Resumo
Dyzi tem um grande problema em mãos: Precisa urgentemente assegurar que a pastelaria e esfiharia Awada, da sua família há gerações, não seja usurpada de uma hora para a outra pelo seu tio, deixando ela, sua mãe e sua irmã sem provimentos agora que seu pai faleceu. Para isso, Dyzi precisa conseguir um marido decente nos próximos 30 dias. Alguém que entenda que ela não quer um homem que se apaixone por ela, mas que a auxilie a conseguir manter os negócios do pai nas mãos dela. A tarefa não é fácil. Ainda mais porque Dyzi é muçulmana e, embora tenha tentado de todas as maneiras a convencer o Sheikh a ajudá-la a encontrar um marido, o grande problema mesmo é que todos os partidos com idade boa para que Dyzi pudesse se casar parece que desapareceram. Mas Dyzi não vai desistir. Afinal, quando achou que suas esperanças já estavam perdidas, eis que Tahsin surge quase como Um arco-íris ao longe. Dyzi fará de tudo para convencê-lo a ajudá-la nos seus planos mirabolantes, pois acredita que da mesma forma que ele não se apaixonará por ela por ter outra mulher em pensamentos, Dyzi tem certeza absoluta que a pastelaria Awada tomará ainda muito da sua vida antes que ela pense em amor. Todavia, quando os sentimentos começam a falar mais alto do que as desculpas que eles ousam dizer para si próprios, quem cederá primeiro?
Com amor, papai.
Havia uma tradição na família Awada que era muito levada a sério: A passagem das receitas milenares da família para a nova geração que completasse 15 anos de vida.
Não importava se fosse homem ou mulher, todos recebiam as receitas secretas, aprendiam como cozinhar os deliciosos pastéis e as esfihas que eram muito vendidas na pastelaria e esfiharia Awada.
Não foi diferente que o meu pai fez. Quando eu completei 15 anos ele me ensinou as primeiras receitas que aprendi com agrado. Ainda lembro com um sorriso no rosto quando juntei os primeiros ingredientes, quando sovei a primeira massa e como meu pai sorria enquanto com o dedo sujo de farinha tocava e sujava todo o meu nariz.
Foi assim que eu fui criando gosto pela culinária. Com uma inspiração como papai, não havia outra coisa que eu quisesse fazer com tanto afinco além de mostrar meu amor e minha paixão através da comida. Era sempre como papai fazia e foi como eu passei a fazer conforme os anos passavam e eu ainda não entrava na faculdade de gastronomia.
― Muito bem, minha flor, essa sua receita está tão boa que não consigo diferenciá-la da minha! Aprendeu perfeitamente! ― Elogiou papai. Sorri feliz.
― Aprendi com o melhor, como poderia ser diferente? ― Papai riu e voltou a sovar a massa como sempre fazia.
Você que está lendo sabe como é difícil encontrar a perfeita harmonia entre os ingredientes? Ou como a paciência é uma arma dos cozinheiros profissionais que buscam a perfeição? Todos esses conhecimentos pude ter por meio de papai.
É preciso a arte do esperar, como dizia papai. A massa precisa crescer. Ele costumava fazer algum tipo de analogia com o amor.
― Um dia você vai encontrar alguém por quem se apaixonará perdidamente. E quando isso acontecer, preciso te dar um conselho: Como na cozinha, você precisará encontrar o tempo certo para fazer as coisas. No amor, também há o momento de espera e o momento de se confessar. Não deixe esse tempo passar se você perceber os primeiros sinais. Como a massa que incha e demonstra estar pronta para ser assada, o amor também tem seus sinais perceptíveis, basta que se esteja disposta a observá-los. ― Dizia papai. Como eu ainda era muito nova e aquele discurso de amor só me deixava ainda mais entediada, eu acaba concordando apenas para que ele mudasse de assunto e eu pudesse aprender alguma coisa a mais com ele.
Quem diria que agora com 25 anos eu estivesse lembrando de tudo isso com lágrimas nos olhos. Se eu soubesse que em dez anos não teria mais papai do meu lado para me contar todas essas histórias e me ensinar mais receitas, eu teria o aproveitado ainda mais.
