Carolina
Não me sentia eu mesma. Me sentia em volta de uma bolha.
Meu marido havia morrido bem diante de meus olhos e eu só sabia chorar. A única coisa que eu conseguia lembrar, com tantos momentos bons, era no exato momento em que ele parou de respirar e em como o sangue dele era quente em minha mão.
Nas primeiras horas depois do final da missão, que apenas para ressaltar foi pior do que imaginávamos, já que não somente um policial havia sido morto, como outros haviam ficado feridos com duas explosões e também civis baleados.
A mídia caiu matando em cima de nós, ressaltando o quanto éramos despreparados e em como colocamos a vida de várias pessoas em perigo.
Naquele dia, não teve ninguém para dar entrevista, ninguém tinha coragem o suficiente para isso, mesmo alguns colegas acreditando que eu deveria fazer esse papel. Só Que não me sentia completamente estável, não emocionalmente. Minha cabeça rodava e rodava, meus pensamentos, pareciam uma cama de gato de tão confusos e as lágrimas não paravam de molhar meu rosto, mesmo eu me esforçando para não deixá-las vir a tona.
Não queria parecer uma fraca. Não queria que pensassem que eu não conseguia nem segurar a barra do fato de que não teria mais meu marido por perto. Muito menos queria que pensassem, que não conseguiria dar conta dos meus filhos que, agora não teriam mais a participação do pai da vida deles.
A primeira pessoa que dei a notícia da morte de Guilherme, foi a minha mãe. Por alguma razão, achei que ela me daria o apoio que eu precisava, mas invés disso, só tive o silêncio como resposta.
Logo a imprensa divulgaria a morte de Guilherme e queria que meus filhos já estivessem cientes disso, mesmo eu não tendo coragem de dizer tal coisa. Não conseguia. Não havia palavras bonitas ou...leves, que pudesse usar naquele momento que fizesse os dois entender o que era a morte.
Nenhum dos dois sabia o que era a morte. Ainda acreditavam que as pessoas viviam para sempre e não queria ter que furar a bolha deles e mostrar que não era bem assim, que vivíamos num mundo injusto, onde pessoas boas morriam mais cedo do que deveriam e as más, permaneciam vivas por muitos e muitos anos.
A vida era injusta. Horrível. E agora tinha mais certeza ainda disso.
Então a responsabilidade acabou ficando para minha mãe, contar as crianças o que havia acontecido. Sabia que era minha responsabilidade? Sabia. Mas não conseguia.
Os dois estavam em casa quando finalmente cheguei em casa, Isabela que deveria estar na escola, estava com a expressão assustada e encolhida no sofá, enquanto Bento continuava a viver sua vida como se nada tivesse acontecido, como se seu pai fosse entrar pela porta a qualquer momento.
Era exatamente isso que ele esperava, já que assim que me viu, olhou para trás, esperando ver o pai. Acreditando que o pai deveria estar na garagem ou na rua, ele levanta e anda até a porta, permanecendo ali parado, olhando, em sua última tentativa de vê-lo.
Aquilo foi o suficiente para fazer as lágrimas vinhesse novamente e eu tivesse que ir em passos largos para meu quarto, aonde o cheiro dele estava mais presente do que eu lembrava naquela manhã
Ainda com a farda, sento nos pés da cama como fazia todas as noites e choro baixo, segurando a todo custo o choro que queria ser libertado. Ergo a cabeça quando a porta abre e por um instante, esperei, achei que fosse Guilherme, mas só era minha mãe com a sua expressão séria e olhar severo.
- Como isso aconteceu? - pergunta séria, com a voz parecendo um cubo de gelo.
Com tantas perguntas que ela tinha para me fazer, incluindo se eu estava bem, se precisava de alguma coisa ou qualquer coisa que me fizesse sentir que se importava comigo, tinha que perguntar justamente em como Guilherme havia morrido. Como ele havia sido morto.
Minha mãe mesmo no meu momento de dor, estava sendo apenas minha mãe. Cruel.
- Ele foi morto - murmuro, evitando de olhar para ela.
- Isso eu já percebi, Carolina - diz com um pouco de irritação - Quero saber como aconteceu - insiste.
Isto o traria de volta?, penso. Faria com que Guilherme voltasse para casa? Acho que não...
- Pra quê a senhora quer saber?
- Pra quê eu quero saber - Ela repete impaciente - Nossos amigos, vizinhos e conhecidos vão começar a fazer perguntas e quero saber o que vou responder.
