Capítulo Dois
Cresci nas vielas e ruas da favela Cidade de Deus. Digo isto, por quê realmente cresci neste lugar e nada nunca me aconteceu, mas não por não haver criminalidade, havia, mas por ninguém ser louco o bastante para mexer com a enteada do dono do morro.
Já fazia um bom tempo que meu padrasto comandava toda a favela e apesar da polícia querer tirá-lo a todo custo, vivo ou morto, ele perseverava e mantinha as coisas como achava certo.
Pode até parecer fácil para alguns minha vida, imaginarem que eu tinha uma vida com luxo, esbanjando dinheiro para todos os lugares que eu ia. Mas não era bem assim. Nossa vida estava em constante perigo e quando digo constante, é constante, não sabíamos quando a polícia iria invadir ou algum inimigo do meu padrasto.
Era difícil saber quando estava segura e quando não estava, só sabia que na favela era o lugar que estava mais segura, fora, era como se colocasse um alvo em minhas costas e pedisse para ser morta ou presa como associação ao tráfico.
Até aquele momento, havia passado toda a minha vida naquele lugar, não conseguia me imaginar em outro lugar e até conseguia, já que uma vez ou outra, saia da favela. Mas felizmente ou infelismente, aquela foi a saída que minha mãe encontrou para não morrermos.
Ela queria proteção e ela conseguiu, só que com isto, veio mais bagagem do que eu queria. Começando por Pedro Henrique.
Você pode achar que estou exagerando, que não é bem assim, mas é. Pedro Henrique faz questão de pegar no meu pé todo o santo dia, desde que começamos a morar na mesma casa.
Por quê? Não faço ideia.
No começo, achei que fosse por ele não aceitar que o pai começasse outro relacionamento, apesar da mãe dele não ter feito isto, por ter ficado paraplégica após um acidente de carro. Sempre me senti meio que...divida em relação à isto, quanto a minha opinião.
Nunca soube se ele fizera certo em seguir a vida dele ou se ele tinha que ter continuado ao lado dela, era difícil escolher qual lado eu ficaria. As vezes me colocava no lugar dela, deste modo iria querer que ele continuasse ao meu lado, mas desta forma, ele estaria jogando o restante da vida dele por causa de mim e não era justo. Então dessa forma, iria querer que ele seguisse com a vida dele, mesmo eu tendo que morar com ele e a nova enteada dele na mesma casa.
As implicâncias de Pedro Henrique continuaram durante os anos, era irritante e as vezes desejava que a minha mãe acordasse e, terminasse aquele relacionamento mas, a cada dia, ela parecia mais “feliz” e cega pelo dinheiro.
Os anos começaram a passar e comecei a igManuelar a existência de Pedro Henrique, só assim para viver na mesma casa que ele.
Só que agora não éramos mais crianças, muito menos adolescentes. Já era uma mulher e ele...continuava irritante e não via a hora dele sair daquela casa e ir morar em qualquer outro lugar, bem longe de nós.
Enquanto este dia não chegava, era obrigada a lidar com ele, mesmo um pouco da minha paciência indo embora todas as manhãs, quando ele fazia questão em me acordar do jeitinho gentil dele.
Era sempre a mesma coisa, entrava de fininho dentro do meu quarto, sem fazer nenhum barulho ou ruído. Depois disso, puxava com toda sua força a coberta que me cobria e simplesmente saia correndo e gritando.
Isto já era motivo suficiente para acordar de mal humor e querer torcer o pescoço dele com as minhas mãos, claro que nessa hora, não conseguia fazer isso, já que ele corria mais do que outra coisa e sempre se escondia atrás da minha mãe.
Naquela manhã, não foi diferente e já cansada dessa situação, corro atrás dele como um touro, já sentindo a textura do cabelo e da pele dele, antes mesmo de por minhas mãos nele.
Ele é rápido, como sempre, e corre para onde minha mãe estava, fazendo ela de escudo.
- O que é agora?! - Ele a sacode de um lado para o outro, tentando evitar que eu jogasse um objeto nele.
- Manuela quer me bater - diz ele com os olhos fixos em mim.
- Não quero só bater em você não! - digo entre dentes - Quero MATAR VOCÊ, PEDRO HENRIQUE! - grito, indo na direção deles.
- Sandra! - Pedro Henrique altera a voz, recuando levando minha mãe junto.
- Manuela, para! Você sabe muito bem que o Jorge não gosta dessas brincadeiras - adverte.
- E desde quando estou brincando com ele?! Nunca brinquei com o Pedro Henrique mas, ele faz questão de fazer essas brincadeiras idiotas comigo.
Minha mãe solta o ar dos pulmões impaciente.
- Já faz quase uma semana que você não sai daquele quarto. Ele fez um favor!
- Eu. Não. Estou. Bem, mãe! - digo pausadamente, tentando lembrar não só ela, mas também o idiota do Pedro Henrique, que estava sofrendo pelo término do meu relacionamento e o mínimo que ele tinha que fazer era ter um pouco de empatia, se é que ele sabia o quê era isso.
