O Vizinho
Estamos na primeira quinzena de agosto de 2014. Eu e Elisa acabamos de pegar as duas chaves dos armários que nos entregaram na secretaria e agora estamos caçando-os pelos corredores, por curiosidade. O meu armário é o número 12, e o dela o 13.
Em cada andar da Escola de Arte há uma fileira deles pregados na parede. Sem dizer nada, vou descendo as escadas com minha amiga.
─ Estou muito ansiosa para começar! - Diz Elisa, dando uma leve chacoalhada de empolgue com seu corpo, me fazendo sorrir.
Gosto de pessoas animadas como ela.
─ Eu também. - Respondo, cúmplice.
Não que eu esteja empolgadíssima, mas bom, talvez estudar aqui me traga coisas boas.
─ O que você vai fazer agora? - Ela pergunta, sorrindo.
─ Vou voltar para casa, ver como as coisas estão e, sei lá, talvez eu saia mais tarde.
─ Mmm... - Ela murmura. - Se você quiser sair para tomar uma cerveja me avisa. Hoje eu estou com muita vontade de me divertir. - Elisa para de andar, sorri e prega um selinho na minha boca. Depois disso ele dá um risinho divertido.
Fico vermelha. Logo seguro o seu rosto e retribuo, de olhos fechados. Minha amiga é bissexual. E tem um comportamento e umas tendências bem dominantes, digamos. Eu me considero hetero, mas costumo beijá-la quando ela me beija. Inclusive quando saímos juntas, muitas vezes acabamos dando beijos de língua bem quentes e profundos em discotecas.
Certa vez, um cara jogou um copo inteiro de Cuba Libre na nossa cabeça. Foi aí que eu vi que poderia ser problemático beijá-la em público. Na mesma noite, alguns homens tiraram fotos de nós duas enquanto nos enrolávamos.
─ Para, Elisa. Vão pensar que namoramos. - Digo, sussurrando, olhando para alguns alunos que estão pelos corredores procurando os armários deles, ou só conversando. Alguns nos observaram momentaneamente, mas logo se giraram para cuidar de suas próprias vidas.
Elisa ri alto.
─ Ué. Mas você é minha mulher. Não é não? - pergunta ela, brincando, e avançando contra mim com um grande sorriso. Acabo rindo muito corada.
─ Não. Eu gosto de pau. - A provoco, avançando alguns passos, retribuindo-lhe um sorriso ladeado e sexy.
─ Quando você vai me chupar? Em? - Ela ri, vermelha, gostando da minha cara.
─ Não sei se estou preparada para isso. - Rio, tampando a boca.
─ Sua sem graça. - Ela gargalha baixinho, pegando meu braço. É outro costume que a Elisa tem. Na rua ela anda agarrando meu braço, como se fossemos esposas. Detalhe, ela tem namorado. Mas os dois tem suas próprias condições dentro do relacionamento e o que a Elisa faz comigo, e com outras amigas suas, parece estar incluído no acordo. Não que eu saiba dos detalhes mais sórdidos; mas suponho.
Entre sorrisos, paramos mudas para observar os armários. E começamos a analisar os desenhos.
─ Que legal, não é? Eles deixam os alunos pintarem os armários. - Remarco. Elisa assente. Cada um tem um desenho único e criativo. Dá para ver a personalidade de cada aluno que o decorou. Alguns são bem fofos, outros estão pintados com comics, outros tem caricaturas, adesivos, assinaturas de Graffiti, uns quantos são mais góticos, outro mais hippies. Bem interessantes.
De repente, sinto um vento passando por mim de um jeito violento, me deixando com medo. Quando giro o meu pescoço, vejo um garoto andando de um jeito agressivo, com passos largos. E por tanto engraçados, na minha opinião. Ele está usando uma bermuda jeans aberta nos joelhos e um moletom grosso com capuz, de cor cinza. Tem as pernas bem peludas com fios pretos, isso me arranca um risinho. Ele é bem alto e proporcionado. Assim de costas, só consigo ver o seu boné preto girado para trás. Está escrito "Harlem" nele. Harlem... Mais um europeu que pensa que é preto? Meu sorrisinho se expande um pouco mais.