Agora seria eu que teria que passar as receitas secretas de família para a minha irmã que em dois meses faria quinze anos e também tinha o direito de aprender tudo o que papai gentilmente me ensinou.
Ainda que meu coração ficasse em pedaços ao pensar nisso e lágrimas insistissem em querer escapar dos meus olhos, eu sabia que eu precisava ser forte. Pelo menos por mamãe e pela minha irmã. Eu precisava ser o porto seguro que elas precisavam.
Pelo menos tinha sido o que eu tinha prometido para papai antes de ele morrer.
― Florzinha, me prometa que vai cuidar da mamãe e da Nurzinha quando eu morrer. Você é uma garota forte. Eu criei você para ser tão forte como o seu pai. Me prometa que cuidará delas para que eu morra em paz. ― Se eu também soubesse que aquele seria o meu último dia com o meu pai, talvez tivesse falado mais palavras de amor.
― Pai! Você não vai morrer! É apenas uma cirurgia de coração! O médico disse que há muitas chances de dar certo. ― Mas talvez o meu pai já estivesse premeditando que a morte o chamasse, porque ele não concordava com a paz que eu tentava passar.
― Dyzi, apenas prometa o que o seu velho pai está pedindo. ― E eu sorri abertamente, como sempre fui de fazer genuinamente.
― Eu prometo jurado, juradinho, papai! Vou cuidar da mamãe e da Nur… Ah, e também da pastelaria enquanto o senhor estiver se recuperando. Ninguém percebe que sou eu que faço a massa agora e não o senhor, mas alguns velhos clientes sentem falta de bater papo com o senhor! Então o senhor trate de se recuperar rapidinho quando sair da cirurgia, viu? ― Papai acabou rindo, como ele sempre fazia, da minha espontaneidade.
Meu pai sempre gostou da minha euforia, espontaneidade e a forma como eu falava as coisas sem me preocupar com o que as pessoas iam achar. Em parte, ele tinha sido responsável por isso, pois tinha me criado dessa forma. Contudo, a outra parte que eu aprendi e mantive por conta própria aliado a minha personalidade era algo que por vezes ele dizia que sentia orgulho.
Nas palavras dele isso me fazia uma mulher forte e que não seria passada a perna por ninguém. Uma mulher que podia realmente se dizer, com todas as letras, parte da família Awada.
― Tudo bem, tudo bem. E como está a faculdade, minha flor? ― Ele perguntou mudando de assunto.
― Está ótimo! Faltam dois anos para me formar apenas! Estou tão feliz! Esse ano também, daqui dois meses, a Nur faz quinze né!? Vou ajudá-lo a ensiná-la as nossas tão famosas receitas! ― Papai sorriu.
― Ensine também as novas que você aperfeiçoou. Gostei muito daqueles pastéis vegetarianos que você faz! Estão saindo bem, não é mesmo? ― Concordei balançando a cabeça várias vezes.
Eu não podia negar. Eu me dava muito bem com papai. Talvez eu fosse a pessoa que estivesse mais sentindo a falta dele. Mas precisava fingir que estava tudo bem. Eu tinha prometido que ia cuidar da minha família, da nossa família, não é mesmo? Eram promessas fortes.
― Sua mãe está cuidando da pastelaria? ― Assenti.
― Ela logo vem me render para te trazer roupas novas também. ― Papai concordou.
― Amo você florzinha. ― Sorri novamente.
― Eu também te amo de montããão papa! ― Ele sorriu, dessa vez até os olhos se repuxando num sorriso genuíno.
Mamãe chegou para me render e pouco tempo depois papai acabou entrando na cirurgia. Infelizmente, o que era para ter sido uma cirurgia de sucesso acabou apresentando diversos tipos de complicações e papai faleceu na mesa de cirurgia.
A sensação de ter parte do coração arrancado era similar. Quase como um soco no estômago que me tirava completamente o ar. Ainda sentia os olhos quererem tomar-se de lágrimas quando a lembrança vinha.
Isso porque já haviam passado 5 meses desde que papai morrera.
