Três
Fazia pouco tempo que Hugo dormira, mas eu sabia que logo sua barriga pediria alimento e ele despertaria novamente aos prantos. Resolvi caminhar pela praia e tentar pescar algo com as mãos. Por mais que fosse uma garotinha sem nenhum conhecimento sobre pesca, eu tinha que tentar. Não sabia se seu estômago aceitaria aquela comida e nem como prepararia para ele, mas já não poderia mais voltar à cidade para roubar, pois os guardas estavam mais atentos. Havia muitas pessoas saqueando Olom nos últimos dias e isso dificultou minha situação.
Durante o arrastar dos meus pés descalços pela areia, vi ao longe um navio atracado, próximo de uma das grutas onde eu geralmente levava meu irmão para se abrigar quando chovia. Era como se quisessem esconder a embarcação entre as montanhas e quanto mais eu me aproximava, mais vazio o local me parecia. Consegui sentir o gosto de um bom alimento descer pela minha garganta só de pensar no que havia ali dentro e se realmente era um navio clandestino, os visitantes deveriam se divertir pela cidade naquele horário. Torci para que a viagem fosse duradoura e lamentei não ter um cúmplice para cuidar da guarda durante minha busca de algo pelo lugar. Ainda que tivesse medo do que poderia acontecer, não pude deixar de arriscar. Eu tinha fome, Hugo também.
Quando já estava perto das cordas do grande barco, tive quase certeza de que não havia uma alma por ali, pois suspeitei que o silêncio não era nada normal em uma embarcação tão grande. A porta estava cerrada e meus olhos só conseguiam ver as cordas da âncora que davam acesso à proa do navio. Respirei fundo e um pouco receosa, já que meus braços não conseguiriam escalar aquilo, muito menos descer de lá depois que eu estivesse com o saco cheio de alimentos roubados. Enquanto eu pensava no que poderia fazer para entrar, ouvi vozes soarem de dentro da embarcação e, quando percebi, a passarela que dava entrada ao navio começou a descer. Corri para um amontoado de rochas ali perto para me esconder e observar bem quem sairia daquele lugar. Logo dois homens de aparências grotescas surgiram quando a rampa estava fixa na areia. Eles carregavam um objeto grande e pesado enrolado em um pano amarelado, manchado de vermelho. Ambos riam durante uma conversa estranha sobre crânios sendo explodidos.
Um deles tinha minha altura, uma cicatriz enorme no olho esquerdo e cabelos loiros escuros, com um rosto até amigável se comparado ao outro, que era um homem alto e magro, com uma mancha mais escura de cicatriz em sua pele que ia de seu olho até se perder nas roupas estranhamente sujas de vermelho. O homem mais alto deixou o objeto que carregava junto de seu amigo e retornou às pressas para dentro do navio, segurando as calças e mancando durante sua corrida. Instantes depois ele surgiu novamente com duas grandes pás e um sorriso medonho na face. Ambos começaram a cavar ali mesmo na areia e as portas do navio estavam completamente livres para eu entrar. Mordi o lábio, pensando em como sairia depois, mas, naquele instante, não deixei a oportunidade passar. Eu me escondi pelas rochas e pedras e caminhei cautelosamente até que estivesse fora do alcance de seus olhos. Em um de seus movimentos de escavação, eu me arrisquei a correr a pequena distância entre meu esconderijo e a entrada do navio sem olhar para saber se tinham ou não me visto.
Meu coração disparou quando passei pela porta e mesmo que eu quisesse admirar a embarcação por nunca ter entrado em uma, eu tinha que ser rápida e achar a cozinha antes que eu fosse encontrada. Então tratei de passar os olhos pelo local de maneira desesperada, sentindo meu ar faltar com a forma com que passei a respirar. Não foi preciso ir muito longe para encontrar as frutas e legumes em barris. Imaginei que o navio estivesse ali para reabastecer, pois tinha muita comida na parte inferior e isso me fez correr de barril em barril, enchendo as mãos com o que conseguia carregar. Em um momento, senti meus braços serem puxados com brutalidade enquanto as coisas que segurei caiam e ouvi a voz dizer:
— Sua ladrazinha infame! Vou cortar esses dedos!
Um grande arrepio percorreu todo meu corpo quando vi o homem grande e barbudo sorrir feito assassino para mim. Gritei por socorro em seguida enquanto era arrastada para o fundo do navio.
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— Hugo! — exclamei ao despertar.
