Capítulo 1 - Érina
“Pa' este baile no hay salida, que corra el tiempo
Pégate y zumba conmigo con movimiento
Pa' este baile no hay salida, que corra el tiempo
Pégate y zumba conmigo con movimiento, con movimiento
Dom Omar”
A Música na rua estava alta, o sol estava de rachar a testa me fazendo suar, e a fome estava de colar o estômago nas costas. Dom estava sendo legal, arrumou marmitas para o primeiro dia e falava espanhol muito bem. Já eu, olhava com cara de bolacha torta toda vez que alguém sorria e enrolava a língua.
Eu vou me acostumar, era o que eu dizia pra mim mesma.
Abri a janela de madeira pesada no apartamento velho, olhei as pinturas coloridas do lado de fora, o varal improvisado e a turma da “correria”. Eu estava em outro país, esperando a poeira baixar e tentando me convencer de que isso ia realmente acontecer, mesmo que eu ainda suspire lembrando do seu rosto cicatrizado a cada segundo de minha vida.
Iron. Era pra gente estar juntos, aqui, recomeçando. Fingindo que estava tudo bem…
— Está tudo bem? — perguntou Dom ao me ver parada, com o olhar distante na janela.
— É uma vista até que bonita. — tentei disfarçar.
— Tem uma grande porcentagem de refugiados por aqui, estão ou podem estar na mesma situação que a nossa.
— Refugiados… — murmurei pensativa — Você já esteve aqui?
— Iron tem, tinha, assuntos preparados para sempre ter um plano B. — ele engoliu em seco esperando minha reação. — Negócios.
Eu não respondi. Não tinha o que responder. O Filho da puta só não tinha um plano “B” pro irmão. Ele não saiu daquele prédio, ele foi anunciado como morto e sua morte “original” virou noticiário na TV. Me lembro com calafrios no peito os carros de Ronn chegando quando tiraram a gente daquele carro. O Mafioso e cafetão de Sore, enquanto John ainda agonizava sobre os cacos do carro, nos salvava daquele dia infernal. Tínhamos que correr, tínhamos que fugir e o deixamos para trás.
Eu fui me abaixando aos poucos na parede, encostei a bunda do chão enquanto Dom fez o mesmo, abrimos o alumínio das marmitas, o cheiro de frango invadiu minhas narinas e eu tentei me concentrar em alguma outra coisa que não fosse Iron. Era impossível, eu sei, eu só não queria bancar a maria chorona pra Dom.
— Eu vou pegar a grana. — contou entre algumas garfadas silenciosas — O processo é complicado, não é tão simple pegar dinheiro sujo assim, mas tem jeito.
— Você vai roubar um banco? — perguntei curiosa e meio desconfiada.
— Não vai ser necessário. — respondeu sorrindo de lado e enchendo a boca, falando na maior falta educação, tranquilamente — Você lembra, não lembra, daquele dia na van? O dia em…
— O dia em que não me mataram no prédio? — interrompi meio grossa — Lembro sim. Lembro do banco e o carregamento com uma pilha de dinheiro. E veja se engole antes de falar.
Ele guardou o sorriso, voltou a se concentrar na comida, esperou que o silêncio ficasse mais calmo e voltou a falar, de boca menos cheia.
— Aquele dinheiro circula em alguns países estratégicos. Eu cuidava dessa parte. Iron pegava os serviços mais pesados, por tanto, os mais caros. Precisamos de grana pra sobreviver, adaptar e vamos bolar um plano “B”.
Eu não falei nada. Não tinha o que falar. Se Iron ao menos estivesse vivo, eu poderia soltar alguns cachorros sobre minha falsa moralidade, já que quando tive oportunidade de ir embora, eu resolvi cantar que estava “apaixonada pelo criminoso”. No caso, Dom, só estava tentando ser legal.
— E como vai ser? — perguntei por fim, deixando o homem mais calmo — Seu ombro ainda dói.
— É um trampo tranquilo, só vou arrumar um pessoal e fazer o procedimento com calma. — contou numa boa.
— Arrumar um pessoal, do tipo fazer um grupo novo de mercenários?
— Com certeza não. — ele voltou a sorrir — Só… Espere. E para de fingir que está tudo bem, eu não sou ottário.