Tinha começado a ensinar Nur algumas das receitas de família nesse tempo e praticamente assumi quase que integralmente a cozinha da pastelaria. Não me arrependia, pois isso era bom para minha cabeça. Pensar menos na morte de papai me fazia não viver o luto e eu até que preferia.
Eu fazia faculdade de manhã, chegava ao meio dia da faculdade e mamãe já estava fritando alguns pastéis que eu sempre deixava a massa pronta apenas para fritar a noite. O resto da minha tarde era fazendo massas, ajudando nas vendas, ensinando Nur, arrumando a pastelaria e tarde da noite fazendo alguns deveres da faculdade e testando novas receitas para aprimorar o negócio da família.
Eu podia dizer que mesmo cansada, era realmente feliz. A pastelaria tomava quase que todo o meu tempo de vida, mas eu era feliz, pois fazia algo que papai tinha me ensinado e, de alguma forma, isso me fazia me sentir mais conectada com ele.
― Ainda bem que o seu tio marcou a reunião para segunda quando não abrimos a pastelaria. Você já está pronta, Dyzi? ― Perguntou mamãe. Suspirei.
― Estou sim. Nur? ― Minha irmã concordou com a cabeça.
Era estranho que o tio, irmão de meu pai, estivesse nos convocando para uma reunião frente a advogados depois de cinco meses desde a morte de papai. Já fazia muito tempo que ele havia morrido, não fazia ideia do porquê o tio queria nos ver.
Eu não sabia exatamente como tinha sido a história. Nem mamãe, tampouco papai queriam que nos metêssemos em assuntos de pessoas mais velhas, mas tinha sido uma briga feia, pois o meu tio simplesmente parou de frequentar as festas de família e praticamente evaporou no nosso mapa.
A briga também não foi pela pastelaria, pois o tio nunca foi ligado nela. Quando ele completou vinte anos, não querendo ter que doar a vida dele para o que ele considerava um negócio de família quase falido, ele vendeu as ações que cabiam a ele da pastelaria Awada que meu avô havia criado. Papai se meteu em dívidas, mas comprou a parte do tio. E foi uma sábia decisão, já que ele gostava bastante de cozinhar como eu.
Depois disso, a pastelaria Awada cresceu bastante e tínhamos um grande espaço num centro comercial no centro da cidade, o que nos fez conseguir pagar todas as dívidas com o tio e agora pudéssemos nos manter sem problemas.
Por isso, não conseguia ver que motivo o tio Samir tinha para nos chamar para conversar, já que não devíamos mais uma gota de dinheiro para ele. Além disso, como ele havia meio que se auto-expulsado da família – por algum motivo que eu ainda planejava descobrir ou fazer minha mãe desembuchar antes que eu tivesse que perguntar para a vovó – não havia nem mesmo laços direito que nos ligassem ao ponto de tio Samir querer falar conosco.
Para começo de conversa, ele sequer apareceu no enterro de papai, tampouco transmitiu os sentimentos dele com a morte de meu pai. Ou seja, ele nem sequer gostava do meu pai ao ponto de sentir falta dele como eu sentia.
― Eu realmente não sei porque o tio de vocês quer nos encontrar, mas vamos ver o que é. Não façam nada precipitado. Vamos tomar decisões juntas, seja lá o que for. Mas acho que seu pai não tem mais nenhuma dívida com o tio de vocês. ― Disse mamãe terminando de ajeitar o cabelo para dentro do hijab.
Ela não nos obrigava a usar o hijab. Papai sempre foi muito liberal para isso. Como cozinheira, eu suava demais na cozinha para usar hijab, mas sempre fazia uso na mesquita e as vezes também quando estava em alguma reunião de família ou casamento. Minha irmã, contudo, já tinha feito a cerimônia e usava como mamãe. Nur estava com um hijab vinho e mamãe com um hijab preto, porque a grande verdade é que mamãe ainda não havia superado o luto pela morte de papai, a quem ela amou verdadeiramente com todo o coração até o fim da vida dele.