Vejo como ele se ladeia ao se encontrar com um garoto ruivo tão alto como ele. Os dois ficam de perfil, e estão rindo juntos, fazendo alguma brincadeira típica de meninos. O moreno gesticula muito, se agacha, parece ser bem feliz. Este cara ruivo é lindo. Começo a ficar vermelha e a fechar o meu sorriso.
O ruivo está vestido todo de preto, com roupas muito ajustadas, taxas por todos os lados, e uma jaqueta de couro. Ele é muito chamativo. Seus cabelos são longos, um pouco abaixo do ombro, repicados e tingidos com um vermelho fantasia intenso.
Vejo como, de repente, ele se ladeia na minha direção e na da Elisa. Não para olhar nós duas, mas como se apenas estivesse checando o ambiente num gesto automático. Giro a cara para o armário imediatamente.
─ É esse o meu. - Digo para Elisa.
─ Olha! É o Casandro! - Ela exclama, sorrindo.
─ Casandro? - Murmuro, rígida.
─ Sim, vem. Ele é amigo do meu cunhado. Assim socializamos um pouco com alguém conhecido. - Minha amiga diz sorrindo, e me puxando. Me giro, com vergonha, e vamos caminhando até o tal do Casandro.
Ele acaba de dar duas palmadas amigáveis nas costas desse cara moreno, num gesto de despedida, e ele saiu caminhando com o seu ar despreocupado outra vez, enfiando as mãos nos bolsos da bermuda.
─ Oi, cara! - Elisa exclama com um grande sorriso. Os dois se abraçam e eu me afasto. Casandro esfrega as mãos pelas costas da Eli, sorrindo.
─ Elisa... Quanto tempo... O que é que você está fazendo aqui? - Ele lhe pergunta.
Nossa, o Casandro tem uma voz rasgada, um pouco sombria, rouca e grave. Uma delícia.
─ Eu me matriculei para estudar Moda. - Minha amiga responde sorrindo. ─ E você?!
─ Estou acabando o segundo ano de Música. Hmmm... Já pode me soltar.
Que escroto.
Elisa o solta e dá um tapa no ombro dele.
─ Ei. Seu chato da porra. Você segue rabugento como sempre. - Ela zanga.
Casandro ri fraco, se divertindo.
─ Bom, já vou nessa. Tenho muitas coisas para fazer hoje. Às sete tenho que ir trabalhar.
─ Ah, então tá. - Responde Elisa, orgulhosa.
O cara diz que vai trabalhar, mas para ela foda-se. Tudo é um ataque pessoal.
Casandro me olha uns segundos e depois abre um sorriso labial ladeado. Vai deslizando as pupilas por meus olhos, por meu nariz, por minha boca.
─ Eu sou Malvina, amiga da Elisa. - Corto o incômodo silêncio e sorrio fraco, tentando ser simpática.
─ Eu te perguntei alguma coisa? - Casandro rebate, franzindo as sobrancelhas, com um tom afável.
Mesmo assim fico surpreendida e desconsertada com a falta de educação.
O ruivo começa a rir com malícia.
Ah!
É só uma brincadeira.
Os Europeus são ácidos fazendo amigos. Isso me choca.
─ Tá bom, então. Vai se foder por aí, manézão. - Rebato.
Acho que exagerei.
Que nada. Ele já está rindo comigo, esse escroto.
Casandro pisca um olho para mim de um jeito discreto, após nossos risos falsos, e vaza.
─ Ah, não liga para ele. Ele é muito borde. - Elisa me consola.
E daí se ele é desagradável? Ele é gostoso, rockeiro e sabe ler partituras. Quero conhecê-lo melhor.
De forma superficial, claro. Assim não tenho que despejar meus problemas pessoais em mais uma vítima.
─ Nem foi nada, amiga. Um idiota a mais. Eu já vou para casa.
─ Mas já?!
─ Já. - Rio. - Te amo. - Beijo sua testa, e me preparo para me afastar.
Mas aí a Elisa me puxa para um abraço muito apertado, me esmagando.
─ Eu também, sua bobona. Você vai ver como vamos nos divertir aqui. - Ela sussurra, como se fosse uma promessa.
─ Eu sei. - Respondo, maliciosamente.
- ♥♥♥ -
A briga da Eduarda e do Matias em plena madrugada parece ruído branco. Para que seu espetáculo continue, estou cuidando do meu irmão.
