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Capítulo cinco

MAJU

Tomei mais um gole da minha bebida, rindo das loucuras que Mari e a minha vó conversavam. Sair com as duas é pedir para rir tanto ao ponto de sua barriga doer, afinal essas duas tem tanto assunto que não sei de onde tiram. Eu, logicamente, vou junto nessa doideira.

Está com elas me faz bem, torna qualquer dia sombrio mais alegre. Essas duas foram o meu ponto de segurança, o meu refúgio em meio ao caos. Todas as vezes que estive a um passo de me jogar do precipício, elas seguraram firme na minha mão e me ajudaram a prosseguir, por mais difícil que tudo pudesse parecer.

Se hoje falta pouco para me formar em medicina, devo tudo a elas. Minha avó não teve medo, pegou firme no batente e sustentou toda a casa, enquanto isso eu caí de cabeça nos livros. Estudei o máximo que pude, com o foco total no enem. Mari, mesmo sem saber a matéria, estudava comigo e não me deixava desanimar em nenhum momento.

Passamos por alguns sufocos, mas quando meu nome ficou em primeiro lugar em diversas universidades, principalmente na UERJ que é onde estudo, tudo valeu a pena. Naquele dia eu vi a minha velha chorar, mas dessa vez de felicidade. O orgulho que vi no seu olhar me emocionou, ou melhor, deixa-me emocionada toda vez que recordo. O meu maior foco é ser a mulher que ela criou, deixá-la orgulhosa e lhe proporcionar a vida mais confortável que eu consegui.

__ Aquele carro está estranho.--- Comentei por alto, vendo um carro preto parar bem na frente do restaurante. Um carro todo escuro, sendo seguido por mais dois no mesmo estilo.

__ Nunca vi ele por aqui.--- Comentou Mari, dando-me razão.

__ ABAIXA.--- Gritei para todo mundo, assim que vi a janela se abrir e um fuzil passar por ela.

Joguei o meu corpo contra o de minha vó, derrubando nós duas no chão. Mariana também agiu por instinto, deitando no chão assim que falei. Foi só sentir o chão que o barulho ecoou, logo em seguida um grito desesperado de uma mulher.

__ É OS CU AZUL, CARALHO.--- Gritou o loiro que me parou no banheiro.--- QUERO TRÊS NA SEGURANÇA DA MINHA FAMÍLIA, QUATRO COM O GREGO E O RESTANTE COMIGO.

Gritou dando ordem a todos, tirando logo a glock da sua cintura. Ele se jogou no chão, com a ajuda dos meninos, derrubou a mesa e fez a mesma de escudo. Ele fez a mesma coisa com uma mesa que estava próximo da gente, parando atrás dela. Os soldados fizeram o mesmo, começando a trocar tiro.

O moreno foi para o seu lado, tirando a arma e tentando ajudar. Em questão de segundos, mais carros pretos chegaram, dando uma desvantagem descomunal aos meninos, afinal tinha um grupo deles sim, mas não uma quantidade necessária para bater de frente.

__ Presta atenção.--- Falou o branquinho para o moreno.--- Eles querem a mim, eu me entrego e eles vão embora, depois nós arma uma forma de eu fugir. Só não podemos deixar que descubram que tu tá aqui.

__ Eu não vou deixar você fazer isso.--- Negou.

__ Presta atenção, caralho.--- Falou o moreno.--- Eu sou o dono dessa merda, eles não vão sair até me ter. Vamos dar isso pra eles antes que descubram que o chefe da facção até aqui, aí a casa vai fuder de vez.

Meu coração trava. O branquinho que falou comigo é o de frente, aquele que me secava junto dele é o chefe da facção. Eu tenho que me manter bem longe, tipo a quilômetros de distância, desses dois. Já estou me xingando tanto por ter chamado a atenção.

Maldito momento que desejei sair de casa.

Maldito segundo em que aceitei o desafio da Mari.

Maldito minuto em que chamei a atençã deles.

Olhei para Mari, fazendo um sinal com a cabeça e ela entendeu. O bom de vim sempre aqui, é que já conheço o lugar todo de olhos fechados. Eles tem uma porta na última cabine do banheiro femenino, que para os de fora vive interditado. Eu mesma só sei porque a Mari descobriu quando foi transar com uma menina lá.

É uma passagem escondida, ninguém sabe. É uma saída de emergência para momentos como esses, basta ir pela porta e sair em uma viela desconhecida pelo morro.

Segurei na mão da minha avó, esperando o melhor momento para puxar ela pra fora da li. A gente só precisa sair dessa confusão sem ninguém ferido. Preciso proteger a todos, ninguém vai morrer, recuso-me a permitir que algo assim aconteça.

__ Te tirar de novo vai ser quase impossível, Coringa.--- Falou o moreno.

__ Caralho, Grego. A minha irmã foi atingida, ela precisa ir pro hospital e se continuar assim, ela não sai daqui viva.--- Falou.

"Não vai sair daqui viva."

Se repetia a frase, tipo um mantra na minha cabeça. Uma inocente, que não tem nada haver com a história, poderia morrer. Não, ela não pode morrer. Eu sou enfermeira, quase médica, não posso permitir que algo assim aconteça.