Mais uma vez havia viajado durante o sono. Para uma época onde quase perdi meus dedos e talvez a vida. Sonhar com aquilo sempre me fazia questionar se ele realmente estava bem. O imperador havia me atiçado com suas palavras e acreditei ter sido por essa razão que meus sonhos voltaram a se direcionar ao passado.
— Capitão… — ouvi a voz de um dos tripulantes e franzi o cenho com a forma utilizada em suas palavras. Não era um tipo de chamado, parecia mais um aviso ou cumprimento.
O lado de fora do Safira havia ficado completamente silencioso, por isso me ergui da cadeira para caminhar até a porta, onde faria questão de gritar com aqueles preguiçosos para que retornassem ao trabalho, mas me detive quando o som do caminhar quebrou a paz da embarcação. Parecia que a madeira havia encontrado uma parceira para conversar, pois o objeto que batia contra ela fazia um ruído alto em forma de passo que em alguns momentos se detinha. “Capitão”. Repeti a palavra e logo entendi do que se tratava.
— Jones — sussurrei quando a sombra surgiu embaixo da porta.
— Cassandra — cantarolou o homem do outro lado, com sua conhecida voz envelhecida, fazendo todos os meus sentidos tremerem.
O calafrio percorreu meu corpo quando a maçaneta foi girada e pude sentir minha alma condenada sair de meu interior no instante em que o homem de barba ruiva surgiu ao abri-la.
— Capitão… — falei após engolir em seco e sair da frente da mesa que lhe pertencia.
Fazia tempo que não recebia aquela visita, mas seu rosto escondido embaixo de tanto cabelo nunca mudava. As linhas de velhice sempre estavam lá em torno de seus olhos claros e os lábios avermelhados — que sorriam abertamente de maneira assustadora — com os dentes amarelos à mostra.
— Precisa trocar o esconderijo — falou ele invadindo a cabine. — Ainda mais agora.
Jones ergueu o pergaminho pardo exatamente igual ao que Smith havia lido antes com o comunicado do mestre do império e isso me fez perceber que aquilo havia ido mais longe do que o esperado.
— Já estou cuidando disso.
— Ygor também estava e será enforcado no almoço de amanhã — me interrompeu. Sua voz saía com um tom de decepção.
— Eu acredito ter mais competência do que…
— Não tem — cortou-me ele novamente. — Sabe quem conseguiu manter o imperador todos esses anos em nossas mãos? — Jones se aproximou cautelosamente durante suas palavras. — Ygor, e estávamos sempre a um passo adiante de todos os reinos. Se o novo mestre do império não quis receber a pessoa que via sempre passando por seus portões, acredita mesmo que tu seja mais competente?
— Consegui falar com o novo imperador tranquilamente enquanto Ygor estava em uma cela. — Me vangloriei e os olhos de Jones, que já estavam em cima de mim, tomaram um ar desafiador.
— Ótimo! — O pirata abriu um sorriso ainda maior do que o anterior. — Então esse recado não tem mais valia. Suponho eu.
Seus dedos amassaram a folha com o comunicado e eu deixei, sem querer, que meu olhar demonstrasse medo ao que viria pela frente.
— Não? — perguntou ele, captando meu sinal involuntário. — Então por que ainda não foi anunciada a morte do imperador?
Fechei os olhos, assumindo de vez a derrota. No momento em que um arrepio percorreu cada canto de meu corpo, senti também a mão grande de Jones se chocar contra minha face. Ele reunira toda sua força naquele instante, fazendo o choque de seus dedos virarem meu rosto bruscamente. Senti meus dentes morderem minha língua e o gosto de ferro desceu pela minha garganta.
Levei a mão ao local golpeado e acariciei a região para amenizar a dor. Eu poderia estar sempre pronta para algo e não temer as coisas ao meu redor, mas isso só acontecia pelo fato de que todos os meus medos se concentrarem naquele homem. Aquele que havia me ensinado tudo e poderia tirar tudo de mim quando quisesse.
— Está me dizendo que encontrou o imperador e, além de não conseguir um novo acordo, o deixou vivo, Cassandra!? — vociferou. — Estavam brincando de boneca? Tomando chá da tarde?
O desdém em suas palavras e a forma de berrar suas indignações causavam ainda mais arrepios em mim.
— Eu pensei que não seria viável no momento — tentei me defender. — Pai…
— Não me chame de pai! Você perdeu esse direito no instante em que se tornou racional!
