podem nos mostrar o quanto as pessoas ao nosso redor são importantes. Eu admiro sua força e resiliência.
— Obrigada, Joaquim. Suas palavras significam muito para mim. É bom saber que tenho alguém em quem confiar. E esse suco de laranja está delicioso, por sinal.
Apesar de toda a jornada que eu havia percorrido, eu ainda sentia um vazio dentro de mim. Era como se algo estivesse faltando, como se eu estivesse em busca de algo mais profundo e significativo. Eu estava determinada a encontrar a verdadeira felicidade, mas ainda não sabia exatamente onde encontrá-la.