Eu jurei a mim mesma sempre lutar por uma vida, independente de quem seja. A minha profissão vem acima de tudo, do que a pessoa é, seja bandido ou policial. A vida vem acima de tudo.

Agindo pensando em salvar a menina, rastejei para perto deles que me olharam surpresos.

__ Tem uma saída secreta na última cabine do banheiro femenino, aquele que vive interditado.--- Comecei.--- Levem a menina lá, eu preciso atender ela e descobrir o que está acontecendo. Qualquer segundo importa, então não demorem.

Falei em tom de ordem, procurando ao máximo não encarar os dois. Só uma questão como essa para me fazer conversar com bandido, principalmente aqueles que são fortes. Procuro me manter afastada de tudo isso, mas parece que todo esse mundo corre atrás de mim em compensação.

__ Preciso que alguém me leve até a vítima, eu preciso estabilizar ela antes de sairmos. Um de vocês me leva lá, ou os dois. Mas preciso que alguém tire a minha familia desse fogo cruzado.--- Ordenei.

Quando estou sob pressão, o meu espírito de liderança ativa. No hospital eu desempenho uma função importante, preciso comandar muitas equipes, com mais de vinte pessoas em cada e manter tudo em ordem. Sou boa nisso, a experiência me fez ser a melhor.

__ Quem você acha que é para nos dar ordens?--- Perguntou o tal de grego.

__ Quer falar sobre isso agora, sério? Tem uma pessoa, lá atras, que está sangrando e precisa de ajuda médica. Ou você engole esse orgulho ou as coisas vão ficar bem complicadas.--- Revidei.

__ Já é, mas se algo acontecer com ela, o mesmo acontece com você.--- Ameaçou o Coringa, o mesmo que me parou no banheiro.

Revirei os olhos, claramente irritada. Minha maior vontade é mandar ele se fuder, afinal não é a coisa certa a se falar para um profissional da saúde. Mas no momento eu tenho que salvar alguém, o que claramente é mais importante.

__ Cuida da vó.--- Pedi a Mari que concordou, segurando nas mãos da minha avó.

__ Que Deus te dê sabedoria, Maju.--- Desejou, visivelmente preocupada.

Concordei com um sorriso, tirando o meu salto. O grego foi na minha frente, o coringa atrás de mim. Assim que chegamos na mesa onde eles estavam, vi uma menina caída no chão, muito sangue ao redor e as pessoas visivelmente nervosas.

Naquele momento eu liguei o automático, coloquei os meus anos como doutora em prática. A primeira coisa que fiz ao me aproximar, foi deitar ela da forma correta. Coloquei a minha mão no seu pulso, vendo que a pulsação era quase inexistente.

__ Merda.--- Xinguei em voz alta.

__ O que houve?--- Perguntou a moça que presumi ser sua mãe.

Pelo que sei, falar essas coisas aos familiares dos pacientes nunca é o recomendado. Por isso me mantive quieta e fiz o que era necessário. Entrelacei minhas mãos no meio dos seus peitos, deixando os meus braços esticados. Utilizei do peso do meu corpo, dando dois empurrões por segundo. Fiz esse procedimento três vezes antes de checar o seu pulso, vendo que mesmo fraco, ao menos tinha voltado.

__ Ela precisa ir para o hospital, agora. O pulso está fraco, presumo que possa ter uma parada cardíaca a qualquer momento e se tiver aqui, não terei como trazê-la de volta sem os equipamentos necessários.--- Falei tentando manter a calma.

__ Nada disso, é só retirar a bala que ela vai ficar bem.--- Coringa.

Levantei o meu olhar, totalmente incrédula. Essas pessoas, que são leigos na medicina, e ainda tentam dar uma de que sabe mais do que quem passa anos na faculdade estudando sobre.

__ Sem os equipamentos necessários, ao menos esterilizados, correndo um grave risco de causar uma infecção? Isso na melhor das hipóteses, porque eu nem sei se a bala se alojou em um de seus vasos sanguíneos, o que causaria uma hemorragia externa ou interna. A externa eu ainda teria chance de controlar, já a interna só assistimos ela morrer. Se for no coração as coisas ficam ainda piores, você não vai querer mesmo saber os riscos.--- Neguei com a cabeça.--- No momento, eu preciso bater um "raio x" e ver onde a bala está alojada, qual foi o caminho que a mesma percorreu e se prejudicou algum dos órgãos nesse processo. Só então, em um ambiente próprio e com os equipamentos devidamente desinfetados, inicia-se uma cirurgia totalmente perigosa.

__ Como você sabe de tudo isso?--- Perguntou o tal de grego, totalmente surpreso.

__ Estou no último período de medicina pela UERJ, trabalho como enfermeira chefe no Albert Einstein. Sei que sou uma completa desconhecida, mas vão precisar confiar em mim se querem que ela viva novamente.--- Falei totalmente segura de mim.

