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Os amigos

Entrei na livraria às pressas. O ar me faltava e eu tentava controlar toda minha raiva junto à respiração descompassada.

Melissa me olhou com a expressão assustada e disse meu nome sem que o som saísse de sua boca. Ela deixou seu balcão o mais rápido que conseguiu para ir até mim.

— O que aconteceu com você? — perguntou, mas eu não sabia como responder.

Não queria chorar mais, nem me preocupar com meu pai. Mas era impossível. Eu era sua filha e, querendo ou não me preocupar fazia parte disso.

— O que aconteceu é que tenho um pai estúpido e um amigo incompetente — soltei. A garota mudou sua expressão para dúvida, esperando que eu explicasse. — Eles decidiram não me contar nada.

— London, já sabe o que penso disso tudo. Acredito que agora concorde comigo. — Eu afirmei. Depois de um longo suspiro, limpei a garganta observando o ambiente calmo e me sentei.

— Estou criando coragem para fazer — sussurrei, fazendo com que a jovem se sentasse para me ouvir melhor. — Ele não vai me nos perdoar.

— Pelo menos você vai saber onde ele está, vai poder acompanhar a situação com a segurança da polícia e dormir melhor.

A morena acariciou meus cabelos como se me arrumasse. Eu já estava há tanto tempo sem dormir direito que me acostumei com os cabelos bagunçados e o sono constante. Mas ela não sabia lidar com minhas madeixas desarrumadas.

— Podemos ir com você, se preferir — seu irmão se aproximou comentando o mais baixo possível. Eu o observei naquele instante, intrigada com a boa audição que o mesmo tinha.

Melissa confirmou a sugestão do irmão e eu cogitei realmente a ideia de levá-los para me acompanhar naquele momento. No entanto, ambos tinham uma vida movimentada e eu precisava encarar meus demônios sozinha.

— Não. Tudo bem, eu só preciso de forças.

Meus olhos correram pelo Morgan's enquanto eu pensava em como iniciaria mais um depoimento, dessa vez para a polícia. Me perdi nos olhos castanhos de um herdeiro curioso que, ao notar minha olhada, tentou desvencilhar o contato. Ele não teve sucesso.

O rapaz passou seu dedo calmamente pelo olho esquerdo como se limpasse uma lágrima. Parecia me perguntar se eu estava chorando e apenas afirmei com a cabeça. Ele arqueou os ombros e as sobrancelhas com olhos realmente curiosos, me perguntando o porquê.

— Jonathan disse que te ajudou a se livrar de uns caras estranhos ontem. — Carter interrompeu nossa conversa de olhares ao puxar minha atenção. — Fazem parte das pessoas que querem pegar seu pai?

— Sim e meu Deus, ele foi incrível! — Me levantei para caminhar. — Não sei o que seria de mim se ele não estivesse lá — comentei.

Deixei os irmãos se entre olharem e fui na direção de meu salvador. Jonathan manteve seu olhar fixo ao meu durante todo o trajeto. Suas bochechas tinham uma tonalidade avermelhada e seu corpo se tornava tenso a cada passo meu. Era divertido ver essa reação.

— Henrietta — abri um sorriso sútil a ele.

— Você gostou de me chamar assim.

Ainda que a voz saísse de maneira brincalhona, eu não via uma lasca de sorriso em seu rosto.

— Escreva minhas palavras: vou tirar um sorriso de você.

— Porque estava chorando? — sua pergunta saiu depois de uma negação com a cabeça. Dei de ombros para ele, mas ele ainda me perguntava com os olhos grandes.

— Problemas na família. — A boca do rapaz se abriu numa forma de compreensão.

O silêncio se fez entre nós, mas seus olhos ainda prendiam os meus naquele pequeno espaço. Eu não podia deixar de notar que ele sempre me observava como se procurasse algo familiar em mim.

Tentei desviar dessa conversa de olhares desconfortáveis e encontrei o anúncio da festa de aniversário da cidade em cima da mesa onde o rapaz trabalhava. Apontei para o papel fazendo com que ele seguisse meu comando.

— Você vai participar do evento?

— Pretendo não estar na cidade. — Foi minha vez de lhe perguntar com o olhar e a de Jonathan dar de ombros para mim. Ele observou as pequenas palavras na folha e, depois de uns instantes, conectou seus olhos novamente aos meus. — Problemas de família.

Deixei o som do riso escapar fazendo-o me olhar tão profundamente a ponto de me deixar constrangida. No entanto, tentei não deixar que aquilo me privasse de falar com o Morgan.

— Vejo que está bem ocupado. — Ele pareceu se lembrar do aparelho aberto em sua mesa naquele momento e confirmou minha suspeita ao pegar a ferramenta minúscula. — Não vou te atrapalhar.

— Você vai estar lá? — perguntou Jonathan antes que eu saísse.

Dei meu melhor sorriso para ele e assenti, saindo dali para deixar que ele terminasse seu trabalho.

Voltei ao meu grupo de amigos, sentindo-me bem melhor do que estava quando cheguei ao Morgan's. Tentar fazer Jonathan sorrir ou puxar assunto com o rapaz me tirou os pensamentos ruins sobre tudo o que estava acontecendo, e até me deu uma certa coragem de seguir com minha ameaça.

Os olhos azuis de Melissa, me analisavam totalmente catatônico. Eu poderia jurar que ela tinha visto um fantasma ou que havia passado um estresse emocional muito grande.