Eu não discuti.
[...]
Quando fiquei sozinha, a primeira coisa que fiz no apartamento pequeno foi deitar no colchão improvisado e olhar para o teto. Eu voltei a chorar. Nem precisava mais mencionar o inchaço dos beiços grandes me fazendo parecer uma boqueteira sem juízo, e os olhos vermelhos cheios de água. Era a visão do inferno, mas era tudo o que eu conseguia ser. Me encolhi, me abracei e coloquei a mão na barriga.
Eu ainda não estava preparada pra fazer um teste, de jeito nenhum. Mal conseguia parar de chorar por causa de um idiota medito a atirador, imagina se eu confirmar que tem uma parte dele dentro de mim. Não, eu não ia fazer isso agora, de jeito nenhum. Ainda estou no começo do meu luto, vou chorar primeiro e descobrir o que vou fazer depois.
Uma hora eu vou fazer isso, vou ter que fazer. Até lá, vou deixar meu rosto inchado de choro, porque nesse momento era tudo o que eu precisava fazer. Chorar.
[...]
Era uma gritaria infernal. A feira era um misto de gritos, línguas que eu não entendia e minha cabeça estava totalmente zonza e perdida. Eu tentava de algum modo me adaptar, já que eu teria de forçar a minha cabeça a aprender o idioma ou estaria ferrada.
— Eu vou levar essas beterrabas aqui. — falei pro homem que me olhou com cara torta — Beterraba. — repeti no meio do barulho.
— Remolacha. — respondeu ele, confuso.
— Não, beterrada. — peguei a pelota vermelha escura, levantei na mão e olhei para ele. — Isso aqui, ó!
— Remolacha! — gritou o homem tomando o negócio da minha mão — Remolacha, chica! Remolacha!
Respirei fundo, odiando aquele homem, a bocceta da remolacha e a chica também.
— Remolacha, “su idiota!” — entrei na onda, também falei alto e apontei o dedo — Põe remolacha na “sacolita” e “calaboquitos”, que eu tenho mais o que fazer!
Viramos dois idiotas, eu insisti em mandar ele calar a boca de saco cheio dos seus gritos, enquanto ele repetia “remolacha” não sei quantas vezes. No final, tirei uma nota da carteira, peguei o troco desconfiada e mostrei a língua. O homem imediatamente voltou a chiar coisas que eu não estava nem aí para entender, e se ele me xingasse, melhor não saber.
Andei mais adiante, resolvi que ia pegar legumes de outro feirante, parei na frente de uma barraquinha de bugigangas, olhei alguns brincos coloridos e encontrei uma moça sorridente dentro dela.
— Viu alguma coisa que gostou? — perguntou no meu idioma, me pegando de surpresa.
Lembrei sobre o que Dom falou deste lugar e sobre alguns "refugiados'', ilegais tentando recomeçar a vida e sem fazer muito barulho. Ela era jovem, talvez mais nova que eu e muito bonita. Seria também uma refugiada?
— Fala a minha língua? — perguntei curiosa.
— Falo sim. — respondeu numa boa — Pelo menos comigo não vai precisar brigar por causa de uma “remolacha”. — eu ri e aquilo nos deixou mais confortável — Seu irmão não está te acompanhando?
Eu abri a boca para dizer que não tenho irmão, mas fiquei desconfiada sobre aquilo ser algum assunto com Dom. Fazia dois dias que ele havia saído, quando mal chegamos. Eu já estava tentando me adaptar ao inferno sozinha. Então, eu não saberia dizer se foi algum assunto dele, ou se a moça estava supondo algo.
— Desculpe. — respondeu a jovem ao meu silêncio — Não tinha tanta intimidade quando os vi, não ouvi ele te chamando por nenhum apelido ou… Supus algo mais familiar. Não que eu tenha me interessado ou algo assim, ou só…
— Tá tudo bem, você supôs certo. Não somos íntimos. — respondi ao ver a moça tão desconcertada, mas tomei cuidado para não revelar mais nada. — Érina. — estendi minha mão, enquanto ela relaxava um pouco mais.
