Pobre menina rica
Natasha Bertolini
Abri meu closet e separei um vestido de corte simples, clássico. Tudo o que queria era passar desapercebida na festa de Raquel.
Ele era um pouco acima do joelho, moldava meu corpo e valorizava minhas formas. Deixei para trás as várias opções de vestidos, todos caros, a maioria do nosso estilista Rodolfo Miller. Vestidos com estampas e modelos exclusivos. Tudo porque, mamãe tinha pavor de vestir algo e encontrar alguém vestindo o mesmo.
Meu pai era um rico empresário, dono de um grande estaleiro. Arnold Bertolini era o maior fabricante de barcos a vela de todo o país. Lutou muito para chegar aonde chegou. Embora tenha herdado o estaleiro com a morte de seus pais. Filho único, prosperou sozinho o negócio.
Sempre foi muito popular um grande frequentador de festas da alta sociedade. Hoje ele estava mais pacato, parecia que estar cansado dessa vida.
Sua popularidade acabou caindo sobre mim. Quando eu o acompanhava em alguma festa, todos os olhares se voltavam pra mim. Eu era vista como a filha de Arnold Bertolini, a garota mimada, filhinha de papai e única herdeira de uma grande fortuna.
Lucinda, minha mãe, teve problemas para engravidar, e quando engravidou teve uma menina, para a grande frustração de meu pai. No fundo ele queria ter tido um filho, ele nunca escondeu isso. Minha mãe tentou engravidar novamente, mas sem sucesso, para sua grande frustração.
Adotar?
Meu pai era preconceituoso, por isso não quis adotar um menino. Ele se sentia o todo poderoso, sangue azul. Jamais adotaria um bastardo.
Suspirei.
Detestava ser filha única, meu pai chegava aos extremos de investigar todas as pessoas que faziam parte de meu círculo de amizades. Arnold só permitiu minha amizade com Raquel, de origem mais simples, pois ela era filha de um respeitado Cardiologista do Hospital São Miguel.
A conheci no hospital quando acompanhava meu pai em uma uma consulta. Raquel estava sentada em um banco no corredor do hospital e aguardava seu pai, Dr. Jonas Forest, para irem ao teatro. Eu me sentei ao lado dela e começamos a conversar. Como a consulta demorou, passamos um bom tempo conversando.
Pela primeira vez, fazia amizade com uma pessoa de classe inferior à minha. Isso despertou minha atenção e o desejo de conhecer mais esse meio. Logo gostei dela. Descobrimos muitas afinidades. Tínhamos o mesmo gosto musical, inclusive, assistimos e curtimos os mesmos filmes. Desde esse dia, não nos separamos mais e Raquel passou a frequentar minha casa. Não éramos muito íntimas ainda, pois tínhamos pouco tempo de amizade, exatos três meses.
Com o tempo eu comecei a enxergar em Raquel uma garota diferente do que eu imaginava. Ela era muito superficial, isso me decepcionou um pouco. Diferíamos muito na maneira de encarar a vida. Ela amava o luxo, a riqueza, já eu amava as coisas simples e a liberdade dela. Meu meio já era assim, pensei que encontraria uma pessoa diferente nela.
Poucas vezes fui à casa de Raquel. Um dos motivos era que Raquel se sentia constrangida por ser de origem humilde, então não fazia questão nenhuma que eu fosse lá. Já, ela adorava minha casa, geralmente passamos o final de semana juntas, de papo para o ar, na piscina, na sala de jogos, ouvindo música, caminhando pelos arredores da mansão.
Ela sempre me dizia o quanto eu era uma pessoa de sorte, como eu era bem-aventurada.
Engraçado... ela conhecia a minha vida de controlada, sabia o que eu passava com meu pai. Muitas vezes eu me perguntava se ela se sujeitaria a ter tudo que tenho com o pai que tenho? Será que essa parte ela queria? Acredito que não! De longe tudo era lindo e maravilhoso....
Fechei os olhos e balancei a cabeça.
Eu adorava ir à casa de Raquel, aquela simplicidade toda me atraía. Adorava almoçar lá. Seu pai era um amor de pessoa. Sempre muito bem-humorado. Lá eu podia comer a vontade, sem a sombra da minha mãe no meu pé, controlando a minha fome com medo de eu engordar. Podíamos conversar e brincar nas refeições. Muito diferente de minha casa, sem aquela pompa toda, com todo aquele ritual de empregados servindo, e aquela conversa fria, respeitosa que tanto me irritava.
Constatei ao longo desses anos que ser rica não era sinônimo de felicidade. Eu preferia as pessoas do que o material, eu preferia a natureza do que o concreto, eu preferia um bolo de milho, do que caviar... eu definitivamente, não estava ligada ao meu material. Na verdade, até invejava Raquel, no bom sentido. Se tivéssemos o direito de escolha antes de nascer, eu escolheria nascer no lar dela. Um lar de gente simples de coisas simples...
