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Capítulo III

Segunda-feira, dia de loucura no trânsito, loucura no trabalho, na vida, o tempo louco de São Paulo não ajudava a melhorar meu humor de cão.

A essa hora da manhã precisava estar chovendo? Ok, não estava caindo o mundo, mas a garoa fina irritante molhava o suficiente para o trânsito virar um caos.

Tinha visto no jornal antes de sair de casa que em algum lugar da rodovia # dois carros haviam batido, o que deixava tudo mais e mais lento. Bati a cabeça no volante enquanto esperava que algum daqueles carros se mexessem mais do que um centímetro, respirei fundo tentando me acalmar, seria um longo dia no escritório.

Sete horas, esse era meu horário normal, mas já era oito quando finalmente parei meu carro no estacionamento do prédio onde trabalho. A empresa era bem reconhecida e renomada, eu já trabalhava aqui há tantos anos que em dias como esse eu me perguntava por que eu não largava tudo e me mudava.

O elevador estava cheio de pessoas se amassando, todos tão atrasados quanto eu e não querendo esperar o próximo. Estava quase desistindo de me manter ali como sardinha quando o último engraçadinho entrou com um sorriso largo nos lábios.

O garoto, sim garoto, pois não devia nem ter vinte e cinco anos de idade na cara. Ele parecia estar reluzente, eufórico até diria. Com o que? Era uma segunda-feira chuvosa e caótica. Por que as pessoas tinham que ficar felizes pela manhã?

— Bom dia, bom dia. — ele dizia olhando para cada uma das dez pessoas naquele lugar apertado e eu resisti a vontade de perguntar que droga ele havia usado. — Bom dia. — quando chegou a minha vez eu apenas o encarei com os olhos semicerrados encarando a figura.

Ele não tinha olhos vermelhos para estar chapado, nem vidrados para ter usado outra coisa. Os olhos castanhos pareciam vivos de mais, brilhantes até. Continuei encarando-o até que o elevador abriu com um barulho alto me trazendo de volta a realidade, alguns apressadinhos correram quase tropeçando uns nos outros e as portas se fecharam novamente. O senhor felicidade continuava ali, e foi assim pelas duas vezes, até que sobramos apenas eu e ele.

Quinto andar, então ele era advogado também. Mas para quem ele trabalhava? Nunca o tinha visto por aqui, eu nunca tinha visto ninguém com essa empolgação para trabalhar nem no jurídico, familiar ou criminal.

— Não é muito educado ficar sem responder os outros. — ele murmurou me olhando de lado.

— Não é educado abordar estranhos. — respondi tentando ser ríspida, ignorá-lo não ia funcionar, ele já havia provado isso.

— Dar bom dia não é abordar é ter educação, especialmente se vamos nos ver todos os dias já que trabalhamos no mesmo lugar. — eu inclinei minha cabeça para o lado lhe dando um belo olhar de não enche. Esse cara não se manca mesmo. — Minha mãe me ensinou a ter educação e cumprimentar as pessoas a minha volta.

Eu quis rir do comentário sobre a mãe dele, mas não queria lhe dar margem para continuar puxando assunto. Mas sério? A mãe?

— Jura? Pode dar bom dia pra ela sempre que se sentir à vontade.

— Já fiz, hoje de manhã mandei uma mensagem de bom dia e ela me desejou boa sorte no meu primeiro dia de trabalho. — eu não aguentei segurar e sorri. Ri alto pela primeira vez no dia. — Sabe, é isso o que pessoas educadas fazem. — ele continuou com a conversa fiada e deu um passo se aproximando de mim. — Você tem um sorriso muito bonito, deveria sorrir mais vezes.

Aquela altura meu sorriso já tinha morrido com o estranho ali me analisando com o sorriso frouxo nos lábios, mas com a expressão bem mais interessada. Engoli em seco tentando entender como tínhamos chegado ali, ficando calados assim de forma tão constrangedora enquanto nos encarávamos.

Eu pigarrei tentando acabar com aquela áurea esquisita e como se entendesse a deixa o elevador abriu as portas. Meus saltos bateram duros contra o carpete do chão, como se aquilo fosse me afastar mais rápido do garoto.

— Boa sorte na sua segunda! — ele gritou me fazendo virar. Seu sorriso cresceu ao me ver lhe olhando e então ele seguiu o sentido contrário do corredor.

Ele era maluco, só podia ser, não tinha outra explicação. Entrei no escritório com um sorriso nos lábios e sacudindo a cabeça para sua falta de senso e Luiza me deu um olhar surpreso.

É eu também estava surpresa em como um esbarrão com um maluco no elevador podia mudar o humor completamente.