Seguro meu rosto entre as mãos, apertando-o. Desejando estar em qualquer lugar naquele momento, até no necrotério com Guilherme, seria melhor do que ter aquela conversa com a minha mãe.
- Não é da conta deles de como ele morreu - digo irritada - Guilherme morreu, mãe.
- Quero saber se vai esconder isso da mãe dele - diz cruzando os braços - Era sua obrigação você ligar para ela. Mas eu tive que ligar. Você não ouviu o choro de desespero dela e é claro que ela vai querer saber como foi que o filho dela morreu.
Pressiono meus lábios com força, sentindo a raiva dentro de mim perder controle e simplesmente explodir como um vulcão em erupção.
- Ele foi morto por um traficante! - grito - Um bandidinho de merda!! Praticamente ele sangrou até morte bem diante dos meus olhos e eu não pude fazer nada pra ajudar ele! - Quando termino minha respiração está acelerada e as lágrimas estão embaçando minha visão - Tá feliz agora?!
A expressão da minha mãe não se altera, permanece intacta, como se estivesse vendo um filme sem graça.
Era isso que eu era para ela? Uma pessoa sem importância?!
- Vê se você se recompõe, está parecendo aquelas mulheres histérica - diz saindo em seguida do quarto.
Passo as mãos pelo rosto algumas vezes, sentindo uma agonia que nunca senti antes, misturada com angústia e desespero. Me lembrava um ataque de pânico, já que meu coração começou a doer em cada batida que dava.
Começo a respirar pela boca ao inclinar a cabeça para trás, tentando me acalmar, trazer o controle sobre meu corpo, mas só queria sentir a vontade de gritar até perder o fôlego, por tudo que estava sentindo para fora mas, só conseguia fazer era segurar. Segurar o que é que fosse, dentro de mim, como se eu ainda tivesse algum controle.
- Mãe? - diz Isabela baixo, me trazendo para a realidade.
-...oi - sussurro, forçando um sorriso.
Os olhos dela vagam pelo quarto, como se procurasse alguma coisa, antes de voltar a se fixar em mim.
- A vó disse que o papai não vai mais voltar pra casa - murmura - É verdade?
- É sim .
- Por quê? - Sem história com estrelinha. Sem história com estrelinha, repito em minha mente. Sempre odiei aquela versão de quando a pessoa morria, não queria ter que meus filhos também odiassem.
Duvidava que as pessoas virassem estrelas quando morrem. Guilherme não havia virado uma estrela.
Não havia outro jeito fácil. Não tinha. Como iria explicar para uma criança de 7 anos o que era a morte?
- Ele virou uma estrela, Bela.
- Uma estrela? - Ela repete confusa.
- É. Seu pai está no céu agora, junto com anjinhos.
- Então ele morreu - Ela conclui ao me olhar novamente.
Pisco algumas vezes, inspirando profundamente.
- É.
Ela assenti ainda aparentemente confusa, girando o tronco em seguida para sair do quarto.
Pelos próximos minutos, consegui ficar sozinha. E só conseguia pensar com o que faria com as roupas de Guilherme, seus pertences; Como seria minha rotina agora sem ele e quando pararia de doer tanto. Só queria que parasse de doer.
Aquela dor era sufocante, enlouquecedor e minha cabeça não estava ajudando. Só ficava lembrando e relembrando o que havia acontecido.
Deveria ter feito mais por ele, ter feito mais pressão no ferimento, pedido socorro, feito mais do que eu fiz, além de ter ficado paralisada na frente dele e o observado morrer.
Assim como os outros, aprendi os primeiros socorros. Por que não coloquei em prática? Era simples, só tinha que ter colocado em prática tudo que aprendi e eu teria conseguido salvar a vida dele. Isso significava que eu tinha uma parcela de culpa na morte dele, eu havia sido negligente, não havia dado toda a assistência que ele precisava.
Depois de um banho, me senti um pouquinho melhor. Não muito. Apenas um pouco. Pelo menos já não chorava com tanta frequência, principalmente quando eu lembrava de Guilherme.
A consequência disso foi olhos inchados, que não queria nem um pouco disfarçar com maquiagem. Invés disso, vesti a primeira peça de roupa que encontrei e que achei confortável e decidi que sairia do quarto e que, ficaria com meus filhos. Eles precisavam de mim e eu acreditava que ficar um tempo com eles, também me faria sentir melhor.
