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Capítulo 6 - Karen

Deus ouviu minhas preces.

Já faz mais de duas semanas que não encontro o príncipe e isso é um alívio. Ainda mais porque Ag insiste que eu vá em alguns chás beneficentes, encontros com senhoras ricas que discutem onde investir o dinheiro, orfanatos, até mesmo “A Casa”, como é chamado o espaço que Fer cuida com tanto carinho e amor.

Ag coitada, tem uma lista gigantesca de coisas para fazer. Mas continua sendo um amor de pessoa e o amor dela e de Seth são o que me mantém mais fiel em Deus, pois sei que um dia ele também me dará um relacionamento com alguém da minha fé da mesma forma que Seth encontrou em Agnes. Ainda que Agnes não seja muçulmana. Mas ela respeita muito e não deixa de ir na mesquita com Seth conhecendo um pouco mais. Ninguém força ninguém a nada. Um dia Deus tocará o coração de Agnes e ela também professará o islamismo. Eu ao menos oro todo dia a Deus pedindo por isso. Agnes é a minha melhor amiga. Quero somente o melhor para ela.

Agnes me tirou do meu encargo oficial da mansão e me transferiu para outro que ela acredita ser melhor. Diante da quantidade de festas, chás e coisas do tipo que ela vem vindo, Ag achou melhor que eu me dedicasse única e exclusivamente em desenhar e fazer peças para ela para essas ocasiões. Não que eu não tenha amado! Amei! Assim eu posso me dedicar ao que mais gosto de fazer.

Hoje vou levar um vestido azul marinho para Agnes vestir. Ela insiste que eu a acompanhe num chá beneficente que haverá só entre mulheres. Não consigo negar nada para Agnes e aceito. Coloco um hijab básico, preto, porque a verdade é que quero ficar o mais invisível possível. Gosto de acompanhar Agnes, mas, para mim, é ela que deve brilhar em qualquer lugar que estejamos. Ela é especial e tem ideias fortes que tenho certeza de que vão mudar – e estão mudando – a forma de muitas pessoas agirem por aqui.

― Cheguei! ― Disse Fer. Íamos as três. Fer, na verdade, queria convencer as mulheres a ajudarem A Casa e esse era o motivo dela ir também. Mas Fer nunca se sentiu a vontade para se vestir como nós. O máximo que ela fazia era ficar um pouco mais formal, como estava agora, com uma calça social e uma blusa branca regata de botões muito bonita.

Não demoramos para sair. No entanto, eu mentiria se dissesse que o chá beneficente era algo legal e divertido. Na maioria das vezes as mulheres aproveitavam para jogar fofoca para o alto e falar mal de outras mulheres. Somente deram uma pausa quando ouviram Fer falar.

― Gostaria de um minuto da atenção de vocês, por favor. Tenho alguns dados para apresentar que farão vocês pensarem um pouco sobre a importância de ajudar A Casa. ― Disse Fer. Ela era uma ótima oradora, do tipo que um dia eu gostaria de ser. Ela não tinha medo de falar em público, não tinha medo do que pensariam dela. Na verdade, parecia calejada que a julgassem, mas era nítido que isso pouco importava para ela. Seu foco era um só: As crianças da Casa. E ver isso na forma como os olhos dela brilhavam, no semblante sério na hora de falar e apresentar dados era maravilhoso.

― Segundo o Instituto… ― E Fer começou a falar. Disse as taxas alarmantes de meninas que eram obrigadas a se prostituir por não terem família com quem contar, bem como a quantidade de meninos que saiam do país para participar de grupos radicais, já que era a única opção diante da falta de amparo. Os dados eram alarmantes, as idades mais assustadoras e eu não consegui piscar um momento sequer absorvendo todas as informações que Fer trazia. Ela tinha um poder de convencimento que era de outro mundo! E a forma como ela falava era tão segura que eu só conseguia pensar em como as mulheres precisavam ajudar A Casa.

Felizmente, algumas foram convencidas. Outras, disseram que iam pensar no caso. Fer teve que ir embora para não deixar seus filhos muito tempo sozinhos e as mulheres ali mais pareciam preocupadas em ouvir fofocas do que realmente ajudarem alguém. Triste, mas a realidade.

― Estão bem próximos de se casarem mesmo. Mas não vai demorar também não para o mais novo casar. ― Estava tão distraída que nem fazia ideia do que elas falavam, só ouvindo por educação, porque o assunto pouco me interessava.

― Oh, é mesmo? E com quem será? ― Perguntou uma outra mulher mais gordinha de hijab preto como o meu e os olhos bem pintados de negro.

― Obviamente que o príncipe precisará casar com alguém a altura dele, como Omar. Por sorte, a futura rainha Aisha tem uma irmã. ― Segredou a mesma mulher de antes, essa que usava um lenço jogado de forma displicente pelo cabelo. Provavelmente porque ali estávamos só entre mulheres.

― Mas dará certo? ― Instintivamente, ouvir sobre o príncipe me fez prestar atenção em quem estava falando o que naquela conversa. Dessa vez, uma jovem mais ou menos da minha idade fazia a pergunta. Mas era visível no seu tom de voz que ela torcia para que não desse certo, porque ela tinha interesse no príncipe.