__ Faça o que for necessario.--- Falou a senhora com lágrimas nos olhos.

__ Mas...-- Coringa começou a falar.

__ Estamos falando da vida da sua irmã, Rafael. Então você cale a sua boca e aceite tudo que essa menina está falando, porque eu não vou perder a minha filha por causa do seu maldito orgulho.--- Falou a mãe deles.

__ Tudo bem, mas a favela está um caos, só poderá ser no postinho da comunidade.--- Falou contrariado, mas deixando claro que não mudaria de ideia com relação ao local.

Respirei fundo, concordando com a cabeça. Antes lá do que aqui.

Com a ajuda de um deles, conseguimos pegar a parte redonda da mesa. Colocamos a menina ali, com o maior cuidado, coloquei as minhas pernas pelo seu corpo, a prendendo ali e fui fazendo a massagem cardíaca, vendo que o seu pulso oscilava.

__ Se continuar assim você pode levar um tiro.--- Falou um deles.

__ Se eu não continuar assim, vamos perder ela antes mesmo de chegar ao hospital.--- Argumentei o deixando sem fala.

Finalmente se dando conta da gravidade, ele concordou com a cabeça. Um monte de mavambos ficou ao nosso redor, pegou a mesa com nós duas e levantou, saindo correndo enquanto outros davam cobertura.

Que Deus me ajude a salvá-la.

Tento controlar o meu desespero pelo som dos tiros, isso me deixa extremamente nervosa. Acaba funcionando como gatilho, afinal perdi o meu pai e vi tantas pessoas morrerem por causa de uma bala. No momento eu preciso ser forte, tenho que ser fria com a situação e focar apenas na vida que preciso salvar.

Essa semana eu já perdi muitas pessoas que foram vítimas de bala perdida, essa menina não vai entrar nessa estatística tão cruel. Eu só preciso que ela lute para continuar viva, porque eu vou lutar com todas as minhas forças para que ela continue viva.

Os meninos atiram na fechadura, obrigando o postinho abrir. São mais do que oito horas da noite, o que significa que o expediente havia acabado e tudo estava fechado.

__ Pega uma maca para mim.--- Pedi um dos vapores que logo fez o que pedi, assim que o coringa confirmou.

Sai de cima e passamos ela para a maca, com todo o cuidado do mundo. Chamei outro dos mavambos, ensinando ele o que fazer. Quando o mesmo pegou o jeito, sai correndo atrás do desfibrilador mecânico. Preciso incentivar as batidas do seu coração, ele precisa bater sozinho sem a massagem, caso contrário não vou conseguir bater o raio x.

Voltei com todos os equipamentos, colocando ela na máquina que mostra os batimentos cardíacos. Ensinei como recarregar a máquina, preparei tudo e antes de dar o choque, acabei por orar.

__ UM, DOIS AFASTEM-SE.--- Fiz a mesma coisa que faço em quase todo plantão.

O metal se chocou contra o seu corpo, que como resposta levantou da máquina e deitou novamente. Como não houve nenhum efeito, aumentei um pouco e fiz novamente, sem resposta.

__ Qual o nome dela?--- Perguntei.

__ Giovanna.--- Falou a mãe.

__ Vamos lá, Giovanna. Sua última chance de lutar pela sua vida.--- Falei enquanto colocava a potência no máximo.

__ Vamos maninha, prometo comprar aquela moto que você tem me pedido.--- Falou Coringa, visivelmente abalado, ao meu lado.

__ UM, DOIS E AFASTAM-SE.--- Gritei como ordem, chocando o metal contra o seu corpo. Dessa vez ele se levou novamente, mas ao retornar, o monitor marcou os batimentos.

__ Graças a Deus.--- Comemorei.--- Me ajuda a montar o raio x.--- Pedi aos meninos que concordaram.

Comecei a correr, procurando a sala. Ao achar, fui arrumar os equipamentos.

__ Que odio.--- Chinguei dando um chute naquela merda, ao constatar que a mesma estava ruim.

__ O que houve?--- Coringa.

__ Tá ruim, vou ter que operar ela as cegas.--- Confessei tentando me manter calma.--- Eu preciso de um hospital.

__ Você tem o postinho.--- Coringa.

__ Que odio.--- Praguejei voltando à sala principal.

Levei ela até uma das salas que mais parecia a sala de cirurgia. Coloquei um dos bandidos para ir esterilizar o material, enquanto isso eu prendia o meu cabelo.

__ Me dá a sua blusa.--- Pedi ao grego. Meio confuso ele o fez. Vesti a mesma, tirando a minha saia. Não é a veste recomendada, mas é o melhor que vou conseguir no momento.

Coloquei o aparelho respiratório, mandei pegar algumas coisas lá em casa que não tinha aqui. Quando já estava tudo pronto, fiz uma oração silenciosa e comecei a cirurgia mais complicada de toda a minha vida.

Nem médica sou, estou no processo para me tornar uma. Então, agora, só me resta pedir ajuda aquele a quem muitos se referem como médicos dos médicos e lembrar de tudo que aprendi e das cirurgias que já auxiliei.

__ Você consegue, Maju.--- Falei para mim mesma, dando início ao procedimento.

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