Talvez se Guilherme estivesse no meu lugar, também pensaria da mesma forma. Também iria querer ficar com seus olhos e pensar em todos os momentos bons que tivemos ao longo daqueles 7 anos de casados.
Minha mãe estava na cozinha, terminando o almoço e as crianças assistindo um desenho que passava na televisão. Sento no sofá ao lado de Isabela, observando Bento brincar com os brinquedos espalhados no tapete.
Isabela estava com a expressão triste e o olhar distante.
- Desenhou hoje? - pergunto atraindo o olhar dela. Ela balança a cabeça no mesmo instante em negativa.
- Não sei o que desenhar.
- Faz um desenho do seu pai.
Ela fica pensativa.
- Vou poder dar pra ele?
Forço um sorriso, balançando a cabeça de um lado para o outro.
- A gente dá um jeito depois, tá bom?
- Tá - Ela sussurra, descendo do sofá e indo para a mesinha de centro.
- Bento - Chamo, tentando fazer com que desviasse a atenção da televisão - Bento - Chamo novamente, entretanto, ele não dá a mínima e lembro que se fosse Guilherme, ele nem teria que chamar, já que toda vez que ele se sentava naquele sofá, ele se colocava no colo dele, se aninhando em seus braços como um gato.
- Seu sogro disse que daqui a pouco tá chegando com a sua sogra -diz minha mãe, vindo da cozinha com uma bandeja com dois pratos, dando um para Bento e outro para Isabela, que não se mostrou muito interessada nas batatas fritas, diferente de Bento que começou a comê-las.
- Tá. Tudo bem - murmuro.
- Nem tem nada bem, Carolina - diz colocando uma mão na cintura - Seu marido morreu. Tá morto e você dizendo que está tudo bem.
Olho para Isabela, que tinha os olhos fixos na vó.
- Só é o jeito de dizer, mãe. E não precisa falar dessa forma na frente da Isabela - digo séria, fazendo com que ela olhasse para a neta e novamente para mim.
- Como se ela não soubesse o que é morte, né? Ela já tem 7 anos! Daqui a pouco já é uma mulher.
Solto o ar dos pulmões, inspirando profundamente, tão bruscamente que machuquei minhas narinas.
- Vou arrumar aquela cozinha antes que as pessoas cheguem e achem que você é mais desleixada do que já é - resmunga antes de voltar para a cozinha.
Os pais de Guilherme não demoraram para chegar. Moravam a uma hora de distância, mas chegaram até nossa casa com a metade do tempo. A mãe de Guilherme, era a versão feminina dele, junto com Isabela, ambas lembravam claramente dele e foi mais difícil do que pensei vê-la.
O pai dele, nem tanto. Apenas algumas manias os dois compartilhavam, mesmo assim, ele estava visivelmente abalado.
Dona Guilherme e Seu Paulo, entraram hesitantes na casa, mesmo com os olhos inchados de tanto chorar, se esforçaram para falar e abraçar as crianças, pareciam que estavam se sentindo bem melhor depois de um abraço das crianças e até ensaiaram um sorriso.
Minha mãe só sabia dizer o quanto Bento era ligado no 220 e como já não a obedecia, enquanto Isabela só sabia dizer que ela vivia no mundo da lua, no próprio mundo dela.
Ela só soube listar os defeitos deles, não disse uma qualidade, enquanto eu sabia as qualidades deles de cor e Guilherme também.
- Como você está? - Dona Guilherme pergunta, após dar toda a atenção que podia as crianças.
- Eu...
- Ela está bem - diz minha mãe, me interrompendo e atraindo o olhar estreito de Dona Guilherme, que volta sua atenção em seguida novamente para mim.
- Queria estar melhor - digo com um suspiro.
Ela funga.
- Nunca pensei que isso iria acontecer, que iríamos enterrar nosso único filho.
- Não sei nem o que dizer.
- O que aconteceu com o filho deles - diz minha mãe, conseguindo ser novamente o centro das atenções.
Dona Guilherme abaixa a cabeça.
- Já sei o que aconteceu com meu filho, Suzminha mãe. E ele sabia dos riscos que estava correndo, quando quis ser policial.
- Mesmo assim. Você...
- A única coisa que posso fazer é chorar - Dona Guilherme a interrompe - E enterrar meu filho.
Minha mãe volta a atenção para mim.
- Já era pra você estar vendo os preparativos do enterro.
Engulo em seco.
