CAPÍTULO 1 - MELISSA
MELISSA
—Mel? —A voz grave e cansada sussurra meu nome, a intensidade do timbre abala minhas pernas e tenho que segurar forte no corrimão da escada para me manter de pé.
—Sim, Lorenzo? —Vejo seu maxilar apertar, a coloração rosada deixar sua mão direita com a pressão que ela exerce sobre o copo com uísque e temo que o vidro se parta.
Ele odeia quando o chamo pelo nome completo.
Bom, eu odeio quando bebe sem parar, estamos bem iguais aqui.
—Não me chame assim. —Ele protesta, claramente afetado pela bebida, quando sua voz sai arrastada e rouca.
Suspiro desanimada.
Eu não consigo lidar com ele assim nesse momento.
—Desculpe, tio. —Seus ombros relaxam em resposta.
Desço mais um degrau, faltando apenas quatro para que meus pés encontrem o chão e sigam ao seu encontro, o único caminho que eu sempre quero percorrer.
—Você deveria estar dormindo, princesa.
—Não consegui. —Explico, me sentindo corajosa o suficiente para descer mais dois degraus de uma vez.
Agora é sua vez de suspirar. Exausto demais para começar uma briga. Eu o agradeço em pensamento por isso, me mantendo em silêncio enquanto espero sua próxima fala.
—Desculpe. —Pede. Franzo o cenho, juntando minhas duas sobrancelhas.
—Era nossa responsabilidade cuidar de você. —Se antecipa em explicar.
Cerro meus punhos e encaro o branco da parede.
Você não tem culpa. Quero falar, mas meus lábios não me obedecem.
O silêncio se estabiliza e ele põe o copo com o Uisque na mesinha à sua esquerda.
—Quando seus pais morreram e a deixaram sobre nossa responsabilidade, eu deveria ter estado mais presente na vida de vocês duas. No entanto, não o fiz. A vontade de crescer financeiramente e oferecer uma vida mais confortável, segura para ambas falou mais alto.
Meu coração dispara. Falar dos meus pais em uma situação como essa só faz a dor aumentar. Eu era tão pequena para ter seus rostos frescos em minha memória.
—A culpa não foi sua. —Falo, tentando levar algum alento ao seu coração quebrado.
Mais suspiros, mas sou incapaz de falar se estão saindo de mim ou dele. Sua respiração sempre foi tão audível em momentos semelhantes a este.
Seu corpo se ergue do sofá e ele passa a bagunçar os fios negros do cabelo, por quase um minuto o observo de longe, os ombros tensos como se estivessem sobrecarregados demais para relaxar, a pele dourada pelo sol sem o brilho costumeiro, o rosto marcado por uma expressão cansada e sombria .Desço mais um degrau, coloco toda minha força de vontade para não correr para seus braços e confortá-lo. Ele grita para o nada, como um animal encurralado e sei que é uma forma de expulsar a raiva do seu corpo, no entanto, isso me impede de ter qualquer avanço na nossa aproximação.
—Eu devia ter percebido que ela tinha voltado com isso. Fui tão cego. —Diz e não posso deixar de me prender em suas palavras.
—Voltado? —Pergunto, avaliando cada reação do seu corpo.
—Sim, após a morte da sua mãe Solange entrou em depressão, ela não conseguia suportar a ideia de que perdeu a única irmã em um acidente de trânsito banal.
Calafrio percorre minha espinha.
Lembranças.
Lembranças.
Lembranças.
Eu tinha apenas cinco anos, tudo aconteceu um pouco depois do casamento dele com tia Solange.
—Ela passou a beber, no começo não prestei tanto atenção. Estava preocupado com o seu bem-estar, você era tão pequena e frágil. —Seus olhos me buscam, nunca consegui descrever o amarelo deles, mas sempre gostei de pensar que são tão doces como caramelos. Odeio vê-los tão tristes e culpados.
—Não foi culpa sua.
—Ela virou uma alcoólatra. —Sussurra de volta, renegando minhas palavras.
—Não foi culpa sua. —Repito.
—Era minha obrigação cuidar dela. A culpa é totalmente minha, Melissa. —Rosna.
Não contenho as lágrimas que descem pelo meu rosto, olhando para seu olhos transtornados e perdidos sinto medo de perder mais alguém. A única que me restara.
Continuamos nos encarando, as veias do seu pescoço parecem que vão explodir e jorrar sangue por toda a nossa sala.
Balanço a cabeça para afastar as lágrimas.
—Ela mentiu pra nós dois, fingia ir para o grupo de reabilitação quando na verdade ia pra um bar.
—Você não entende. —Dispara, bagunçando ainda mais os fios negros com as mãos, visivelmente abalado, cheio de fúria.
—Eu amava a minha tia, faria qualquer coisa para está no lugar dela e aliviar sua dor.
—Não fale isso nunca mais. —Seus pés seguem rápido em minha direção e suas mãos se fecham em meus braços, apertando o suficiente para causar marcas. —Eu não suportaria te perder. —Confessa. —Eu não posso perder você. —Fala em tom baixo, como se estivesse contando um segredo. O puxo para mais perto.
—Você não vai. – –Falo. Seus braços me envolvem no abraço mais protetor e desesperado que já recebi.
—Ela morreu de overdose em um lugar sujo e sozinha, Mel. E, eu nem sei o motivo dela estar em um lugar como aquele.—Admite, enfiando o rosto na curva do meu pescoço, jogando de forma inconsciente um pouco do seu peso corporal pra cima do meu.