Eu tenho um refúgio mental para momentos de emergência. Uma bolha na que eu me enfio e não escuto nem entendo nada externo. A imaginação.
O meu irmão já tem um ano e já sabe descer da cama sozinho. Seus risinhos são fofos, mas seu choro é enlouquecedor.
A porta se abre bruscamente.
─ Você ouviu isso, Malvina? - minha mãe grita, me repreendendo.
Ela quer que eu entre na briga e me enterre na cova junto com ela.
─ O quê? - Respondo, submissa.
Meu padrasto aparece por trás, só de cueca.
Nojento.
─ Bobagens. - ele tira importância.
─ Ele acaba de me bater! Olha aqui! - Minha mãe me mostra um hematoma roxo enorme.
Fico calada.
─ Você contou para ela o que você fez? - Ele lhe pergunta, com uma postura superior.
Eduarda está nervosa, lagrimejando.
─ Você não ouviu?! - ela grita comigo, girando a cabeça.
Sigo calada e encolhida.
─ Enfim. - ele suspira zombeteiro. - Vou descer para tomar uma breja.
Cada vez que o Matias abre a boca eu quero vomitar.
─ Não.
Nem tudo gira ao seu redor.
Ela me olha feio.
─ Estava prestando atenção no Marcelo. Não ouvi, mãe.
Respondo, desesperada. Só quero que ela me deixe em paz.
Ela me xinga de tudo que é nome: gorda, lerda, otária, feia. Como é que ela quer que eu me importe?
Ah, claro. Ela tem Transtorno Narcisista de Personalidade.
─ Você é uma inútil mesmo. Não serve para nada. - ela diz com ódio.
Deixa eu adivinhar como foi a briga dessa vez. Você disse para ele que queria um vestido da Carolina Herrera, ele disse que era muito caro, você ficou insistindo, ele perdeu a paciência e te bateu.
Ambos estão errados.
Nessa casa não há santos.
─ Só um pequeno anjo. - beijo o nariz do meu irmão.
─ Quê? - ela pergunta enraivecida.
─ Ele é lindo como um anjo.
─ Vai, sai daqui sua retardada. - Ela me toca do quarto.
Vou para o meu e coloco fones. Começo a escutar um montão de músicas sexys. Sabe como é. Eu ainda não tenho televisão no quarto.
Vasculho minhas mensagens, olho os grupos. A Elisa mandou um monte contando para todo mundo que ela conseguiu vaga na Escola de Arte.
Eu queria ser assim otimista.
Vou fazer um baseado e me masturbar.
Abro a janela e subo as persianas sem fazer barulho. Eu amo essa minha cortina de renda branca. É tão sensual.
Ainda há luzes acesas na vizinhança. Jogo meus braços para fora e começo a fumar primeiro um cigarro, enquanto olho dentro das casas.
Fico comparando a minha vida com a dos demais.
Olha só.
Há uma família vendo televisão, um casal se beijando na cozinha, uma mãe balançando um berço... Tudo normal e cotidiano.
Quero dizer! Hahaha.
Exceto... Exceto este cara!
Puta merda.
Um loiro muito gostoso dobrando umas roupas só de cueca branca. Ai, que delicioso. Prendado, organizado, responsável.
Não como esses caóticos daqui de casa.
O pau dele está duro.
Mas como pode isso? Ele tem alguma parafilia estranha? Fetiche por móveis?
Brincadeira. Só deveria estar assistindo pornô no x-vídeos.
Começo a me debruçar na janela, e a olhar atentamente, estou até arregalando os olhos.
De repente vejo como ele para, e olha na minha direção. Seu rosto fica de frente para a janela. Ele se aproxima.
Solto uns risinhos nervosos e junto meus seios com os braços, só para provocá-lo, fumando.
Ele abre um sorriso ladeado e acena pra mim.
Nesse momento sinto uma adrenalina muito gostosa, e como não estamos nos enxergando direito aceno de volta e mordo meu lábio inferior carnudo.
Ele inclina o queixo para trás de leve, dando uma gargalhada de nervosismo. Depois se recompõe e aponta para baixo com o indicador duas vezes.
É como se ele estivesse perguntando:
"Vamos descer?"
Ai, não sei não.
Ele começa a se vestir, volta a me olhar e gesticula de novo.
"Vamos descer?"
Já vou.