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Uma semana…
Tenho fome, muita fome e sede, mas não quero pedir nada para ele. Me sinto fraco e o calor no galpão é quase insuportável. Quero a minha mãe, quero o meu pai e tenho vontade de chorar. Porque eles não me matam logo?
— Como ele está hoje? — Cicatriz pergunta adentrando o local sujo e semi escuro.
— Ainda não cedeu, Cicatriz. O garoto é valente.
— Ele é um idiota, isso sim! Não vai me vencer e sabe disso.
— O que quer que eu faça?
— Desamarre-o, dê comida e água, depois, leve-o para o topo. — ordenou e saiu em seguida. O homem mal-encarado me olhou com um sorriso maldoso e debochado.
Não sei o que significa ir para o topo, mas sinto que nada de bom vem por aí. Ele põe um pedaço de pão e um copo de leite na minha frente e a visão chega a me dar água na boca. Como tudo feito um animal faminto, sem ao menos lavar as minhas mãos e sem nenhuma educação, como haviam me ensinaram, a final, já faz dois dias que não como nada. E quando termino, sou forçado a sair do galpão. A luz do dia me causa uma forte dor de cabeça e força a fechar os olhos.
O topo é um lugar horrendo, tem rastros de sangue por todos os lados e fede muito. Sinto medo de estar aqui, muito medo. Sou deixado no centro do lugar e Cicatriz me olha calado por um tempo, depois, caminha em minha direção e sem eu esperar, ele me acerta um forte soco no meu rosto. O impacto me leva ao chão, porém, eu me forço a levantar, mas, estou atordoado, permaneço lá caído e começo a chorar.
Porra, eu sou só uma criança, porque ele está fazendo isso comigo?
— Levanta! — ordena. Eu não quero fazer isso. — LEVANTA, PORRA!!! — Ele grita. Assustado, faço o que manda e levo outro soco, esse ainda mais forte que o primeiro, e imediatamente sinto o gosto do sangue em minha boca, e mais uma vez, estou no chão. Furioso, ele ergue o meu corpo, puxando-me pelos meus cabelos e me faz encará-lo. — Escute bem, pirralho do caralho. Ou você faz o que te mando, ou levará uma dieta dessa todos os dias, até aprender a me obedecer! Então, o que vai ser? — Não consegui respondê-lo, pois os soluços não me permitiam. — Fala, Marrento! — grita brutalmente e perto demais do meu rosto.
Eu não sou Marrento. Penso cheio de raiva.
— NÃO! — grito de volta e uma sucessão de socos e chutes começaram.
(…)
Abro os meus olhos e percebo o quão estou suado e ofegante. Caralho, quando ele vai me deixar em paz?
Saio da cama, vou até uma janela do meu quarto e olho o lado de fora por longos minutos, até me acalmar. Respiro fundo e resolvo sair um pouco. A casa está silenciosa e escura. Já é quase uma da madrugada e todos estão dormindo a essa hora. E quando alcanço o último degrau da escada, percebo a luz da cozinha acesa. O que Anita faz acordada a uma hora dessas? Me pergunto e ando a passos largos até o cômodo, porém, me deparo com ela… Fabi está interdita, fazendo algo no balcão. Ela está de costas para mim e eu fico indeciso se a faço saber da minha presença, ou se a deixo sozinha ali. Com um suspiro lento e silencioso resolvo entrar no cômodo e uma vez.
— Acordada a essa hora? — pergunto. Ela se assusta e no impulso, segura uma faca de mesa e em sua defesa. A mão trêmula aponta o objeto para mim. A garota ofega de repente e seus olhos não escondem o seu medo. Cauteloso, ergo as minhas mãos e não me mexo do lugar, pois, quero que saiba que não vou machucá-la.
— Calma, menina! — peço com um tom baixo. — Desculpe! Eu não quis assustá-la — Continuo falando baixo, enquanto avalio o seu rosto. Ela me olha por um tempo e aos poucos vai baixando a faca, e por fim, respira aliviada.
O que porra ela estava pensando que eu fosse, um marginal?
