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Introdução

No grande salão de jantar, em uma mesa extensa no centro, já haviam algumas crianças comendo. Em um balcão, transversal à mesa, na largura do salão, um jovem assava bistecas em uma churrasqueira elétrica.

Ao lado, pronto para ser servido, um prato continha uma bisteca muito bem passada, com as beiradas pretas de queimado. A próxima garotinha da fila, parou em frente ao jovem e sorriu, recebendo um movimento rápido de cabeça, indicando que pegasse o prato separado.

Todos olhavam para ela, mas não falaram nada ao vê-la feliz ao encaminhar-se para a mesa, como se aquela carne queimada fosse a iguaria mais deliciosa do mundo.

Quando todas as crianças estavam servidas, uma anciã entrou no salão para cumprimentá-las e parou ao lado da menina, que comia a carne dura e queimada, com dificuldade.

— Pare, Mia. Não coma esta carne — Olhou para o jovem, fuzilando-o com o olhar. — Aqui ninguém é especial, todos devem receber a mesma porção. Pegue seu prato e leve de volta, o mestre Natanael te dará outro.

Acompanhou a menina com os olhos, vigiando as ações do rapaz, para que ele não maltratasse mais a menina. Ela voltou, não tão alegre como da primeira vez, mas entendeu que não podia ser tratada melhor que os outros.

A anciã saiu, levando o mestre consigo e um cuidador ficou com as crianças. Josué, um dos alunos mais velhos, apesar de só ter nove anos, aproveitou que estava ao lado de Mia, para falar-lhe.

— Você é uma bobona mesmo, será que não percebe o que ele faz com você? — Questionou, sério.

— Ele diz que sou especial e mereço ter tudo diferente. — Explicou a menina sorridente.

— Quem cortou seu cabelo, Mia? — Perguntou ele, olhando aquele monte de fios desencontrados, tortos e arrepiados, que eram lindos, antes de serem destruídos.

— Foi o mestre, ele disse que estou linda. — Respondeu a menininha.

— Linda? Olhe para o cabelo de todos, você é a única que está — fez uma cara de desagrado — desse jeito, horrível. E esta roupa, deve ter sido ele que escolheu também, não é? — Questionou Josué.

— Sim, foi — respondeu Mia, com a boca cheia, segurando a carne.

— Pois olhe os outros, suas roupas são novas, limpas e cheirosas e a sua é velha, rota, encardida e cheirando a sabão em barra. Não acredito que você gosta disso? — Informou Josué.

— Ele disse que vocês tudo, tem inveja de mim e que falariam isso — continuou comendo.

— E essa carne? Com certeza está melhor que a outra, que estava queimada de propósito, só para você comer uma coisa ruim. Porque você não percebe que ele está te maltratando? Para de achar que ele está te tratando bem e que gosta de você, porque ele não gosta. — Josué já tinha terminado de comer seu almoço, levantou-se e saiu, não queria mais estar perto de Mia.

Mia só tinha seis anos e ainda não entendia a maldade humana e nem a sobrenatural.

**

Oito anos depois.

Apesar de todo o tratamento ruim que Natanael dedicava a Mia, ele não foi substituído, mas também não pegou mais tão pesado como fazia. A anciã Meridien tentava controlar ao máximo a conduta de seu neto, não compreendia o porquê dele tratar aquela menina daquela maneira.

Mas neste dia em especial, ela jamais poderia imaginar que aquele jovem em quem ela nutria tanta esperança de ter um futuro longo e bom, fosse capaz de cometer um ato tão vil e desrespeitoso.

Ela sentiu uma sensação ruim, como se uma névoa escura de maldade, rodasse sua cabeça e saiu de seu escritório para investigar o que poderia ser. Foi até o coordenador do colégio e perguntou se estava tudo bem e onde estavam as crianças.

— Bom dia, anciã Meridien, as crianças estão tendo uma aula especial sobre acasalamento, cada uma foi destinada ao seu mestre para uma aula particular.

— Oh, não… então é isso — saiu andando ligeiro e seguindo a onda de maldade, conforme ia ficando mais forte e adentrou sem pedir ou bater, no quarto de Natanael e o que viu, deixou-a estarrecida, mas já era tarde.

— Onde está ela? — Perguntou para Natanael, sentado recostado na cama, com suas partes íntimas cobertas só com um lençol.

Ele indicou a porta do banheiro com o queixo. A anciã não conseguia crer no que estava vendo. Havia correntes amarradas na cama, que devem ter prendido a menina, assim como um lenço jogado sobre a cama, deve ter sido usado como mordaça.

O cheiro de sexo, sangue e outros odores não nomináveis, enchia o lugar e os resíduos que sujavam o lençol, davam uma ideia do que Natanael havia feito com a menina.

Foi até o banheiro e entrou, também sem pedir ou avisar. Viu a menina quase desfalecida na banheira, onde a água estava avermelhada por seu sangue.

Saiu para pegar uma toalha e perguntou, entristecida:

— Porque você fez isso, meu neto? 

— Agora ela sabe a quem pertence e quem se aproximar dela também vai saber. Nunca mais ela irá querer saber de acasalamento, até que chegue o tempo de eu a tomar.

— Você é um monstro e eu quero que você saia e vá embora dessa instituição, já está na hora de você cumprir o seu destino e não volte mais. Não vou lhe castigar por isso, porque quando esta menina descobrir o que significa tudo que você fez, ela mesma irá atrás de você para se vingar. 

— O que queria que eu me tornasse, vovó? Fui feito para matar, como acessório da própria morte. Só fiz instruí-la a aguentar o sofrimento e a dor, achando que é bom. Se foi errado, o tempo dirá.

Natanael levantou-se sem se preocupar com sua nudez, vestiu-se e saiu, sem despedir-se ou sequer olhar para sua avó.

Mia ouviu tudo do banheiro e finalmente compreendeu o que tanto Josué a alertara e ela não acreditava. Ela não era especial de maneira boa e sim para receber os desmandos cruéis de seu algoz e agora estava marcada para sempre e dificilmente conseguiria acasalar com outro.

A anciã voltou ao banheiro e ajudou-a a se secar. Observou todas as feridas e mordidas que lhe foram infringidas e lágrimas encheram seus olhos. O corpo da menina ainda nem tinha se desenvolvido completamente. Era magrinha e franzina, seus seios eram dois montinhos miúdos e seu rosto, infantil.

— Venha, minha querida, vou te ajudar. — Estendeu a toalha, para que ela saísse da água vermelha de sangue.

Depois de secá-la, vestiu-lhe um robe e levou-a para sua suíte, deitou-a na cama e começou a tratar de suas feridas. Deu-lhe um chá calmante e um comprimido analgésico e deixou-a dormir.

Saiu do quarto e convocou todos os líderes, mestres e guardiões e comunicou o afastamento de Natanael e que a partir daquele dia, ele seria persona non grata, naquela instituição.

Todos ficaram espantados com a ordem inusitada, mas não surpresos. Já não era sem tempo aquela decisão, não aguentavam mais os desmandos daquele torturador de crianças, sem que nada fosse feito para pará-lo.

**

Do lado de fora do casarão, saindo pelo portão, Natanael virou-se para olhar, pela última vez, o lugar onde crescerá. Sua missão naquele lugar estava cumprida e ele esperava que fosse o suficiente para tornar aquela menininha doce, em uma guerreira forte, capaz de resistir a tudo e todos. Precisava que ela fosse forte e resistente, pois dias muito difíceis estavam para chegar.

Se despediu com um sorriso de lado, olhando a imagem da garota olhando pela janela e sumiu, para nunca mais voltar.

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