— Mas matá-lo seria… — Eu me detive antes que deixasse uma ofensa sair de meus lábios. Se Jones pensou em matá-lo, talvez eu não fosse vista de maneira tão inútil pelos homens do mar se o tivesse feito.
— Tolice? Por acaso esqueceu como se faz um trabalho sem ser vista?
— Dei um prazo ao imperador para revogar a ordem — esclareci, imaginando que aquilo amenizaria a situação.
— E quem lhe garantiu que ele não estará à sua espera com um exército?
— Tenho certeza de que o novo líder não é como o pai. — Novamente fiz uma pausa, respirei profundamente ao me recordar que apenas eu tinha aquela informação e a frase havia entregado de mão beijada meu parecer sobre Tadaki. Algo que na visão de Jones eu não tinha, pois não o conhecia.
Jones me olhou de forma espantada e segurou firme meu rosto para que eu pudesse ver as faíscas saindo de seus olhos verdes. Eu conseguia sentir naquelas faíscas que ele me analisava profundamente e, por um momento, senti como se ele sempre tivesse desconfiado do que tiraria de mim a seguir. Por mais que eu não quisesse me encrencar, estaria perdida se não deixasse a verdade escapar. Ele havia me ensinado a mentir e saberia se eu o fizesse. Eu nem entendia como havia conseguido esconder aquilo por tanto tempo, mas já não seria mais possível mentir.
— Parece que minha filha conhece bem o caráter do novo imperador — seus olhos expressivos acompanharam seus lábios e se arregalaram durante a fala. — Posso perguntar como ela sabe tanto?
— Observo bem. — Minha voz falhou devido a força que ele fazia contra minha mandíbula.
— Ah! Observa? Então se trouxer qualquer homem aqui, saberá me dizer suas intenções apenas o observando? — Ele abriu um sorriso tão amedrontador quanto os que eu conhecia de longa data. Dei novamente a resposta com minha expressão vencida. — Como?
— Capitão… — tentei me soltar de seus dedos, ainda estava com minha voz embargada, pois eles apertavam tão firmemente meu queixo, que eu os sentia penetrarem minha carne.
— Como? — repetiu o capitão. Meu peito disparou naquele instante. Engoli em seco, preparando-me para o que viria e quando ele trovejou novamente a pergunta, não tive escolha.
— Ele me deixou fugir no dia do ataque.
Ainda que minha voz fosse cortada durante a frase, ele me ouviu bem e vi a raiva subir em seus olhos, deixando-os vermelhos como fogo em brasa. Jones desferiu outro tapa em meu rosto e o estalo alto ecoou pela cabine. O choque de sua mão contra minha pele doeu mais do que o tapa anterior. Meus dentes cravaram em meu lábio inferior e pude sentir o gosto de ferro ainda mais forte do que antes enquanto o sangue invadia minha boca. Por sorte a força de seu tapa o fez me soltar e pude me apoiar na mesa para não desequilibrar.
O capitão riu alto pela cabine e eu tentei me recompor do ocorrido. Logo sua garrucha foi retirada do coldre e apontada para o meio de minha testa.
— Explique-se — ordenou Jones.
— Era… — gaguejei, erguendo lentamente as mãos em rendimento. — Minha primeira invasão importante. O meu primeiro saque e eu estava com medo. — Jones destravou a arma para tentar me intimidar ainda mais. Respirei profundamente, convencendo minha mente de que era outro teste do capitão. — Eu me apavorei em um momento e não conseguia sair do lugar de tão assustada. Estava muito fácil para qualquer guarda me achar e me levar presa, mas nenhum deles se concentrou no jardim e por isso não chegaram antes do príncipe do império. Talvez meus olhos tenham mostrado o quanto eu estava tensa e isso o fez me deixar ir.
Jones bateu sua perna de pau contra a madeira do navio e estalou a língua nos dentes para demonstrar sua raiva. A arma apontou para o teto da embarcação e o disparo veio em seguida, abrindo um pequeno buraco na madeira. Depois ele segurou firme o colar em seu peito e puxou-o com brutalidade para me direcionar o objeto. O colar que eu disse ter roubado do príncipe especialmente para o meu capitão. Um enorme ouroboros dourado que foi partido ao meio como forma de rebeldia contra o império.
— Ele me entregou quando me viu encarar o pingente por muito tempo — dei outro longo suspiro antes de concluir. — Então perguntou meu nome e quando o revelei ele me orientou a fugir dos piratas para ser alguém de verdade. Disse para saldar minha dívida com isso.
