Capítulo 6
Dois dias se passaram e poucas pessoas sabiam que Alice havia sido sequestrada. Por ordem dos sequestradores, nas ligações que se sucederam, em diversos horários diferenciados, tudo era mantido em sigilo. Apenas os familiares mais próximos, além de Karina, sabiam tratar-se de sequestro.
Nas conversas com os sequestradores intrigava o fato de não falarem em dinheiro. Diziam que Alice estava sendo bem tratada e que logo seriam informados do pedido de resgate.
Karina mostrava-se apavorada e insegura com os últimos acontecimentos envolvendo seus sócios. O desaparecimento de Jonas lhe parecia ainda mais grave, pois nada se sabia. Não havia recebido nenhuma ligação informando seu paradeiro e não se sentia à vontade para procurar Miguel e contar-lhe a situação.
O primeiro contato com o detetive não lhe causara boa impressão. Estava mais temerosa em relação à sua própria segurança, mas procurava não demonstrar sua aflição. Enquanto cuidava normalmente dos afazeres na empresa, acompanhava os noticiários pela TV e computador.
Ao atualizar sua agenda, enquanto lia os e-mails, lembrou-se que as pressões de fornecedores haviam cessado, logo após o afastamento de Jonas.
Uma sensação ruim passou-lhe pela cabeça por alguns instantes, com a hipótese de que o sequestro de Alice teria alguma ligação com as pressões que vinha recebendo e com o fato de Jonas também ter desaparecido.
— Estranho, o pessoal parou de fazer pressão. Será que devo ligar para Miguel e dizer isso? Não confio nesse cara. Jonas desaparecido, Alice sequestrada. O que estão reservando pra mim? Caceta! Estou fodida. Se eu ligar para Miguel pode ser que ele me ajude. Difícil é confiar nessa mala sem alça. — Bradou, falando sozinha em seu gabinete.
Já ao final de mais um dia de trabalho, por alguns instantes, percebeu-se só e acuada. Ainda que não tivesse sido vítima de nenhum ato violento, a sequência de situações desfavoráveis, envolvendo pessoas de seu relacionamento a incomodava.
Um imenso vazio em seu coração doía-lhe a alma. Há algum tempo não se sentia daquela maneira. A independência e a personalidade forte faziam parte de seu caráter. Tudo o que possuía conseguiu com seu próprio esforço e determinação. Havia trabalhado muito para chegar aonde chegou, com tão pouca idade e soube aproveitar a maioria das oportunidades que lhe surgiu.
Ainda muito jovem deixara a casa dos pais fazendeiros para estudar e trabalhar. Em sua busca pela autoafirmação, mal teve tempo de sentir a falta dos pais, os quais visitava periodicamente.
Permitiu-se naquele momento alguns segundos de reflexão, que fez brotar-lhe lágrimas dos olhos. Karina naquele momento queria colo.
Pôs-se a chorar sozinha em meio à papelada de trabalho.
◆◆◆
O voo com destino a Natal estava lotado e Simão, em outra de suas incansáveis viagens, lia mais uma vez seu livro predileto — O Príncipe, de Maquiavel. — DE HIS QUI PER SCELERA AD PRINCIPATUM PARVENERE — Há, porém, ainda duas maneiras de tornar-se príncipe o homem comum, as quais não podem ser inteiramente atribuídas ou à sorte ou ao merecimento, e não me parece que deva deixá-las de lado, embora de uma delas se possa mais extensamente falar no lugar em que se discorrer sobre as repúblicas. São elas: quando, por qualquer forma criminosa ou nefanda, se ascende ao principado; e quando, mediante o favor dos seus concidadãos, torna-se alguém príncipe de sua pátria.
Em Natal era aguardado para um encontro com Abdul. Alguns planos tiveram que ser modificados às pressas. As prisões frequentes que vinham sendo efetuadas pela Polícia Federal nas regiões que controlavam, estavam desestabilizando parte da organização. Simão fora informado por telefone, minutos antes de embarcar para Natal, da ação da polícia em uma área de fronteira com a Bolívia.
Houve troca de tiros e mortes. Foram feitas várias prisões em uma das áreas utilizadas para extração e contrabando de minérios. Policiais federais e soldados do exército sobrevoaram o local de helicóptero e, em seguida, diversas viaturas aproximaram-se para dar voz de prisão aos controladores da área. A reação foi imediata.
Os bandidos, fortemente armados, encararam os militares, demonstrando todo seu poder de fogo. Tiros ricochetearam de vários pontos da área de garimpo e nos ranchos instalados nas proximidades.
Helicópteros das forças armadas dirigiram-se ao local, prevendo a forte reação dos bandidos. Paraquedistas armados como se estivessem numa guerra, saltavam em pontos estratégicos.
Balas traçantes, um tipo de munição com uma pequena carga pirotécnica em sua base, tornando visível a sua trajetória, vindas de todos os lados, riscavam o espaço até detonarem os alvos em mira.
Corpos, ensanguentados e mutilados pela ação das poderosas armas de fogo, estatelavam ao chão. A rendição tornou-se inevitável.
Para Simão as facções estavam sendo vítimas de delação, opinião compartilhada com Abdul. Pela Janela do avião Simão avistou o verde mar do litoral nordestino.