***

Ouvi a voz de Emily ao longe me chamando, me tirando do sono gostoso que eu estava. Não tinha nem como ter reparado que havia dormido a manhã toda, já passava das duas quando acordei com ela me chamando.

— Estou te esperando lá embaixo. — Emy falou colocando só a cabeça na porta, antes de sumir novamente.

Joguei a coberta fina que usei para me cobrir e respirei fundo antes de levantar, mas me arrependi na mesma hora já que o cheiro do perfume dele pareceu me consumir. Era como se ele estivesse estado ali, inspirei mais uma vez e fechei os olhos tentando guardar aquilo, trazer lembranças boas, qualquer coisa boa.

Mas era impossível que ele tivesse ido ao quarto, especialmente sabendo que eu estava lá. Fernando tinha fugido de mim dentro da nossa própria casa, não fazia sentido ir até ali.

Me levantei já pegando a primeira toalha na mala e partindo para o banheiro. Eu não era mais uma garotinha pra ficar fantasiando se ele tinha vindo ou não atrás de mim, se Fernando quisesse falar comigo era só vir, não era eu quem estava fugindo.

Assim que saímos eu agradeci por ter tomado um banho, São Fernando parecia estar no auge do verão mesmo que não fosse a época. A única brisa era graças às diversas árvores balançando nas calçadas, mas ainda sim a sensação era muito quente.

— Até que enfim chegou, vocês não podem fazer isso com uma mulher grávida, estou morrendo de curiosidade desde ontem. — ouvi a voz alta de Bete explodir assim que entramos na casa.

Ela era sempre assim, agitada, animada, um furacãozinho. Os cabelos sempre pintados de ruivo foram trocados pelo loiro natural e uma leve onda em sua barriga demonstrava a gravidez ainda no começo.

— Por que você não disse que estava trazendo Helen? — Bianca questionou já se erguendo do seu lugar no sofá e me abraçando apertado.

Já tinha vindo aqui algumas vezes e sabia que elas eram as melhores amigas de Emily, seu círculo de amizade desde a infância.

— Uma mulher para me entender, finalmente. — Bete acariciou minha barriga, cumprimentando meu bebê para então me abraçar apertado. Todos na cidade eram assim acolhedores e isso sempre foi um dos motivos para que eu amasse visitar. — Então vamos logo com isso Emily, você não quer duas grávidas passando mal por sua enrolação nas fofocas.

Eu tive que rir do desespero dela, não tinha ideia do que era o assunto, Emily não tinha me contado nada durante o caminho então eu estava tão no escuro quanto as meninas.

Nos acomodamos na sala, onde já tinham preparado lanchinhos e suco, céus como eu precisava daquilo, estava morrendo de fome. O bebê estava levando a melhor sobre mim.

Mas então nos concentramos em Emily, ela que tinha algo a contar, mas parecia um tanto incerta de por onde começar. Seus olhos vagavam ao redor e ela cutucava o fundo da unha como que para quem quer evitar o inevitável.

— Estamos aqui pra te apoiar. — Bianca foi a primeira a quebrar o silêncio a incentivando a começar.

— Marcos e eu não brigamos, na verdade ele só descobriu um segredo que eu escondi de todos durante esses anos. — a voz dela soava mais baixa do que o normal e eu não sabia se era vergonha ou medo. — Primeiro vocês precisam entender o porquê eu fui embora durante a noite, no dia do show, você e Carlos tinham ido até a cidade vizinha comprar os ingressos. Então eu fui até a Rosa, procurar ele. Quando eu cheguei Bruno e ele estavam nos fundos falando de mim e ele disse que não tinha parado de sair com outras garotas, que não ia se mudar comigo, que tudo não passava de encenação para ter tudo o que eu tivesse para dar a ele.

Eu não tinha ouvido falar dos namorados do passado de Emily, mas alguma coisa me dizia que esse era muito mais importante do que um namoro de adolescente ou não estaríamos tendo essa conversa.

— Ele falou o que? — o furacãozinho teve um rompante espalhando as migalhas do pão que comia por todos os lugares. — Eu vou arrancar as bolas daquele...

— Bete, calma. Me deixe terminar. — Emily a interrompeu rapidamente e seu relato nem parecia estar no começo. — Aquele foi um plano, para que eu me machucasse e o deixasse. Ele sabia que eu estava ouvindo, mas precisava que eu ficasse magoada com ele e não o quisesse mais. Marcos e Bianca estavam lidando com mais merdas naquele momento do que podíamos imaginar, ele fez o que achou que seria o melhor para todos. — ela segurou a mão de Bianca e eu continuei ali sem entender muita coisa, mas querendo saber o que tinha acontecido depois disso. — Foi isso que ele me confessou no dia que nos trancaram no escritório.

A vida aqui estava agitada pelo que podia notar.