Se ela soubesse com quem estava lidando, não quereria nunca mais olhar para a cara daquele cafajeste. Me vi pensando.

― Oras, terá que dar. Por que pergunta isso Ashanti? ― Acho que foi a mãe dela que chamou a atenção da filha, porque a menina voltou seus olhos para o chão parecendo envergonhada.

― Eu imagino que é porque os dois irmãos são muito diferentes. ― Voltou a falar a mulher com lenço jogado na cabeça. ― Omar será um verdadeiro rei. Seu irmão… Os boatos não são muito bons. O melhor é deixar nossas filhas longe dele. Há boatos… ― Ela pausou estalando a língua como se tivesse a maior das fofocas de todas. Havia um pequeno sorriso no canto dos lábios, mas o silêncio dela provocou agitação nas mulheres, ansiosas.

― Oras, mas que boatos? Conte logo Shadia! ― Disse a mãe da menina. Agora eu sabia o nome da mulher com véu jogado displicentemente.

― Conte logo! ― Disse outra e mais outra ao mesmo tempo.

― Há boatos de que o príncipe tem uma boa lábia. E infelizmente não segue a risca o islã. Permanece em pecado. Sabem de Amina filha de Rim? A que foi estudar em Londres? ― As mulheres concordaram balançando a cabeça. Lancei um olhar para Agnes que deu de ombros. Nem eu nem ela sabíamos quem era essa tal de Amina. ― Foi para Londres não só para estudar, mas porque Ibrahim não consegue mais olhar para a filha. Ao que parece, Karim fez ela gostar tanto de… ficar em pecado com outro homem que estava sendo impossível para ele controlar a própria filha.

― Oh!

― Por Alá!

― Tenha piedade!

As mulheres exclamavam tanto que mais parecia um show de magia do que um boato que tinha muita cara de ser verdadeiro. Senti minhas bochechas corarem imediatamente. Não verdadeiro no sentido que ele era bom de lábia desse jeito. Não que não fosse. Ele era. Mas não podia ser. Meu Deus, não sei como explicar. Enfim, era possível que ele tivesse pervertido a moça.

― Mas ele vai casar e tudo vai se resolver. Ele precisa casar. ― Enfatizou Shadia. As mulheres estavam todas com a atenção para Shadia. Era como se Shadia tivesse o elixir do saber e todos quisessem provar dele.

― Precisa? ― Perguntou a mesma jovem de antes.

― Sim, Sim. Ele precisa. É o desejo do Rei. Vocês sabem que ele não está bem? Estão especulando um monte de coisas, dentre elas câncer. Se ele não sobreviver, ele já tem o pedido dele. ― Meu coração sofreu uma batida descompassada ao ouvir aquela palavra tenebrosa.

Câncer.

Minha mãe havia morrido de câncer.

Me levantei com cuidado para não chamar a atenção de ninguém e segui até o banheiro. Ali foi mais fácil permitir que as lágrimas viessem e a lembrança de minha mãe surgisse nítida. Mesmo depois de tanto tempo, algumas palavras causavam uma dor de saudade tão forte que era inevitável não chorar.

Dizem que com o tempo a dor diminui e não é de todo errado. Mas alguns gatilhos continuam e machucam muito. Algumas coisas me veem a mente e doem o coração. Lembrar da minha mãe definhando por causa dessa maldita doença me causa um machucado instantâneo. Como arrancar o bandaid de uma ferida. Isso. A palavra câncer é como o gatilho de arrancar o bandaid com força. Dói e dói muito.

Volto a olhar para o espelho e encontro meus pares de olhos castanhos inexpressivos. São a lembrança que tenho dela, já que diz mamãe que meus cabelos vieram do meu pai que nem se deu ao trabalho de terminar o casamento, fugindo para algum lugar remoto do mundo para longe da minha mãe.

Aperto um lábio sob o outro enquanto tento modificar minha visão de Karim. Talvez ele só seja um idiota que tenta apagar a tristeza de ver o pai definhando com um pouco de pecado. Claro, nada justifica, mas talvez abrande minha raiva por ele.

Pensar que o pai dele está na mesma situação que um dia minha mãe esteve já abranda qualquer coisa que eu sinta.

― Karen? Você está bem? ― É Agnes. Sempre atenciosa. Sorrio.

― Só lembrei da minha mãe…

― Ela morreu de câncer também, não foi? ― Balanço a cabeça concordando. Agnes assente. Ela também sabe o que é ter alguém na família com essa doença traiçoeira. Felizmente, Sophia teve mais sorte do que minha mãe e eu fico muito feliz por isso. Ela é jovem. Tem muita coisa pela frente. E merece uma chance de viver tudo isso.

Sinto os braços de Agnes ao redor de mim e a abraço sentindo as lágrimas voltando. Não sei se tenho mais lágrimas, mas me permito ficar no aconchego dos braços dela. Já estive muito sozinha e talvez seja bom dividir a dor de ter perdido a minha mãe com alguém.

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