Será que a minha cara diz tanto assim quem eu fui?
— O que está fazendo? — insisto na pergunta, dessa vez olhando para os materiais sobre o balcão. Ela segue o meu olhar.
— Sanduíches — responde tão baixo que quase não ouvi.
— Pode… fazer um desses para mim? — sibilo, ainda analisando a garota. Ela assente sutilmente.
— De que o senhor quer? — indaga sugestiva. Solto o ar que estava preso em meus pulmões e me aproximo do balcão.
— De qualquer coisa, só faça — falo com desdém.
Ela volta para o balcão e começa o seu trabalho de montar os sanduíches. Sento-me no banco alto, de frente para ela, para observá-la. Fabi só falta entrar nas fatias, e não tem coragem de me encarar, nem de conversar comigo.
— Desculpe por ter sido tão bruto com você! — peço apenas para iniciar uma conversa. Ela ergue sua cabeça e os olhos escuros me prendem imediatamente. — No meu quarto — esclareço.
— Está tudo bem! — Ela diz voltando a baixar a cabeça.
— Não, não tá tudo bem. Vamos deixar as coisas bem claras aqui, Fabiana. — Ela volta a me olhar. — Não entre no meu quarto sem a minha permissão, não mexa nas minhas coisas. Quer ser a minha assistente pessoal? Ótimo! Mas, só faça o que lhe for ordenado. — Ela não fala nada, apenas me olha atenta. Até parece que foi programada para isso: atender e não contestar. Como um robô. — Entendeu, Fabi? — indago, porque não quero que restem dúvidas.
— Entendi, senhor Alex.
Respiro fundo. Esse SENHOR ainda vai me levar para o inferno. Penso.
— Ótimo! — Ela termina o seu trabalho de montar os sanduíches, e põe um deles em um prato, o colocando a minha frente. Eu o pego e mordo em seguida, sentindo o delicioso sabor da mostarda misturada a salada e ao frango grelhado.
— Hum, isso está maravilhoso! — rosno, soltando um gemido apreciativo e pela primeira vez, vejo um vislumbre de um sorriso brincar no canto de sua boca. Pego-me curioso. Como será o seu sorriso? Quando termino de comer, pego um papel toalha e limpo as minhas mãos, e o canto da minha boca. Levanto-me do banco, e antes de sair encaro o bicho do mato que está me fitando. — Está contratada, Fabi. Você começa amanhã no primeiro horário. Quero a minha agenda social antes de sair para o escritório. Terá um salário, mais plano de saúde, casa e comida — informo, usando o meu melhor tom profissional. Seus olhos parecem brilhar em expectativas. Ela assente, e apesar de não me dar o sorriso que eu esperava, estou satisfeito de ver esse brilho em seus olhos agora. Saio da cozinha com um sorriso satisfeito.
Porquê? Definitivamente eu não sei, mas o maldito sorriso me acompanhou até a cama, até que eu voltasse a adormir.
***
Os pulmões queimam, protestam, pedindo ar, mas eu não paro. Estou correndo a quase uma hora e meia, e não consigo parar. Se paro, a minha cabeça começa a pensar e pensar. Tive mais uma das piores noites da minha vida. Lembranças de uma infância abusiva nas mãos do meu algoz. Lembrar das surras violentas, me mata por dentro a cada dia. Socos e pontapés eram o seu melhor jeito de me fazer aceitar os seus termos. Sinto uma forte ânsia de vômito, quando me lembro do meu segundo assassinato oficial. Uma menina de apenas quinze anos. Ela devia muito dinheiro e eu tive que executá-la por atrasar de pagamento. Naquele dia cheguei a sentir a sombra negra penetrar as minhas veias e contaminar a minha alma. Eu não tinha mais salvação e já não sentia mais medo. Dentro de mim só conseguia sentir raiva, muita raiva e logo vieram as outras execuções. Me tornei o melhor e o mais frio. Um homem calculista, sem emoções e sem contestações, e no final de cada trabalho bem feito, ouvia sempre a mesma frase de agradecimento da sua boca:
"Seu pai jamais o teria transformado no homem que eu te transformei."