Eu pensava que o amor verdadeiro tinha que ser igual ao que meu pai e minha mãe tinham. E, talvez por isso, eu achasse que isso requeresse alguns pontos antes para que houvesse o amor perfeito. Não havia encontrado pelo menos outro casal que esbanjasse tanto amor como eles. Mas esses pontos para se viver o amor perfeito ficam para depois.
Como não tínhamos carro, pegamos um táxi até o ponto de encontro que o tio havia marcado. A verdade é que estávamos apreensivas. Tentei dar apoio a mamãe e a Nur apertando as mãos delas como sinal de confiança. Eu estava ali. Poderia ser o porto seguro que elas precisavam. Estava disposta a sempre ser.
― Chegamos. ― Disse mamãe.
Entramos no prédio comercial e apertamos no elevador no décimo primeiro andar. Como esperado, tio Samir nos esperava sentado confortavelmente numa poltrona ao lado de um advogado.
A última vez que eu havia visto o tio Samir já fazia tanto tempo que muita coisa dos traços dele já haviam se apagado da minha memória. Como aquele sorriso de canto dos lábios, ou o nariz que se assemelhava a um tucano. Ele tinha uma barba longa no rosto e os cabelos ondulados desgrenhados. Nada disso combinava com o terno que ele usava. Parecia um estranho fora do ninho.
Nos sentamos no sofá a frente de três lugares. Me sentei no meio com mamãe e Nur de cada lado. A noite já havia avançado na grande São Paulo e o barulho de trânsito intenso também era ouvido ali em meio as janelas abertas daquela sala monocromática.
Tudo naquela sala estava em tons de preto e branco. Era tudo ou nada. Não havia meio termo, não havia um cinza para destoar. Eu só conseguia pensar em como isso era uma mensagem sutil, embora bastante clara, de como seriam as negociações de seja lá o que fosse ali para frente.
― Boa noite, Senhora Awada, senhoritas. ― Disse o advogado chamando a atenção para ele. Voltei minha atenção para o senhor calvo que presidiria aquela reunião. Ele usava uns óculos fundos e parecia enigmático demais para o meu melhor olhar julgador incrível.
― Boa noite. ― Respondemos em uníssono.
― Você cresceu, sobrinha. Quando te vi a última vez você tinha o que? Dezenove anos? ― Sim, ele estava certo e, por isso, assenti com a cabeça ainda receosa de onde Tio Samir queria chegar. Ele continuou:
― Talvez por isso sua mãe não deve nem ter te contado porque eu e seu pai brigamos, não é mesmo Ada? ― Perguntou tio Samir para mamãe. Percebi que ela perdeu a cor do rosto e isso me assustou. Estava ali uma informação que eu não sabia, mas que tinha a impressão de que poderia mudar todo o rumo das nossas histórias.
Eu não gostava dessa sensação.
― Não coloque as meninas nessa história. Você não tem esse direito. ― Tio Samir se levantou irado como se o que minha mãe tivesse acabado de dizer fosse um insulto ainda maior do que ele poderia tolerar.
― Você também não tinha o direito de escolher qual homem da família Awada você escolheria como esposo! ― Ele bradou ríspido. De repente, eu e Nur estávamos quase como se vendo um filme bem a nossa frente se desenrolando. ― Era para ser o filho mais velho! Eu tinha esse direito! ― Disse tio Samir. Minha mãe negou com a cabeça.
Era ruim que o tio trouxesse essas lembranças, porque eu sabia que qualquer lembrança por mínima que fosse, mas que fizesse menção de lembrar de papai, já causava uma dor imensa em mamãe que vinha até mesmo trabalhando bastante nos últimos meses para esquecer a ausência dolorida dele.
Por isso, tio Samir lembrar de papai no passado era ruim, muito ruim.
― A única regra é que eu deveria me casar com um filho da família Awada! O meu pai nunca estipulou quem seria! Eu me apaixonei por Rafi, você não tinha que tentar roubar minha inocência por isso! ― O choque para mim e Nur foi imenso.
