Capítulo 2
Não era um maldito sonho.
Não consegui prestar atenção direito em nenhuma palavra dos professores ainda repassando todas as informações que minha mãe tinha me passado. Um árabe de Dubai. Dez meninas competindo. Eu sendo a única do Brasil. Rico. Dinheiro. Meu pai precisa de dinheiro para custear seus tratamentos. Casamento. Outro país. Fim dos sonhos. Fim de carreira. Fim de faculdade.
Era muita coisa para sopesar e pouco tempo para decidir. Eu tinha por certo que não iria, ainda que uma voz da consciência continuasse me atazanando a paciência como se fosse a minha mãe sussurrando: Ingrata, seu pai…
Só conseguia ter paz durante o expediente do trabalho. Foram dois longos dias tentando esquecer esse assunto antes que eu recebesse outra ligação durante o expediente. Novamente, demorei a atender só vendo no fim do expediente. Achei que deveria ser mamãe novamente tentando me convencer a mudar de ideia então liguei para ela com a voz de desinteresse.
― Fala mãe… ― Disse revirando os olhos. No segundo seguinte, fiquei alarmada. Mamãe estava chorando.
Eu sabia o que isso significava.
― Onde você o levou? ― Ela então me disse o nome do hospital.
― Hey, está tudo bem, Pam? ― Era minha chefe, perspicaz, Sara. Balancei a cabeça negativamente. Os olhos já enchiam-se de lágrimas e Sara entendeu que havia algo de errado, me pegando pelos ombros e me levando até um Gol quadrado onde Ale já estava sentado pronto para dirigir.
― Para onde? ― Ela me perguntou. Fungando, passei o endereço do hospital e ouvi Ale brincar:
― Mais rápido que o Mcqueen… ― E embora eu não estivesse com ânimo para brincadeiras, dei um meio sorriso para o bem humorado do meu chefe enquanto agradecia mentalmente por eles estarem me ajudando.
― Onde ele está? ― Perguntei para mamãe que esperava na sala de espera. Ela tinha os olhos inchados e manchados de preto, provavelmente de lápis escorrido.
― Na-Na cirurgia. ― E percebendo que era eu na sua frente, mamãe me empurrou para longe dela, para minha surpresa. ― Saia de perto de mim, ingrata. Disse que seu pai passou mal, porque você é filha dele. Mas você só merece isso. É mesquinha demais para ajudar seu pai. ― E eu sabia que minha mãe estava falando tudo de cabeça quente, mas paralisei a dois passos de distância dela recebendo aquelas palavras como murros.
A voz da consciência me acusou da mesma coisa. Eu não queria ajudar o meu pai quando tinha a oportunidade.
Engoli em seco sentando numa poltrona e esperando. Haveria outra forma de ajudar meu pai? Não por muito tempo. Essa oportunidade talvez nunca mais voltasse a existir. É claro que eu achava que era muito nova para casar ― tinha acabado de completar vinte anos agora! ― mas talvez o que menos importasse ali fosse minha vontade.
Casamentos antes de tudo eram convenções. Eu não iria provavelmente amar o tal homem que queria comprar uma mulher, mas, quem sabe com o tempo, eu pudesse aprender a sentir algum afeto. Talvez valesse a pena se eu pudesse visitar meu pai e ver que ele estaria bem. Isso se eu passasse pelo tal teste das dez. Eram muitos talvez e uma decisão que precisaria ser tomada o mais rápido possível. Talvez papai também não tivesse chances de sobreviver.
Fechei meus olhos na tentativa de controlar o medo de me mudar se essa fosse a decisão certa a se tomar.
Abandonar tudo o que eu havia construído no Brasil. Voltei minha atenção para dentro de mim mesma e pedi a Deus que se ele existisse, que salvasse o meu pai. E em troca… Em troca eu iria nesse encontro das dez.
*
O tempo passava se arrastando e eu dormi e acordei várias vezes na poltrona dura do hospital, sem resposta alguma quanto a situação de papai. Quando era pouco mais do que cinco da manhã, um médico finalmente veio dar notícias.
