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4

Vincet encontrava–se numa encruzilhada. Tomar o pequeno–almoço daquela forma, com a comida quente, caseira e a cheirar deliciosamente, há muito que não o fazia. Estava mais habituado aos pequenos–almoços de hotel ou apenas ao café da manhã, pelo que a sensação era gratificante. Ele não era um homem fácil de surpreender, mas neste momento....

Como quando a frase –um homem é conquistado pelo seu estômago– era válida.

Por isso, concentrou–se mais em comer do que em falar com a rapariga, até que reparou que ela...

–Porque é que não comes?– perguntou ele, bebendo um gole de café.

–Posso?– a pergunta dela intrigou–o.

–Porque não?– franziu o sobrolho, –Se é servido, é por uma razão.

Obrigado.– O agradecimento dela deixou–o ainda mais aborrecido.

–O quê? A vossa casa era como o serviço militar, onde se tem de pedir autorização para ir à casa de banho?– ironizou ele com o comentário, que não tinha qualquer tom. Ele não estava à espera que ela não respondesse, pelo contrário, os seus ombros ficaram extremamente tensos.

Vincet não insistiu mais, dada a reação dela, talvez ela tivesse pedido autorização por causa do seu atraso mental, não que ele fosse investigar muito, desde que isso não lhe desse problemas e não lhe restasse muito tempo. Tinha de começar a trabalhar, uma empresa não se gere sozinha. Passados alguns minutos, olhou para o relógio da cozinha e levantou–se, deixando–a sozinha à mesa. Ele tinha reparado que ela não tinha comido tanto, pelo menos não tanto como ele.

Alicia esperou que ele desaparecesse para pousar os talheres e olhar para tudo o que estava em cima da mesa. Um hábito que ela tinha desde que não se lembrava mais. Estremeceu ao mergulhar nas suas memórias do passado. Era melhor não o fazer, não estava em casa agora, não estava com os pais e, de momento, no pouco tempo que tinha interagido com o estranho, ele não se tinha atirado a ela.

***

A rapariga acabou de se vestir e pegou na sua mala praticamente vazia. Tinha arrumado todas as suas coisas da universidade no cacifo para não ter de mexer muito quando se mudasse. Assim, viajaria com pouco peso. Só não contava que, quando saiu, Vincet já se tivesse ido embora há cerca de 15 minutos.

Não era realmente um problema, a não ser pelo facto de estar agora a viver muito mais longe da Universidade do que antes, numa zona residencial onde certamente não passavam autocarros, muito menos táxis.

Mordeu o lábio inferior. Devia ter tido a coragem de lhe pedir que a levasse à paragem de autocarro mais próxima. Ela estalou a língua, agora era altura de correr.

E, no entanto, Alicia chegou sufocada, encostada com uma mão à parede da sala de aula onde deveria estar, com as pernas a tremer. O pior de tudo é que já era tarde, tinha quase perdido uma hora do seu primeiro turno, pelo menos o professor era simpático, mas tinha a certeza de que ele a iria repreender, afinal de contas ela estava ali por causa de uma bolsa de estudo, por isso tinha de dar o exemplo.

Endireitou–se e respirou fundo. Mas abriu a porta para fazer o mínimo de barulho possível.

–Alicia, estás atrasada.

Ela franziu os lábios. Não havia necessidade de chamar a atenção dela daquela maneira, de uma ponta à outra da enorme sala de aula, quando esta era a primeira vez que ela estava um pouco atrasada.

Peço desculpa– desculpou–se embaraçada perante os olhares reprovadores dos outros alunos. Uma parte normal da sua vida.

–Venha ter comigo à hora do almoço– disse o professor com uma voz séria, –Vá sentar–se.

Alicia fez o mesmo na fila de trás, sozinha. Não se dava com nenhum dos seus colegas, tinham–na isolado quando souberam que tinha entrado com uma bolsa de estudo e que tinha saltado anos, de modo que, embora eles se formassem com 23–24 anos de uma só língua, ela só se formaria com 21 e em três.

Inveja?

A maior parte deles.

***

A campainha tocou e Alicia saiu da aula de alemão avançado em direção ao gabinete do professor. Cristian era o professor que lhe dava aulas, por isso ela sabia que a repreensão devia ter sido dura, ele era muito exigente com ela, afirmando que ela era uma das poucas alunas que iria fazer um recorde na escola. Ele ensinava inglês depois de ter vivido anos em Inglaterra e, por alguma razão, ela sentia que ele estava muito atento à sua situação.

Bateu à porta do escritório e ouviu–a entrar. O seu gabinete era pequeno, mas bem iluminado e no meio havia uma mesa cheia de documentos sobre a secretária. Atrás dele estava um homem de trinta e poucos anos, com cabelo escuro acobreado, bem aparado para mostrar as suas belas feições. Era um homem bonito e mais do que uma vez ela ouvira os colegas a falar dele, mas Alicia não estava propriamente interessada em romance.