- Se eu fosse você, nem estaria mais sofrendo pelo Rogério. Pelo amor de Deus, minha filha, você merece coisa melhor, se valorize.
- Vai começar mesmo, mãe?
- Se eu fosse você, escutava sua mãe - diz Pedro Henrique de forma debochada.
- É melhor você calar tua boca, se não quiser ficar sem língua.
- Pedro, você não tem nada pra fazer não? - Minha mãe pergunta de forma gentil.
- Ter eu tenho, mas ela não vai deixar eu sair - Ele murmura.
- Manuela - diz minha mãe calmamente - Já chega.
Suspiro, cruzando os braços, dando um passo para o lado. Pedro Henrique solta minha mãe e olhando fixamente para mim, sai da cozinha, aumentando os passos somente quando já está fora do cômodo.
- Vocês tem que parar com isso - diz minha mãe, voltando para o quê estava fazendo - Vocês não são mais criança e sabe muito bem que o Jorge perde a paciência quando vocês ficam brigando.
- Mãe, não é eu que começo. É ele - Ressalto.
- E você tem que se importar? IgManuela ele. Uma hora ele vai cansar e vai parar.
- Já fiz isso e da última vez que ignorei ele, ele fez questão de me arrastar pela casa toda - E neste dia, ele fez questão de me igManuelar enquanto fazia isso. Então definitivamente igManuelar Pedro Henrique estava fora de questão, só Deus sabe o quê ele poderia fazer.
- Ele vai embora, Manuela.
- Quando?
- Assim que a casa dele e da mãe dele ficar pronta - Reviro os olhos. Já fazia mais de um ano que aquela casa estava em construção, se é que podia chamar de casa, já que era uma baita mansão, grande demais para duas pessoas, quer dizer uma, e achava um completo exagero.
Claro que Pedro Henrique não ficaria solteiro para sempre, um dia ele arrumaria uma esposa, depois filhos e já teria um lugar para morar com eles. Mas mesmo assim, achava grande demais.
Mas enfim, não via a hora disso acontecer. Finalmente eu teria paz e poderia dormir em paz também.
- Acho que está mais fácil eu ir embora - resmungo.
- Você não vai pra lugar nenhum - diz séria.
Dou de ombros.
- E não vou casar não?
- Se for com o Rogério, prefira que morra solteira.
- Nossa, mãe. Não começa - digo saindo da cozinha, nem um pouco a fim de ouvir ela falando o quanto ele era tóxico para mim e que eu merecia alguém muito melhor, alguém que me desse valor e que me amasse da mesma forma.
Só que eu já tinha alguém e era o Rogério, não precisava mais de ninguém e a única pessoa que não via isso, era a minha mãe.
Novamente em meu quarto, não estava mais com sono e nem um pouco a fim de voltar para minha cama. Invés disso, arrumo a cama e algumas coisas espalhadas pelo quarto.
Um banho depois e vestida na minha roupa mais confortável, decido abandonar o lugar que havia ficado enfiada nos últimos dias, esquecendo completamente que havia vida social do lado de fora daquele quarto.
Se era para me sentir melhor fora daquele quarto, não me senti. Me senti bem melhor e praticamente meu corpo gritou para voltar para a cama e, estava fazendo isso, quando escutei passos pesados atrás de mim.
- Manuela - A voz rouca de Jorge soa atrás de mim, me fazendo parar - Quero falar com você;.
- Pode falar - digo me virando.
Jorge diferente da minha mãe, não era branco, ele era negro, alto, musculoso. Para um coroa, até que bonito e aqueles fios brancos, com certeza faziam toda a diferença e o deixava mais atraente. Não que minha mãe não fosse, ela era, mas era o oposto dele, branca, loira e altura mediana. Graças a Deus, puxei as características do meu pai e foi agraciada com uma pele parda que, fazia questão de bronzear.
- Lá em baixo.
Sem argumentar, o segui, nunca era bom argumentar com o Jorge. Ele era acostumado em dar ordens e os soldados dele obedecerem no mesmo instante, sem argumentar ou tentar qualquer outra coisa.
Assim eu fiz, encontrando minha mãe já tomando café e Pedro Henrique, sim, o peste estava bem ali, tão perto de mim que podia sentir o perfume dele e desejar fechar minhas mãos no pescoço dele.
Mas não fiz. Odiava quando Jorge chamava minha atenção e aquela manhã ele parecia ter algo importante para fazer.
- Tá pegando o quê, coroa? - Pedro Henrique pergunta mastigando.
- Mal educado - resmungo baixo, pegando um p]ao.
- Estou precisando de vocês aí - Ergo meu olhar no mesmo instante surpresa, não era todos os dias que Jorge pedia ajuda nossa para alguma coisa. As vezes tinha a impressão que ele tinha a impressão que éramos inúteis para ele, mesmo minha mãe se esforçando ao máximo para querer estar por dentro de todos os assuntos da favela.