Sempre me senti a pobre menina rica, Roger, o nosso chofer me levava para os lugares controlados pelo meu pai. Caso eu quisesse usar meu carro, sempre tinha um segurança na minha cola.
Arnold ditava minha vida o tempo todo. A maior parte das vezes, eu me sentia frustrada.
Me formei em administração de empresas, na luta. Ele me controlou o tempo todo: de casa para a faculdade e da faculdade para a casa.
Para que segurança na cola se eu não podia ir aonde eu quisesse? Acho que ele tinha medo que eu conhecesse alguém, que eu me apaixonasse por algum homem de classe inferior à minha. Não havia outra explicação.
Agora formada, vivia ociosa. Quando eu reclamava, a sua resposta era sempre a mesma:
“Tenha paciência. Você logo assumirá os negócios da família”.
Essas falas se repetiam há um bom tempo, mas esse dia não chegava nunca...
Agora ele deu para fugir do assunto e eu me perguntava se eu chegaria a conhecer algum dia o que era o dia-a-dia normal das pessoas que trabalhavam e estudavam.
Senti um aperto no coração. Abaixei a cabeça e soltei o ar com tristeza. Com vinte e dois anos, infelizmente, eu não era dona de meu próprio nariz, tudo que eu fizesse, precisava o consultar antes.
Lucinda o apoiava em tudo. Ela se anulava por causa dele, isso já lhe era natural. Minha mãe não entendia que a diferença entre nós duas era que:
· Ela tinha feito sua escolha em viver sob o domínio de meu pai, que era extremamente machista.
· Mas eu não, isso me era imposto. Eu não escolhi viver assim.
Tudo isso me tem me trazido uma grande revolta....
A dramaticidade aumentou desde que ele teve um leve problema no coração por causa do estresse. Ah... aí ele começou a usar esse tipo de chantagem emocional comigo. Tudo para alcançar seus objetivos.
Quando ele via a minha resistência para qualquer coisa imposta por ele, Arnold ficava afetado, colocava a mão no coração e dizia que eu era uma filha ingrata e que eu levaria seu frágil coração a enfartar. Que seu coração não ia aguentar...
Eu nunca sabia até que ponto aquilo tudo o afetava de verdade...
Suspirei.
Com medo de meu pai ter um treco, eu saía triste, e geralmente ia chorar no meu quarto, podada e frustrada.
Só que essa minha passividade diante de tantas coisas, já estava me fazendo mal. Estava me trazendo uma grande tristeza. Eu não conhecia a palavra “realização. ”
Realização profissional, sentimental. Ter voz ativa...
Eu me sentia como se vivesse segundo a vontade e a realização de alguém, no caso “meus pais”, que ditavam minha vida, como se eu não tivesse vontade própria. Nos arquivos de minha memória, eu via o quanto eu me anulava, o quanto eu abria mão de meus sonhos.
De que adianta eu estar cercada de luxo e infeliz?
Uma mera expectadora! Isso que eu era!
Apenas observava a vida passar diante de meus olhos, sem poder interferir no meu futuro, sem poder ditar minhas escolhas.
Meus pais infelizmente, não me conheciam, embora convivêssemos no mesmo teto durante uma vida inteira. Eles definitivamente não entendiam o meu lado enfadado e desinteressado pelo meu meio social e tão fútil. Isso tudo gritava silenciosamente no meu peito. Ou... até sabiam, mas como tudo, eles ignoravam minhas vontades. E pensando bem, isso era o mais provável. Por isso, me alegrei muito de ter conhecido Raquel, passei a conhecer um lado da vida que me fora negado, desconhecido. E eu me apaixonei pela simplicidade das pessoas.
Elas com certeza eram mais verdadeiras, pois falavam o que pensavam sem se importar com o que os outros iriam pensar, sem se importar com etiquetas, roupas de grife. Muito diferente da vida que eu levava. Onde meu pai adorava convidar seus amigos ricos que participavam de banquetes em nossa casa. Tudo muito regado a champanhe, caviar, conversas fúteis, cheios de etiqueta.
Comecei então, de uns tempos para cá, a perceber algo que passou a me incomodar e muito: as festas e os jantares, que papai bancava, tinham como única finalidade a de me casar com alguém do nosso meio.
Ah, mas isso não funcionou, para a frustração de Arnold. Não era pirraça, eu simplesmente não conseguia me ligar a nenhum deles.
Os homens do meu meio eram tão vazios. Totalmente broxantes e desinteressantes. Uns playboys, que nunca lutaram por nada na vida. Além de tudo isso, ainda existe um grande agravante: Se eu me casasse com algum deles, eu repetiria a vida de minha mãe. Seria a sombra de meu marido. Ou seja, sem cérebro. Me anularia, viveria para satisfazer a vontade de meu marido.
Ah... Eu me negava a ter esse tipo de vida!