Aquele não era o encontro que eu estava esperando. Descobrir o passado que envolvia papai, mamãe e tio Samir? Não mesmo. Ainda mais de proporções tão terríveis como uma tentativa de estupro, ao que parecia, pelo relato de mamãe. Eu precisava era tentar descobrir o que nos mantinha ainda ali na frente do tio Samir e nos mandar embora. Antes que as lembranças dolorosas machucassem ainda mais mamãe e antes que tio Samir continuasse com aquela ideia estúpida de que minha mãe tinha que ter sido dele.
― Tio Samir, porque o senhor nos chamou aqui? ― Perguntei mudando o foco da conversa, já que aquele advogado idiota não parecia nem um pouco a fim de me ajudar a manter o controle da conversa ali.
― Ainda bem que você me lembrou do que vim fazer aqui, minha sobrinha querida. ― Tio Samir abriu um sorriso estranho na minha direção. Olhei para Nur e ela entendeu na hora que eu tinha sentido um asco nervoso com tio Samir sorrindo daquela maneira.
Ao menos eu e Nur tínhamos isso de vantagem: uma sincronia tão grande de irmãs que era imbatível, melhor do que muitas gêmeas poderiam dizer que tinham. Nur era dez anos e pouquinho mais nova do que eu, mas, ainda assim, bastava um olhar e conseguíamos nos comunicar.
― É tio, fala logo. ― Disse Nur vindo ao meu socorro.
Mamãe se sentou novamente no sofá tentando controlar os nervos sobressaltados que tio Samir tinha feito o favor de despertar em mamãe. Eu teria ficado como ela se tivesse que passar por algo assim na idade que ela se casou. Mamãe ainda era nova e muito bonita. Algo que Nur tinha puxado de mamãe, muito embora eu nem tanto.
― Eu vim lembrá-la da tradição da família Awada. ― Disse tio Samir. Franzi o cenho estranhando aquela conversa.
― Sobre a passagem das receitas secretas de pai para filhos? Não se preocupe, tio. Deu tempo de papai passá-las para mim. Eu já estou ensinando Nur também conforme sobra algum tempo na cozinha. ― Nur assentiu concordando comigo, mas tio Samir sorriu misteriosamente e eu percebi que tinha alguma coisa naquela história que eu não sabia e que papai e mamãe tinham feito o favor de esquecerem de me contar.
― Estou falando da outra tradição, sobrinha querida. Uma que temos de fazer testamentos muito específicos quando completamos dezoito anos. ― Eu não sabia do que tio Samir estava falando. Não precisei fazer nenhum tipo de testamento quando completei dezoito anos e, por isso, olhei para mamãe para ver se ela tinha noção do que tio Samir estava falando.
Mamãe estava pálida, os olhos arregalados e paralisada. Era quase como se alguém tivesse lhe dado um susto e ela tivesse paralisado de medo. Quando algumas palavras começaram a sair da sua boca, ela ainda parecia imóvel de pavor.
― Isso já faz tempo… Rafi não rasgou esse testamento, porque achou que ele tinha se perdido. Não tem como essa tradição valer. Rafi não compactuaria com isso se soubesse que alguém acharia o testamento. Se nós tivéssemos lembrado desse testamento certamente rasgaríamos, pois ele não tem que ter nem um valor, pois não concordamos com essas regras absurdas. ― Tio Samir abriu um sorriso com dentes e tudo, o que era estranho de ver.
Eu não fazia ideia do que mamãe falava, mas conforme ela e tio Samir discutiam, mais eu tinha certeza de que a situação desse testamento não era algo bom. O que só colaborava para que eu tivesse ainda mais ansiedade em descobrir o que diabos havia nesse testamento que mamãe preferia que nunca existisse.
― Eu realmente demorei para encontrar o testamento. Mamãe não sabia onde papai tinha colocado. E, como ele já morreu, não dava para eu perguntá-lo, não é mesmo cunhada? ― Tio Samir riu da própria piada infame. ― Mas nada que uma procurada não resolva. Fico feliz em ter encontrado. ― Ele balançou a cabeça num gesto afirmativo e o advogado entendeu que essa era a deixa dele para tirar uma folha de dentro da pasta que ele carregava consigo e colocar na frente de nós três.