— Briana. Também não sou daqui. — ela relaxou os ombros e então olhou para as peças penduradas — Gostou de alguma coisa?
— Gostei, eu vou levar esses aqui. — apontei para ela um conjunto de argolas metálicas, e ela os pegou para embrulhar.
Eu entreguei a nota, agradeci pelo troco e sai com meu pacote. Senti um certo pesar, notando que não ia ser mole se adaptar sem ter algo para evitar os curiosos. Mal consegui discutir de novo com um feirante e já tinha minha cabeça cheia e quando entrei no apartamento com as sacolas, quase tive a droga de um infarto.
Tinha uma pilha de músculos dentro da cozinha, ele estava olhando a geladeira meio vazia e por ter sido pega de surpresa, supri um grito, mas deixei toda a compra cair no chão esparramando os frutos adiante no piso de madeira. Dom me olhava com a cara de pato choco, fechou a geladeira silenciosamente e colocou a mão no peito como quem sentia alívio.
— Estranhei não te encontrar. — falou, parecendo mesmo aliviado.
Eu me ajoelhei irritada, peguei o saco e comecei a guardar a compra esparramada.
— E estava me procurando na geladeira?
— Ah qual, é. Isso se chama fome. Porque se assustou? — perguntou se abaixando e disposto a me ajudar.
— Porque quando saí deixei o apartamento sozinho. Eu não sabia que você tinha as chaves. E faz dois dias. Seu serviço rápido, deu certo?
Ele ficou em silêncio, pegou as sacolas e as colocou na mesa. Comecei a esvaziar e separar as coisas, ele viu um refrigerante em lata abriu e começou a bebericar. O silêncio era estranho, mas eu decidi esperar.
Nós chegamos, ele me mostrou um lugar, me apresentou um processo e saiu. O que íamos fazer agora, trabalhos ilegais?
Dom vestia um jeans, botas coturnos, colar fino e camisa colada. Não parecia um mercenário em ação, apenas um homem saindo casualmente. Eu o vi caminhar em direção ao banheiro tranquilamente, mas ainda fugindo de algo. Ou ele estava se preparando para me contar algo, ou estava se preparando para me esconder algo.
Olhei ao redor, procurei por malas de dinheiro e não vi nada. Ouvi a descarga ser ativada e franzi o cenho quando o vi sair do banheiro sem camisa, agora sem o curativo no ombro e uma cicatriz no formato de um furo.
— Vai pegar um bronze? — perguntei indo até o armário e guardando os alimentos.
— Vou, gracinha. — respondeu colocando a mão nos gominhos da barriga e mostrando os dedos em seguida — Se eu suar mais, derreto. Lugar quente do caramba. Se incomoda? — perguntou me dando uma piscadela — Se você ficar encantada, volto a me vestir.
— Idiota… — resmunguei com uma negativa — E então, deu certo?
Dom se sentou na mesa, pegou a lata de refrigerante e terminou com o líquido. Bateu a bunda da lata em cima da madeira frágil e me olhou sério.
— Deu, com um pequeno detalhe. — parei o que estava fazendo e dei minha atenção — A transferência me custou alguns trabalhos, inclusive uma promessa. Aqui não tem mafiosos, eles levam o nome de gangster. Eles querem a minha colaboração num serviço sujo, com isso a barra fica limpa. Se fosse diretamente com Iron, seria mais fácil, já que eu sou um soldado, mas não “o” soldado. Eu vou ter que fazer o serviço, entendeu?
— E se não fazer? — perguntei preocupada, cruzando os braços e me vendo perdida no meio das “remolachas”.
— Acredite, vai ser um inferno. — respondeu tentando se esticar na cadeira.
Dei de ombros. Parece que o espírito infernal que assombrava Iron ia me acompanhar de qualquer jeito. Voltei a guardar as coisas no armário, tentei não dar atenção naquilo e procurei alguma outra coisa para pensar.
Mercenários, mafiosos, gangsters. Que ao menos no final não morra mais ninguém…
No fim, eu já estava chorando. Não tinha o que fazer, tudo o que fiz foi sumir da cozinha, me trancafiar no quarto e chorar. Seria mais fácil se Iron estivesse aqui, mas ele não está. Não, ele não está.