CAPÍTULO 4
|KAYRA|
O dia tinha começado ruim com a confusão ocorrida no saguão do hospital envolvendo o babaca da pior espécie, e tinha conseguido a proeza de piorar em alguns níveis a mais, quando o insistente doutor Gregory Queen veio me atazanar com o mesmo assunto de sempre.
Espero sinceramente que minha resposta firme tenha se encaixado de vez em sua mente, e sido a última vez que eu tenha dito a mesma coisa.
Não é não! E ele precisa aprender a respeitar minhas decisões sem questionar ou continuar insistindo na mesma tecla. Haja paciência para suportar isso.
Felizmente, apesar de tudo ter colaborado para estragar meu humor, foi somente eu começar a fazer aquilo que amo de paixão, que é exercer minha profissão e ajudar as pessoas, que o desenrolar do restante do dia se tornou bastante agradável.
Ainda não descobri nada no mundo mais gostoso do que isso, tratar cada paciente meu com atenção e cuidado, e melhor ainda, obter os bons resultados durante a recuperação do tratamento recebido.
Ver um senhor idoso ou uma pequena garotinha de apenas nove anos de idade, de pé, saudável e com um enorme sorriso no rosto pronto para retornar para a própria casa não tem preço! É uma felicidade que não cabe no peito. Desperta o desejo de mandar o código de conduta profissional para o espaço e partir para o abraço para comemorar aquela vitória.
Porque cada conquista, cada recuperação e o menor progresso perceptível já é uma grande vitória, pois não é sempre que todos os casos terminam de uma forma positiva. Ao longo dos meus muitos anos de serviços prestados, já presenciei muitas mortes, muitos familiares que perderam seus entes queridos para uma batalha impossível.
Manter-se frio e impassível diante da família ao noticiar algo triste como isso é a regra do hospital, da profissão em si na realidade. E mesmo que por dentro você se sinta um verdadeiro nada, um caco, totalmente quebrado e com um imenso desejo de chorar por não ter conseguido fazer mais nada para salvar aquela vida, você é um médico no final das contas, então precisa manter a compostura, aparentar ser forte, imbatível e inabalável.
Médicos...
Mas no fundo nenhum de nós somos nada disso. Somos apenas meros seres humanos, mortais, falíveis e que possuem emoções como qualquer pessoa normal. A gente só aprende na faculdade e durante os estágios a fingir melhor do que os outros, a camuflar os sentimentos debaixo do imaculado jaleco branco e de várias camadas de pele. Porém no fim é tudo mentira. Tudo uma grande farsa.
Eu sinto. Eu choro. Eu vivo.
E essa é a melhor prova de que estou vivendo e não apenas existindo. Me torna humana.
-Ei motoqueira fantasma, está livre agora?
Andy pergunta após dar duas batidas na porta e em seguida coloca a cabeça para o lado de dentro da minha sala, fitando-me com um olhar que diz está aprontando algo. Aí vem coisa! É o que penso.
-Estou sim, pode entrar Andy.
Respondo sem olha-la de volta, enquanto guardo na gaveta as fichas e prontuários dos pacientes os quais estava analisando minutos atrás sobre minha mesa. Já é noite e observo o grande volume de pastas contendo os casos em que estou trabalhando. Pois é, apesar de tudo hoje foi um dia bem produtivo se parar para pensar.
-Se Maomé não vai a montanha, então a montanha é obrigada a correr atrás de Maomé.
Ouço a voz de Marie Willous cantarolar docemente irônica, e isso me faz imediatamente levantar o rosto para encontra-la dentro da minha sala ao lado de Andy, com os braços cruzados me encarando em desafio.
Obrigada, Collins! Muito obrigada por trazer Willous para torrar minha paciência e roubar minha paz de espírito no final do dia. Ponto para você, amiga!
-Primeiro lugar, o ditado não é assim.
Eu a corrijo com um revirar de olhos entediado e ergo o dedo indicador para indicar o número um.
-Em segundo lugar, se você veio na cola da Andy é porque está armando alguma coisa e quer o meu apoio para arrastar a bobona com você, mas ela está relutante em aceitar.
Digo o óbvio já sabendo como funciona o esquema das duas. Marie inventa as confusões e quer levar Collins a tira-colo consigo. Por sua vez Andy é muito medrosa e sempre acaba me levando junto para bancar a ajuizada do rolê, contudo o tiro acaba saindo pela culatra, quando eu também termino a noite metendo o pé na jaca e um dane-se para o mundo.
Por que é que essas duas malucas têm a leve sensação de que sou algum tipo de bom elemento ou influência boa do grupo? Eu hein... as vezes não consigo compreender a lógica de Collins e Willous.
-Então eu já adianto para não perderem o tempo de vocês tentando me convencer de nada. Eu não estou nem aí para a furada que as duas querem se meter, e você já é bem grandinha para realizar as próprias escolhas, Andy.
Eu aponto para minha amiga, mas ela ignora na maior cara de pau e se aproxima de minha mesa determinada. Ela e Marie me cercam dos dois lados com as mãos posicionadas no alto da cintura, e me encaram com afinco, como se dessa maneira fossem me persuadir do contrário. Entretanto minha decisão já está tomada e eu não irei voltar atrás.
-Façam o que quiserem, mas me deixem fora disso.
Digo com um suspiro exausto e me reclino no encosto da cadeira.
-Você não está nem um pouquinho curiosa para saber a proposta antes de recusar categoricamente, Pextton?
-Não, não estou interessada no momento, Willous.
Eu rebato fechando os braços sobre o peito e estalo a língua em um ato de desaprovação e tédio.
-Mas você nem sabe o que é...
Andy resmunga contrariada como uma criança birrenta e eu penso o que fiz para merecer isso. Quantos anos ela acha que tem?
-Não sei e tenho raiva de quem sabe.
-Olhe primeiro e depois responda antes de julgar...
Willous fala toda misteriosa ao retirar algo do bolso do jaleco, e em seguida o bate sobre o tampo da mesa a minha frente.
-Agora me diga se até a senhorita Pextton pode resistir a isso! São convites raríssimos adquiridos com muita dificuldade no mercado negro para a melhor festa do país esse ano!
Ela comemora ao exibir orgulhosamente três convites em detalhes negros e dourados, que devem ter custado uma pequena fortuna para chegar as suas mãos. Por um instante meus olhos saltam espantados e eu me pego em dúvida se realmente ainda devo permanecer relutante ao aceitar sua oferta.