Jorge até tentava atualizar ela de tudo, mas simplesmente a mente da minha mãe bugava quando se tratava de negociações incluindo as drogas. Ele tinha contatos com homens fora do Brasil, que mantinham a favela constantemente abastecida.
Mesmo que me pagassem, não iria querer aprender nem a metade. Era muita responsabilidade e não conseguia me imaginar nem por um minuto na frente daquele morro.
- E no que é? - Pedro Henrique decide fazer a pergunta que já estava na ponta da minha língua.
- No progresso da favela.
Ergo uma sobrancelha.
- Como assim?
- Pedro Henrique vai ficar encarregado com a gerência e você também. Um só não vai dar conta.
Abro e fecho a boca sem saber nem o quê pensar. Já não era mais do que suficiente eu ser enteada dele, ele ainda tinha que me colocar oficialmente no tráfico?
- Beleza - diz Pedro Henrique sem ao menos pensar.
Mas que porra!
Os olhos da mesa se fixam em mim.
- Eu... - Estava me sentindo mais do que incomodada mas, não podia transmitir isso. Tudo bem até aquele momento para mim, ter que conviver com drogas, armas, mortes e seja lá mais o quê, mas até então naquele momento, não usava drogas, não vendia drogas e muito menos tinha lidar com drogas.
Só que agora Jorge estava me pedindo isso e eu não sabia como dizer à ele que não queria e não poderia ser obrigada. Parecia simples, mas ali, naquele momento, sentindo toda aquela tensão com pressão, as palavras não saiam da minha boca, simplesmente ficavam engasgadas.
- Tá. Por mim tudo bem - murmuro contra a minha vontade.
Jorge não diz nada, apenas assenti, se concentrando em comer. Para ele aquele assunto já estava terminado mas, para mim, só estava começando.
Meu olhar se cruza com o de Pedro Henrique e por um momento tenho a impressão que aquilo não iria dar certo. Nada com Pedro Henrique no meio, dava certo.
O café da manhã continua num silêncio parcelado, minha mãe trocava poucas palavras com Jorge e não demorou para Pedro Henrique levantar e ir levar o café da manhã da mãe dele.
Já havia um bom tempo que morava com eles e até aquele momento não tinha visto ela de perto, muito menos trocado alguma palavra com ela. Primeiro, que Pedro Henrique só permitia que ele ou a cuidadora cuidasse dele e, segundo, minha mãe nunca achou uma boa ideia, irmos até o quarto dela, invadir a privacidade dela, o único ambiente no qual ela deveria se sentir bem e livre de nós. E sobre isto, não conseguia discordar, não iria gostar de estar na situação dela e simplesmente ter que ver meu ex-marido com outra, vivendo felizes, enquanto estava presa em uma cama dentro de um quarto.
Pedro Henrique demorava no quarto em todas as refeições, sempre quis saber o por quê de tanta demora, mas nunca descobri e quando ele saia de lá, estava normal, não permitindo que eu tirasse alguma conclusão.
Minha mãe não falava sobre o assunto, ela evitava claramente, explicitamente, não gostava de falar da condição dela, ela continuava a temer que as pessoas a julgassem ainda mais, então preferia ficar quieta. Já Jorge, pelo menos duas vezes ao dia, ia até o quarto perguntar se ela estava se alimentando bem, se precisava de alguma coisa e insistir que ela tomasse banho de sol, duas vezes na semana, isso acontecia e quando isso acontecia, evitava de ficar andando de um lado para o outro, mostrando minha existência.
Poucas vezes, quero ressaltar que poucas vezes, sentia muito por Pedro Henrique, não deveria ter sido fácil e nem deveria ser, ver a mãe naquele estado e não poder fazer muita coisa, além de a deixar o mais confortável possível e ser o mais presente possível. Mas essa minha empatia sumida rapidamente, quando ele começava a me irritar e até conseguia me esquecer da existência da mãe dele e o ameaçar o mais alto possível de morte.
Não era minha culpa, ele me obrigava à isso, parecia que ele gostava de me irritar, de me ver correr atrás dele prestes para matá-lo de verdade. A verdade era que não conseguia entender ele e duvidava que um dia iria.
Mas enquanto isso não acontecia, iria fazer o que Jorge queria e pedir com todas as minhas forças mentalmente que ele me tirasse deste cargo rapidamente e eu pudesse voltar para a minha vida que não era muito agitada ultimamente.
Só queria voltar a sofrer por amor. Pelo meu amor.
Ainda precisava descobrir um meio de fazer Rogério voltar atrás o mais rápido possível, mas estava sendo mais difícil do que pensava e não conseguia pensar em nada, muito menos estava recebendo ajuda de alguém para isso.
Sentia que o tempo estava contra mim e estava desperdiçando o tempo quando não pensava em nada brilhante
- Manda comprar a carne - Ouço Jorge dizer para a minha mãe, antes de sair de casa, isso faz com que eu apure meus ouvidos;
- O mesmo de sempre?
- É - Em seguida o ouço sair de casa.
"O mesmo de sempre" significava uma ótima oportunidade para mim. Um churrasco na laje de casa!