Minutos depois a aeronave tocou o solo. Dois integrantes da facção liderada por Abdul o aguardavam no saguão do aeroporto. Em poucos minutos deslocaram-se de carro até um hotel do litoral potiguar.
Assim que se acomodou em uma das suítes do hotel, Simão dirigiu-se ao encontro com Abdul, que o aguardava em outra suíte no mesmo pavilhão.
Abdul estava de costas, com as mãos nos bolsos da calça e os olhos fixos para o mar, que observava da janela de sua suíte.
Um dos seguranças anunciou a chegada de Simão. Abdul nem se mexeu, dizendo apenas para que Simão se assentasse e se servisse à vontade de bebidas e petiscos que estavam em uma mesa.
Simão percebeu o clima tenso, apesar da hospitalidade. Serviu-se de alguns salgados e uma taça de vinho. Sem tirar os olhos da vista para o mar, Abdul quebrou o silencio do ambiente.
— Bela paisagem, você não acha Simão?
— Acho sim, isso é um verdadeiro paraíso. — Simão respondeu, aproximando-se da janela.
— Lindo país, o de vocês. Em todo o canto uma beleza diferente, uma cultura diferente, um modo de falar específico de cada local.
— É verdade. — Respondeu Simão com um sorriso amarelo e olhando para os seguranças postados ao lado da porta, sem entender o rumo da conversa.
— Quanta riqueza natural, minério em abundância, reservas e mais reservas inexploradas e ao mesmo tempo, quanta miséria, quanta pobreza, quanta desigualdade.
Simão, meio constrangido e sem saber o que dizer, apenas assentia.
—Verdade, resmungou.
— Bom, não foi para elogiar seu país ou discursar sobre as mazelas sociais dele que te chamei aqui e você sabe disso.
Bruscamente, ainda com as mãos no bolso, Abdul virou seu corpanzil e se aproximou de Simão.
Totalmente calvo, sua careca reluzia à luz refletida pela janela. Usava um cavanhaque bem aparado, com alguns pelos já embranquecidos e óculos de sol de lente muito escura.
— Como ficou a questão do sequestro? —Indagou, aproximando-se da mesa com bebidas e petiscos para também servir-se de uma taça de vinho.
— Suspendemos, seguindo sua ordem. —Simão respondeu, levando a taça de vinho à boca para mais um gole.
— Correto. Resolvi mudar os planos em função de outros acontecimentos de caráter pessoal. A Polícia Federal está em nosso encalço. A qualquer momento podemos ser surpreendidos.
— Sim, eu também acho. Tem muito informante infiltrado na organização. Talvez seja interessante um recuo estratégico. — Disse Simão, bebendo o resto de vinho.
— Estou propenso a facilitar uma rendição. Tanto meu nome, quanto o seu já estão na mira da polícia como líderes da organização. Se formos presos isso poderia acalmá-los.
— E aí passamos a comandar tudo de dentro da prisão. — Simão emendou, servindo-se de mais uma taça de vinho.
— Exatamente! Você passaria a comandar.
— Eu, somente? — Simão fez a pergunta, já tentando adivinhar a resposta.
— Como lhe disse, questões de ordem pessoal me fizeram mudar alguns planos. Meu país, diferente do seu, está passando por momentos difíceis e penso que chegou o momento de colaborar mais com meus patrícios e as causas de meu povo. Viajo para o Líbano na próxima semana e me integro aos grupos de oposição ao governo de Israel.
Simão já pressentira que Abdul tomaria esse tipo de decisão. As notícias sobre os conflitos no Oriente Médio não cessavam na mídia, assim como o noticiário sobre corrupção e violência urbana, no Brasil. “Cada um com sua guerra. A do Brasil não lhe pertencia”, pensava Abdul.
— De agora em diante todo o esquema ligado à comercialização de pedras, ouro e prata só diz respeito a você. As ramificações ligadas ao tráfico de drogas ficam a seu critério continuar ou não explorando. Tem muita gente na parada, você é quem sabe.
— E as armas? — Simão perguntou com curiosidade.
— Dessas eu não abro mão. Tenho tudo sob meu controle e todos os canais de que preciso.
— Veja se entendi. Você está abrindo mão de toda a participação nos negócios feitos no Brasil, envolvendo minérios e entorpecentes e passando para meu controle?
— Não estou abrindo mão. Só estou passando o comando agora. Está começando uma guerra que não é minha. Nossa organização está ligada a uma grande rede internacional. Tudo está interligado, mas cada país tem suas características e suas próprias guerras internas. Faça tudo da forma que achar melhor. O poder está em suas mãos. Você já conhece todos os atalhos políticos para obter ainda mais poder. Faça valer os seus argumentos. Você sempre nos falou sobre os benefícios que nossos negócios geram para comunidades tidas com excluídas. Movimentamos milhões, geramos emprego e renda para muitas comunidades não assistidas pelos poderes legalmente instituídos. Somos um poder paralelo, capaz de desestabilizar o estado. Portanto, chegou sua vez de colocar seu discurso em prática. Essa guerra te pertence.
Simão encheu-se de orgulho pelas palavras de seu líder. A conversa entre Abdul e Simão durou horas e foram acertados todos os detalhes da cisão entre os dois, com a consequente partida de Abdul. Simão, braço direito de Abdul, passaria a partir de então a chefiar toda uma organização criminosa com diversas ramificações e várias atividades em andamento. Simão necessitaria eleger o seu escudeiro.