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1

ANGELINA

O dia está ótimo hoje. Não há nada para atrapalhar a brincadeira dos meus amigos e das outras crianças também, pois o sol está muito alto e quente no céu, o que permite que meus colegas e eu, possamos correr feito um furacão, todos loucos e desesperados para ganhar a brincadeira de esconde e esconde que estamos disputando nesse momento. Minha testa está brilhando de suor, as várias gotinhas salgadas molham minha pele com vontade, rolam pelas laterais do meu rosto pequeno e pingam abundantes também nas minhas costas de modo que marcam a camisa fina e de tecido puído, quase ao ponto de rasgar de tão desgastada que está, do meu uniforme de escola.

Mas eu não me importo nenhum um pouco por ela ser velha e ruim, foi o que papai e mamãe puderam me dar há uns quatro anos atrás e isso me basta. Eles não tiveram condições de me dar algo melhor ou novo para vestir no ano que veio depois, pois papai estava sempre desempregado, ralando para conseguir algum bico pequeno e em qualquer lugar que o aceitasse, mesmo de forma informal e perigosa, é o que eu tinha ouvido os adultos conversando escondidos uma vez durante a madrugada.

Sei que não foi certo escutar o que eles diziam escondida como um camaleão atrás da porta, mas alguma coisa tinha chamado a minha atenção no tom de voz que minha mãe falava, alto, cheio de medo e bronca, enquanto eles discutiam por mais uma vez, sobre os riscos que ele estava correndo em fazer aquele tipo de serviço sujo novamente.

Mas que tipo de trabalho era aquele para minha mãe brigar tanto com o meu pai e dizer para ele não aceitar de jeito nenhum? O que ela estava chamando de sujo? Será que tinha alguma coisa a ver com catar lixo? Ou talvez fosse sobre mexer com esgoto? Mas se fosse esse tipo de serviço de que falavam, isso não seria uma coisa boa, pois assim pelo menos ele estaria ganhando algum dinheiro para colocar dentro de casa? O sujo e fedor do corpo ele poderia limpar depois se tomasse um bom e demorado banho, não é mesmo? Tudo ficaria limpinho e cheiroso depois de usar muita água e sabão de barra. É o que penso comigo mesma, não entendendo o motivo da bronca dela.

E mesmo que eu seja nova e pequena perto deles, que são dois adultos que precisam cuidar de uma criança como eu, ainda assim era algo muito claro para mim que aquela era uma oportunidade de emprego a qual papai não poderia de se dar o luxo de rejeitar, afinal de contas, mamãe também não tinha nenhum emprego que lhe gerasse renda para ajudar nas despesas dentro de casa.

Algumas semanas quando estava com um pouco de sorte, ela até conseguia arrumar umas faxinas para fazer nas casas das madames fora do morro, mas que não dava grana o suficiente, pois ela dizia que as mulheres que a contratavam eram muito mão de vaca, além de sempre lhe maltratarem por ser uma mulher pobre e moradora do morro Paraíso, e por essa mesma razão, a chamavam de favelada e lhe pagavam uma mixaria pelo serviço prestado, como se estivessem lhe fazendo um grande favor com isso.

Então uma série de xingamentos, discussões e garrafas quebradas se sucedia em meio as várias brigas entre os meus pais depois que acontecia essas coisas com ela. Eu fingia não ouvir nada no lado de dentro do meu quarto, de olhos fechados, sentada no chão de cimento mal acabado, e com as costas apoiadas na porta fechada, enquanto cantava alguma musiquinha que tinha aprendido mais cedo na escola, o único lugar em que eu ficava livre de escutar as brigas que aconteciam todos os dias entre os meus pais. E isso acontecia constantemente, fosse por causa de dinheiro, ou por falta de comida, ou quando a luz ou a água eram cortados da nossa casa, e a gente permanecia nessas situações por muito tempo, até que fosse possível pagar alguma das contas mais atrasadas.

Porém, como as paredes de madeira barata são muito finas, era praticamente impossível não ouvir os gritos, os barulhos de objetos sendo lançados contra as paredes, vidros se quebrando, e panelas sendo jogadas contra o chão. Entretanto, ainda assim eu fingia muito bem que não via ou ouvia nada daquilo. Eu apenas tentava isolar minha mente de todo o caos a minha volta e pensar em outra coisa que não fosse a briga ocorrendo do outro lado da porta.

Mas era muito difícil viver assim todos os dias... Minha cabeça sempre doía por causa das vozes altas, e às vezes.... as vezes eu chorava bem baixinho, quase em silêncio, somente com as diversas lágrimas molhando as minhas bochechas, por morrer de medo que eles pudessem me escutar e me pegassem com a boca na botija chorando feito uma criancinha mimada, que era a forma como ambos me chamavam se me visse chorando em algum momento, e sentia meu peito doer profundamente por me achar tão sozinha, acuada e sem nenhum lugar para onde correr e me esconder até que as discussões tivessem fim.

O único local que me fazia sentir melhor, mais segura e com vários amigos para brincar era o lugar em que eu estudava há muitos anos, desde pequenininha e que nunca havia mudado até hoje. A melhor escola pública do morro Paraíso, e a que ficava mais perto da minha casa, de modo que eu podia ir e voltar sozinha, durante o curto caminho de uns cinco quilômetros de distância mais ou menos, mesmo que eu tivesse só doze anos de idade. Eu tinha começado a andar sozinha para não perder mais aulas do que já vinha perdendo por causa dos atrasos de mamãe, a partir dos oito anos, e desde então, nenhum dos meus pais nunca mais pisaram os pés em minha escola novamente.

Os dois diziam que eu já era uma garota crescida e independente que devia fazer as coisas por mim mesma, sem precisar de uma babá que me carregasse de um lado para o outro feito um bebê. Dessa forma, se eu quisesse ver meus amigos e continuar estudando, eu teria que me virar para ir sozinha. E é o que eu fiz.

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