Fiquei olhando a folha com a assinatura de papai e a data que era há mais de 30 anos. Não sabia nem como um testamento daquele continuava valendo depois de tanto tempo, mas não tive muito tempo para perguntar. Tio Samir logo me incentivou a saber do que se tratava.
― Pegue, Dyzi. Leia o que está escrito. ― Engoli em seco e fiz como ele pedira. Peguei a folha que estava em cima da mesinha de centro que nos separava e trouxe para mais perto para ler o seu conteúdo. Nur se esgueirou ao meu lado para ler o que tinha ali, muito embora mamãe virasse o rosto como se não quisesse ter o mínimo de contato com algo que, pelo visto, ela não concordava de jeito nenhum.
― Leia em voz alta, por favor, Dyzi. Se não meu advogado que terá que fazê-lo. ― Engoli em seco. Já tinha passado o olho e lido rápido antes que tio Samir percebesse, mas era doloroso ter que ler aquilo em voz alta e aceitar que aquilo era real, mais real do que o meu coração queria aceitar que fosse.
― Eu, Rafi Mohammed Awada, de número de identidade… ― Comecei a ler os dados do meu pai em voz alta com a garganta com o peso do que parecia uma bolinha de tênis no fim dela. ― concordo com a tradição da família de que caso eu tenha filhos, independente se forem homens ou mulheres, caso estejam acima dos 18 anos, como eu, deverão estar casados ou serem, pelo menos, viúvos, para que a empresa pastelaria e esfiharia Awada, a parte que me cabe de ação, seja passada para eles, caso eu tenha morrido nessa ocasião. Caso essa situação assim não esteja, contudo, com algum filho ou filha em noivado, eles terão 6 meses após a minha morte para firmar o casamento e terem, desse modo, a pastelaria herdada.
Minha cabeça parecia prestes a entrar num redemoinho sem fim. Eu entendia o porquê minha mãe tinha certeza de que se papai lembrasse desse testamento ele teria rasgado e jogado fora. Papai não compactuava com casamentos forçados, tampouco casamentos sem amor. Por vezes ele comparou amor a massas e eu sabia que ele realmente acreditava que amores verdadeiros como ele e mamãe tiveram poderiam e eram possíveis. Mas, para isso, não se deveria apressar o que cabia apenas a Deus. Eu conhecia papai. Eu sabia que ele era assim. Ele não me forçaria a casar para manter a empresa na nossa família. Uma empresa pela qual eu daria a minha vida, pois sim, eu amava cozinhar e eu amava fazer o que papai tinha me ensinado fazer.
E talvez por isso, segurando com uma força sobre-humana as lágrimas insistentes, continuei lendo as palavras seguintes que eram ainda mais absurdas para mim:
― Caso essas cláusulas não sejam seguidas por meus descendentes ou se provado que o casamento de meus descendentes foi por conveniência e não por amor, as ações que me cabem serão dadas para o meu parente mais próximo vivo, qual sejam: meu irmão Samir, meu pai Mohammed ou minha mãe Masha. ― E ali estava o motivo pelo qual tio Samir sorria tão abominável.
Ele queria a nossa pastelaria agora que ela estava tão bem e decolava. Porque quando ele vendeu as ações para papai, ela não parecia ser lá grandes coisas e com tantos lucros. Ele, na verdade, achou que estava ganhando em cima do meu pai pelo preço exorbitante que vendeu para papai, o qual aceitou. Agora que ele via a cagada que tinha feito, ele queria a pastelaria Awada de volta para ele.
Eu odiava tio Samir mais do que tudo agora.
― Eu vou dar uma opção para vocês, já que imagino que Dyzi não seja casada nem nada do tipo. ― Tio Samir foi falando enquanto meu coração palpitava. Eu precisava encontrar uma solução o mais rápido possível. Por mais sem soluções que eu estivesse naquelas atuais circunstâncias. ― Você, Ada. ― Ele disse apontando para minha mãe que ainda estava pálida como papel. ― Você se casa comigo e eu prometo cuidar muito bem de você e das suas filhas até o momento que elas se casarem. Quando eu morrer, então, as ações da empresa passarão todas para elas. Isso não é uma maravilha?
E é exatamente aqui que meus problemas começaram.