] Não tínhamos um convênio funerário. Toda vez que tocava no assunto com Guilherme, ele logo mudava de assunto e dizia que não queria atrair a morte, que fazendo isso, estaríamos atraindo a morte. Então, sempre ficava para depois, nunca pensávamos no assunto e agora ele havia morrido e eu tinha que pensar no assunto, tinha que fazer um velório que conseguíssemos homenageá-lo pela última vez.
E não fazia ideia por onde começar.
Eram tantos pequenos detalhes, tantas coisas para ver. Ainda tinha que avisar os conhecidos, ver onde ele seria enterrado.
- Você vai querer ajuda? - Dona Guilherme pergunta de repente, soando como uma luz no final do túnel.
- Ajuda? - Repito me sentindo fora de órbita - Quero. Seria bom.
- Carolina - diz minha mãe em reprovação - Você não consegue organizar o velório do seu marido?! - A pergunta soava como se eu não conseguisse dar conta de uma tarefa como aquela e outras que ela fazia questão de esfregar diariamente em minha cara.
Não iria dar conta. E acreditava que ninguém tinha que dar conta, quando justamente havia perdido alguém importante na vida. Talvez, eu conseguisse quando chegasse a hora dela morrer ou novamente me sentisse perdida num deserto.
- Não é tão fácil não, mãe - murmuro.
- Você mais do que ninguém, sabe do que seu marido gostava e iria saber do que ele queria no velório dele.
- Só que não era somente a família dele - Rebato elevando a voz, assustando até as crianças - Ele tem mãe. Pai. Tios. Primos - Minha respiração volta a acelerar, não posso ser egoísta nesse momento.
Ela cruza os braços.
- Não acho que isso seja egoísmo.
- Carolina - diz Dona Guilherme com a voz mansa - Se quiser fazer do seu jeito, faça. Isso não vai mudar nada.
- Eu não quero - digo sem pensar, sabendo que minha mãe com certeza estaria odiando meu comportamento - A senhora tem todo o direito de também ajudar.
Ela assenti com um suspiro, fungando novamente.
- O terno do casamento. Vocês ainda...?
- Temos - digo com um leve sorriso, lembrando sem querer do nosso dia perfeito, de quando dissemos sim. Nosso dia era todos os meses, exclusivamente no dia 10 - Está guardado no guarda-roupa.
- Isso não dá azar não? - diz minha mãe, enquanto levanto e caminho para o quarto - Usar justamente a roupa que ele usou no casamento para enterrar ele? - Ela pergunta num tom controlado, evitando que Dona Guilherme ou Seu Paulo escutasse.
- Só é uma roupa, mãe.
- Com bastante significado, Carolina - diz impaciente - Ele se casou com você usando ela.
Abro o guarda-roupa de seis portas, precisando usar um banquinho para conseguir alcançar a parte de cima do guarda-roupa ainda havia sacolas embalando cobertores e até meu vestido de casamento. Atrás do meu vestido, que lembro muito bem ter sido um tomara que caia rendado e comprido, estava o terno dele. Preto e sem gravata, do jeito que ele queria.
Tirá-lo dali depois de tanto tempo, me trouxe nostalgia e tristeza, dada a situação que estava sendo retirado dali. Com as mãos trêmulas, o tiro do saco e inalo o perfume que havia ali.
Não havia sido lavado quando ele usou pela primeira e última vez, então, seu perfume ainda estava impregnado lá, mesmo 7 anos depois. Ainda estava lá e por causa disso, chorei. Chorei odiando mais uma vez a parte em que ele teve que morrer no nosso “felizes para sempre”. Ele não tinha o direito algum de ter me deixado, me abandonado, e ido para qualquer parte do universo sem mim.
Eu o amava e agora estava sem a minha metade e, não sabia exatamente quem deveria me culpar. Se deveria me culpar.
Aperto a roupa contra meu peito com força, abraçando-a. Imaginando que ali era Guilherme e que estava dando o último abraço que não havia conseguido dar antes.
Não sabia como me despedir, se é que conseguiria. Muito menos dizer Adeus, não estava pronta nem naquele momento e não achava que estaria depois.
Fungando, coloco a roupa de volta no saco e decido voltar para a sala e a entregar para Dona Guilherme, que me esperava pacientemente e que sorriu levemente ao ver o terno que o filho usou no casamento. Seu Paulo também fez o mesmo, dando dois tapinhas no saco, como se estivesse cumprimentando o filho dessa forma.
Sentada no sofá, abraço meu próprio corpo, querendo que pelo menos aquela dor dentro de mim, diminuísse só um pouco e me deixasse respirar.