O arrepio ainda me subia pelas costas nos locais onde Jones já havia marcado diversas vezes e se ele estivesse com muita raiva, tornaria a marcá-los. O homem coçou a cabeça com o cano de sua garrucha, pensativo. Ainda tinha a expressão de puro ódio em seus olhos, fazendo-me acreditar que a qualquer instante ele voltaria sua arma para minha direção e atiraria sem pensar duas vezes. Tratei de me manter calada durante seus pensamentos e quando ele já tinha tudo formado em sua mente, encarou-me de maneira cansada.
— Quem mais sabe sobre essa história? — perguntou.
— Apenas nós três — expliquei. — O capitão, eu e o imperador. Ah! E talvez o pirata Clint. Ele me encontrou fugindo do jardim, então me ajudou a voltar para o navio. Mas não posso dizer com toda a certeza. Nunca lhe perguntei e ele se manteve calado todo esse tempo.
— Ótimo. — Jones pigarreou, colocando sua arma de volta no coldre para cruzar seus braços em frente ao peito. — Irá matá-lo no próximo encontro. Não haverá acordo.
— Mas, capitão…
— O imperador salvou sua vida uma vez, salvou a dele em outro momento com essa sua compaixão inútil. Já estão quites. — o pirata me interrompeu de maneira grosseira. — Ele não pode revelar esse segredo para mais ninguém. Eu não serei conhecido pelos mares como um péssimo pirata por não saber criá-la como se deve e de agora em diante não quero mais falhas vindas de Cassandra Jones. Nem esse sentimento de pena que tu teima em ter. — O capitão caminhou pela cabine durante suas palavras e ao terminar estava na porta, pousando sua mão na maçaneta. — Não deixei que usasse meu nome à toa, então faça por onde. O imperador decretou a morte dos piratas, Cassandra. Morte aos seus irmãos. Demonstre seu sentimento precioso de compaixão por isso.
Minha mente tentou se livrar de qualquer vestígio de culpa que surgia ali dentro, pois o capitão tinha razão. Eu não poderia ter compaixão por qualquer pessoa que não fosse um dos nossos e se o imperador estava contra nós, ele tinha que morrer.
— O que é um pirata? — perguntou Jones ao abrir a porta com seu sorriso apavorante.
— O mal encarnado.
Conclui aquela frase sempre citada pelos homens dos mares e ouvi o som da madeira na perna de Jones se afastar.
— Clint! — gritou Jones ao caminhar pelo convés e o som do disparo de sua garrucha veio atrás do seu chamado.
Logo em seguida Smith entrou pela mesma porta que seu antigo líder havia saído, junto de meu imediato estava seu ajudante Dorn, ambos aguardando as ordens que sabiam que eu daria, pois era o que acontecia quando Jones vinha. Ainda pude ver o corpo do velho Clint estirado no chão antes que a porta se fechasse e suspirei triste por tê-lo entregue à morte daquela maneira. Ele nunca disse uma palavra sequer. Era quase invisível. Mas sabia daquilo e eu sabia que Jones só estaria satisfeito se alguém acabasse machucado ou morto. Minhas costas se arrepiaram vendo aquele corpo por um momento, porém meu orgulho se animou por não ser eu a vítima daquele dia.
— Como está a cidade, rapazes? — perguntei. Sentia a raiva da ameaça subir em cada veia de meu corpo e os dois se entreolharam, dando sorrisos sutis.
— Temos festa hoje. O fim do inverno trouxe alegria ao povo — contou-me o ajudante.
Caminhei pela cabine em busca de uma garrafa de rum, porém as que encontrei estavam vazias e Olom deveria ter muitas para que eu pudesse encher a cara, esquecendo-me que quase deixei meu corpo virar comida de peixe. Segurei firmemente uma das garrafas apenas para direcioná-la ao chão, vendo-a se espatifar em vários pedaços. Aquilo amenizou um pouco da tensão em meu corpo, mas eu precisava de mais, queria mais.
— Então vamos comemorar.
Falei arrumando o espartilho por cima de minha camisa para acompanhar os homens rumo à cidade desprotegida que tínhamos próxima dali. Smith ergueu sua mão com a espada já empunhada, apontando para a Lua quando chegamos do lado de fora e os homens do navio fizeram o mesmo movimento aos berros de felicidade. Realmente tinha muito tempo que eles não se divertiam como iríamos em breve.