Haverá algo de errado com ela?

Na verdade, ela tinha tantos problemas na sua vida que o romance e o sexo estavam no fundo da sua lista. Talvez por isso não se tivesse derretido pelo homem da sua casa, como a mãe lhe tinha dito que faria.

Senta–te, Alicia– ofereceu ele, –Queres um chá ou um café?

Ela abanou a cabeça e sentou–se.

–O que é que aconteceu? És uma rapariga exemplar e, nos três anos que estás aqui, nunca te atrasaste. Nem mesmo quando choveu.

Alice inclinou ligeiramente a cabeça.

Mudei–me ontem e o local é longe de qualquer meio de transporte. Não voltará a acontecer.

Mudaste–te ontem?– perguntou ele, surpreendido. –Não avisaste nada.

Alicia negou. Não era como se ela estivesse a contar a sua vida privada, embora na universidade, por ser bolseira, estudar três línguas e também fazer trabalho de tradução, normalmente tivessem de a vigiar e a localizar. Além disso... ela estava em casa de um estranho. Seria bom que pelo menos alguém soubesse dela, para o caso de acontecer alguma coisa.

–Sim, a minha mãe teve de ir de viagem e deixou–me em casa de uma amiga até voltar. Como sabes, ela é a minha tutora.

O homem ficou a olhar para ela.

–Isso é algo que eu ainda não entendo. Tu és maior de idade e, embora ela seja a tua tutora com atraso mental, não vi nenhum traço significativo em todos estes anos que te tornasse incapaz de te defenderes sozinho.

Alicia só conseguiu sorrir ligeiramente. Não era ela que devia ser informada disso, mas já estava a trabalhar nisso, um deles a sair de casa, mesmo que fosse a casa de um estranho.

–E este tipo, conhece–lo? Ele fez–lhe alguma coisa?

Alicia negou.

Ele tratou–me bem e não, ele não me fez nada, não tens de te preocupar– tentou desviar o assunto o mais rapidamente possível.

Foi então que Cristian se precipitou e agarrou numa das mãos dela que estava na borda da secretária. Apertou–a entre os dedos e acariciou–lhe os nós dos dedos com o polegar.

Se precisares de ajuda ou de um lugar para ficar, eu posso ajudar–te. Não tens de ter vergonha de me pedir nada. A minha casa é grande. Se te sentires desconfortável...

Estou bem– Alice conseguiu afastar a mão e pô–la de novo no colo, um pouco desconfortável, –Se estiver em sarilhos, digo–lhe.

Cristian não parecia muito convencido, mas não insistiu mais, uma vez que Alicia não costumava ser muito aberta com ele ou com qualquer outra pessoa.

Se assim o dizes– pegou num envelope da secretária e entregou–lho: –Isto foi–me dado pelo professor de alemão, é para tradução, lá dentro estão os documentos e o que ganharias por isso. Se tiveres alguma dúvida, podes contactá–lo.

Alicia agarrou–a rapidamente e levantou–se.

–precisa de algo mais.

Cristian negou.

–Podeis retirar–vos, mas a minha oferta mantém–se.

Uma gota de suor escorreu pela têmpora da jovem mulher.

Um que mal a queria em casa e outro que a propunha insistentemente.

–Obrigado– e saiu do escritório, com o envelope junto ao peito. Pelo menos isso dava–lhe alívio. Cada trabalho seriam horas sem dormir, mas números na carteira.

E, pensando bem, muitas raparigas ficariam loucas se recebessem uma proposta dessas.

A campainha da porta tocou e ela abanou a cabeça para limpar os pensamentos. Não era a sua hora. Estava mais preocupada com o que iriam jantar nessa noite do que com o pedido pouco convencional do seu professor, com quem também não tinha muita confiança. O frigorífico não estava abastecido como o próprio diretor–geral lhe tinha dito. Apenas os ingredientes que tinha usado nessa manhã.

Devo pagar o jantar no caminho?

Lembrou–se de que não tinha dinheiro suficiente na carteira para comprar os ingredientes de que ele de certeza ia gostar e, além disso, ele tinha dito que voltava cedo, por isso de certeza que ia comer. Ahhh, como sempre, ele habituou–se rapidamente às mudanças repentinas na sua vida.

Voltou para a aula e decidiu que, quando voltasse, falaria com ele sobre o assunto.

O que ele não contava era que, ao entrar no edifício onde agora residia à tarde, a sua passagem estivesse fechada.

Desculpe, menina, mas não pode entrar– interrompeu–a um guarda diferente do da noite anterior.

Alice pestanejou em confusão.

Vivo no apartamento do diretor–geral Vincet Regal.

A expressão do homem não se alterou.

–Não fui notificado de nenhum novo residente e não a posso deixar entrar. Se for o caso, pode telefonar–lhe e depois, se ele der autorização, deixo–a entrar.

Havia um problema, ela não tinha o número dele. E tinha a certeza de que o guarda não lho daria.

O que é que ele estava a fazer agora?

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