― Sra. Rose? ― Minha mãe que também cochilava na poltrona, acordou de supetão, se levantando meio tonta e seguindo em direção ao médico. Fiquei a uma distância segura para que minha mãe não me enxotasse, mas que eu conseguisse ouvir.
― O paciente Paulo Farias encontra-se estável no momento. Ainda bem que a senhora o trouxe o mais rápido que pode. Foi questão de minutos. ― Minha mãe arregalou os olhos e eu senti o meu coração perdendo força com a notícia.
― Obrigada, Doutor. Quando poderemos vê-lo?
― As oito, quando abre o horário de visitas. Por enquanto, aconselho que descansem, voltem para casa, tomem um café e então voltem.
―Obrigada pelo conselho doutor. ― Disse minha mãe curta e grossa. O médico concordou balançando a cabeça e então nos deixou a sós.
Minha mãe voltou sua atenção para mim e seus olhos fulminavam na minha direção. Tinha certeza que começaria um discurso moral de como eles sempre tinham feito tudo na medida do possível para mim, mas que eu parecia não estar nem aí. Então decidi cortar o barato de mamãe de me fazer ouvir horas enquanto compartilhava minha decisão:
― Tudo bem. Eu vou. ― E minha mãe que preparava o discurso, paralisou no caminho, sem conseguir falar nada, só me encarando como se tentasse ver se não estava sonhando acordada.
Eu tinha feito uma promessa com Deus. Ele tinha feito a parte dele. Agora era a minha vez de fazer a minha parte. Pelo menos era no que eu acreditava.
― Você está falando sério? ― Minha mãe parecia atônita. Falar a decisão em voz alta parecia uma trave e grande para minha garganta, mas eu precisava fazer isso. Precisava aceitar o que já era certo. Eu não voltava atrás das minhas decisões.
― Sim. Eu vou mãe. ― E para minha surpresa minha mãe voltou a dar o seu gritinho de felicidade me abraçando firmemente enquanto falava:
― Vamos nos trocar, ver seu pai e depois resolver tudo. Ai aí… Temos tão pouco tempo para te deixar impecável, minha filha. Você devia ter tomado essa decisão antes. ― Me calei enquanto minha mãe me empurrava para fora do hospital. Ela não saberia, mas eu não teria tomado tal decisão se meu pai não tivesse passado mal. Não havia como eu ter tomado tal decisão mais rápido.
Mas no fim, o que estava feito, estava feito. Eu iria para o tal encontro com as dez. Conheceria o árabe chique e charmoso do qual minha mãe falara e teria então, enfim, pelo menos tentado ajudar meu pai financeiramente.
― Ai Ai… Não sei o que faço com você, Pam. Tanto trabalho para tão pouco tempo… ― E minha mãe resmungava para ela própria tudo o que ela achava necessário eu fazer antes de viajar, o que aconteceria em menos de uma semana.
Uma semana que ela dizia ser pouco para comprar roupas novas, mudar o cabelo, fazer unha, depilação, sobrancelha, limpeza de pele e todos as milhares de outras coisas que ela queria que eu fizesse.
Para mim, uma semana era pouco para trancar a faculdade, pedir demissão do trabalho, agradecer por toda a ajuda que Ale e Sara sempre prestaram a mim, me despedir do Brasil que eu gostava tanto, me despedir do meu pai, pelo bem dele mesmo, sem que ele soubesse. Colocar juízo na cabeça do meu irmão para que cuidasse de papai e mamãe e, por fim, viajar rumo ao desconhecido, a um futuro com muitas portas, muitos caminhos e nenhuma certeza especial.
Conhecer nove meninas, conhecer um árabe de Dubai. Fingir que está tudo bem com isso e me esforçar o máximo possível para ser uma escolhida. Sim, eram muitas coisas para se fazerem em tão pouco tempo.
Mas ainda assim, necessárias. O que está feito, está feito. Disse para mim mesma.