— Ele sempre te amou. — Bia sussurrou tão baixo e com os olhos cheios que quase não consegui ouvir nada.

— Eu sei disso agora.

Então ela soltou a bomba sobre nós, eu nunca imaginei que Emy tivesse passado por tudo isso. Quando a conheci parecia durona, mas ainda sim uma menina, jovem, na casa dos vinte anos, com um futuro brilhante pela frente. E apesar de ver sempre a sombra de uma tristeza em seu olhar ela lutou e construiu uma carreira maravilhosa em São Paulo.

Mas agora sabendo tudo isso eu me recriminei por nunca ter tentado forçá-la a se abrir, a contar para mim suas dores.

Sempre nos demos bem, mas ela nunca me contou algo do seu passado, da sua adolescência, Emy nunca me deixou entrar de verdade, nunca desse jeito como estava fazendo agora.

De certa forma me senti melhor por estar aqui, cheguei no dia certo para ouvir tudo o que precisava e tentar lhe ajudar nos próximos passos. Ela não estava sozinha mais, não ia deixar que voltasse para aquela bolha. Agora que ela parecia ter entendido a importância de se abrir e aceitar a ajuda de outras pessoas a sua volta eu iria aproveitar para estar aqui por ela.

— Foi por isso que Marcos fugiu! — Bianca afirmou me deixando mais surpresa. Minha cabeça tinha virado uma confusão com tantas informações.

— Eu o vi no clube hoje, parecia perdido, andando como um fantasma apenas vagando. — Bete confidenciou esticando a mão para pegar mais um punhado de pão. — Até o chamei, mas ele parecia estar alheio a qualquer coisa a sua volta.

— Eu realmente não sei o que deu no seu irmão ultimamente. — foi minha vez de reclamar, parte da confusão tinha sido criada por Fernando.

Aparentemente ele não está feliz em destruir sua vida apenas, queria destruir a de todos a sua volta.

— E que merdas ele falou para você, que deixou Marcos tão nervoso? — Bete questionou se virando para mim, me lançando um olhar de que eu não tinha opção a não ser me abrir.

E pra falar a verdade eu estava feliz em poder colocar tudo para fora em um lugar que eu era apoiada.

— Descobrimos há algumas semanas que nosso bebê tem síndrome de Down. Fernando entrou em parafuso, ao que parece ele fez várias pesquisas me deixando de fora de todas e então ele tomou a decisão de me dar um ultimato. O bebê ou ele. — ouvi os arquejos de choque, mas continuei encarando a mesa de centro, como se de lá fosse brotar qualquer coisa que aplacasse o aperto em meu peito. — Ele disse que não está pronto pra isso, correr esse risco. Ele até encontrou uma clínica onde eu pudesse fazer um aborto.

— Ele o que? — Bianca gritou chocada praticamente pulando no lugar.

— Eu vou acabar com o filho da puta! — Bete se juntou a ela. — Que dona Ana me perdoe, mas ele é e merece morrer por isso! Desgraçado, quem ele pensa que é? — a mulher baixinha agora andava de um lado para o outro, segurando a barriga e resmungando a maior quantidade de palavrões que eu já tinha visto alguém falar.

Um sorriso triste brotou em meus lábios, era reconfortante ter o apoio delas, diferente do que encontrei na minha família e no meu casamento, que era de onde eu esperava que viesse meu suporte.

— Eu nunca pensei que Fernando fosse capaz disso. Eu já ouvi falar de alguns casos em que o parceiro simplesmente abandona a mulher, e até mesmo o contrário, da mãe abandonar filho e pai apenas porque a criança nasceu com T21. — Bianca confidenciou com a voz calma e tranquila, então ela se esgueirou do sofá a minha frente até estar ajoelhada ao meu lado. — Você tem apoio bem aqui.

Suas mãos envolveram as minhas e a essa altura eu nem tentava mais segurar as lágrimas. Bianca afagou meus dedos e logo depois senti o braço de Emily me envolvendo pela lateral, Bete se juntou a elas mesmo estando atrás do sofá, ela se esticou apoiando seu rosto contra o meu em uma demonstração fofa de carinho.

— Você tem uma família bem aqui! — Emy disse me quebrando por inteiro.

Eu tinha, acabei de descobrir que tinha uma família, uma que não tinha nada a ver com sangue ou alianças e contratos, mas sim amor puro e verdadeiro. Já conhecia as meninas há alguns anos, mas nunca pensei que estaria sendo rodeada de carinho e apoio como agora.

Mas a pessoa de quem eu mais esperava carinho e apoio eu não tinha, quando Fernando ia enxergar o erro que estava cometendo? Ele ia mesmo deixar que nossa família se destruísse dessa forma?

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