Eu sei de toda a história. Ouvi o médico explicar antes de ser expulsa de lá, mas não falo pra ele.
—Vou te tirar daquela escola interna, você não sairá de perto de mim nunca mais, ok? Vou ficar de olho e não deixarei nada te acontecer, guarde isso no seu coração e mente, porque é uma promessa. —Apenas aceno contra seu peito, não desejando qualquer outro lugar além dos seus braços.
—Vá dormir, o enterro é amanhã cedo. —Seus lábios deixam um beijo casto em minha testa e subo para o quarto. Fico acordada até o sol nascer.
O lugar e as sensações são familiares pra mim, o procedimento é o mesmo. Apesar de algumas pessoas que estão aqui serem totais desconhecidos, o discurso não muda, sempre é o velho " vai ficar tudo bem, querida" e o "sinto muito pela sua perda". A maioria já tem essas frases programadas que nem percebem que estão falando. Eles nem sequer entendem o sentimento de perder alguém tão próximo.
Deixo uma rosa branca em seu caixão que logo começa a descer na cova, tia Solange só tinha trinta anos e era uma das mulheres mais bonitas que conheci, apesar de seu fim tão decadente. Sei que o alcoolismo é uma doença, mas apesar de tudo, ela me deu amor e me ensinou a amar. O lugar que tio Enzo escolheu é lindo, apesar de ser um cemitério. Tem um belo jardim aos arredores.
—Essa menina não tem sorte, perdeu toda a família. —Alguém sussurra ao meu lado e meu corpo tensiona. Lorenzo me aperta ao seu lado, descando uma de suas mãos em minha cintura.
—Não ligue para elas, sou sua família e cuidarei de você.—Ele afirma, beijando o topo da minha cabeça.
—O que será da pobrezinha? O tio não é o tio dela de verdade. —A mulher volta a falar. —A mão de Lorenzo me aperta mais forte.
Quem são essas mulheres, afinal?
—Ela ainda é de menor, aposto que será mandada para um orfanato. —Uma delas fala.
—Oh, deve ser verdade. – –Uma outra concorda e ganham um olhar severo do meu tio.
—Não se preocupe, ninguém vai tirar você de mim, princesa. Estou cuidando de tudo. —Ele diz com tanta certeza que aperto sua mão em resposta.
Ficamos ali, representando a única família viva de titia, protegendo um ao outro dos comentários maldosos que de vez ou outra chegavam aos nossos ouvidos, até o padre terminar a última oração e ele precisar se distanciar para jogar o primeiro punhado de areia sobre o caixão da mulher que me criou.
Ainda acho que ela preferiria ser cremada, mas nunca conversamos sobre isso de fato, então faço o mesmo que ele e imito sua ação.
As pessoas começam a se dissipar de forma gradual, evitamos qualquer início de conversas ou convites, apesar de alguns terem sido feitos por colegas e amigos próximos de titia.
Encaro o homem de ombros largos enquanto ele trabalha para dispensar a diretora da escola onde titia trabalhava e noto a falta de gravata em seu terno negro, a aparência cansada e as olheiras embaixo dos olhos.
—Vamos. —Ele entrelaça sua mão na minha e dispensa a mulher de meia idade, me puxando de forma grosseira no sentido da saída, evitando grupos de desconhecidos pelo caminho.
—No que está pensando? —Pergunta, após entrarmos no carro.
—Nada. —Dou de ombros e ele me olha com a sobrancelha esquerda erguida.
—Você estava séria demais pra alguém que não pensava em "nada", princesa.—Debocha da minha resposta.
—Só observando o como você parece péssimo. —Tento descontrair, mas falho miseravelmente e ele me encara ressentido.
—Eu deveria parecer bonito? —Pergunta sem humor.
—Alguma vez na vida. —Sorrio, para que saiba que estou brincando.
É a minha forma de lidar com a dor. Procurar por escapes e rotas de fugas.
Ele me avalia. Puxa um sorriso de canto de boca e diz:
—Você está sempre péssima, Melissa Fontana. —Bato no seu ombro.—Você começou. —Justifica, sorrindo de forma condescendente para alguma piada interna em sua cabeça.
—Tire essa barba quando chegarmos em casa.
—Você anda muito mandona, querida. —Me adverte sem tirar os olhos do trânsito.
—Isto não é uma novidade.—Falo e ganho um sorriso, ele pega minha mão e a leva até os lábios, beijando a palma.
—Obrigado.—Murmura.
Não Pergunto o motivo, pois sei que se refere a toda nossa recente conversa e minha tentativa de tentar deixar as coisas normais de novo. Coloco minha cabeça em seu ombro e seguimos nessa posição até em casa.
—Vá pedir para Olga fazer algo pra você comer.—Diz, assim que descemos do carro.
—E, você? —Questiono.
—Não estou com fome. —Fala, evitando meu rosto quando aperta o botão do nosso andar no elevador.
Quando cruzamos a porta do apartamento é como se toda a evolução de minutos atrás sumisse, ele segue em silêncio para o escritório e eu para a cozinha, encontro com Olga, nossa governanta, na metade do caminho e faço como ele instruiu, depois vou direto tomar banho, porque ao contrário dele, não estou disposta a entregar os pontos e pra isso preciso descansar.