— Ele falou com você. — Eu assenti, mesmo que aquilo não fosse uma pergunta. A morena mantinha a boca entreaberta para demonstrar o espanto. — Assim como eu e você conversamos!

— Não exatamente. — Sentei-me na mesa onde ela tomava seu café, sabendo que seu irmão viria com outro desenho em um cappuccino a qualquer momento. — Ele tem uma forma estranha de se comunicar, como se só soubesse poucas palavras. Mas o que me intriga é a falta de humor.

— Sabe, ele ficou meses sem vir aqui — ela revelou, e meus olhos não souberam se conter. Ambas fixamos nossa atenção ao moreno concentrado em seus eletrônicos desmontados. — Depois de perder Alina, ele simplesmente se fechou em sua casa e deixou que nós cuidássemos de tudo. Levávamos comida para ele, mas raramente comia e mal abria a porta do quarto.

— É por isso que ele não vai à festa?

— Não. — Melissa deu um gole em seu café antes de continuar. — Nossos pais morreram quando ele era éramos pequenos. Eu e Victor tínhamos acabado de nascer e Jonathan estava com cinco anos. Papai e mamãe voltam de uma festa na cidade quando um motorista bêbado acertou o carro deles, tirando-os da estrada. Então essa festa não é um evento que nosso irmão adore.

Mantive a atenção nele e me comovi com a breve história. O homem havia perdido os pais na infância, cuidou dos irmãos e também perdeu uma garota meses antes de minha chegada. Não era à toa que havia deixado de sorrir.

— Então é muito bom vê-lo voltando a se comunicar. — Melissa tornou a dizer depois de uns instantes e posso jurar que senti uma pontada de incomodo em sua última frase.

Eu a observei demonstrando desconfiança em meu olhar. Quando ela notou, franziu a sobrancelha e deu outro gole em sua bebida.

— Você se dedicou muito ao bem estar dos seus irmãos, não é? — Concluí, e a morena deu de ombros. Seus olhos azuis olharam carinhosamente, me dando a certeza do que disse. — Sabia. Eu passo por uma situação parecida e é terrível!

Enquanto conversávamos, o ajudante de Thiago entrou pelas portas do estabelecimento e os olhinhos de Melissa correram para a entrada. Eu pude ver o rubor dominar suas bochechas e tenho certeza que ouvi seu coração bater fortemente.

— Está tudo bem? — Perguntei-lhe e ela piscou algumas vezes, tentando encontrar as palavras para me direcionar. — Você é caidinho pelo detetive júnior, não é?

Ela baixou os olhos em uma desesperada tentativa de fugir de mim e isso me fez vibrar. Bati a mão na mesa caindo numa gargalhada alta e ela me seguiu de forma envergonhada, tenho certeza que puxamos a atenção de todos.

— London, pelo amor de Deus! — Ela suplicou colocando o indicador em frente aos seus lábios e chiando para me pedir silêncio. — Já gostei dele sim, mas faz muito tempo.

— Eu acho que está mentindo para si mesma, amiga. — Tentei não ter outro ataque.

— É sério. — A expressão de Melissa passou de envergonhada para séria. — Depois que sua namorada chegou na cidade, eu não tive mais chances. Então deixei pra lá.

— Ele namora? — perguntei. Era realmente impossível não achar aquela garota uma graça.

— Bom, isso já tem um tempo. Ela se mudou para o Rio e acredito que eles terminaram depois de um tempo. Ainda assim, parece que ele não quer se envolver com mais ninguém.

Melissa deu de ombros. Ela terminou seu café e sorriu levemente para mim como se demonstrasse que já o havia superado. No entanto seus olhos a contradiziam.

Novamente olhei o loiro do outro lado e sorri ao vê-lo também com os olhos em nossa direção.

— Ele só precisa de tempo. — Voltei para ela e lhe lancei uma piscadela. — Posso dar um empurrãozinho.

— Vai empurrar quem? — Perguntou Carter ao se aproximar com meu cappuccino.

Havia uma figura desenhada na espuma, parecia um personagem de desenho animado com os olhos enormes, cobertos por óculos finos, brilhando para mim.

— Um barista intrometido. — Os irmãos sorriram e os olhos de Victor viajaram até Jonathan. — Ele parece ter gostado de você. Nunca o vi falar naturalmente com uma garota, além de Melissa e Alina.

A morena afirmou ao fim das palavras de seu irmão. Dei um sorriso sútil aos dois, ainda com os pensamentos perdidos na história de Jonathan.

Até aquele momento eu achava que meus problemas iriam acabar me enlouquecendo, mas percebi que tinha alguém pior. Pelo menos não conheci minha mãe, então não poderia dizer que sentia falta do que nunca tive. Meu pai ainda estava vivo — por mais que fugisse de mim — e meu suposto romance havia acabado há muito tempo. Só era difícil aceitar.

Ao terminar meu cappuccino, deixei o pagamento e a gorjeta de Carter sobre a mesa. Dei breves acenos aos amigos que fiz naquele lugar seguindo meu caminho para casa.

Tinha sido uma ótima ideia ir até o café depois da trágica conversa com Thiago. Eu consegui recuperar parte de minha sanidade, até mesmo para pensar sobre o próximo passo.

Precisava chegar em casa para organizar tudo que eu pudesse levar até as autoridades, tudo o que poderia ajudar nas investigações. Principalmente algo que colocasse Thiago numa sala para também dar seu testemunho e finalmente dizer onde estava George.

Eu tentava caminhar pelas ruas o mais rápido que minhas pernas conseguiam. No entanto, um toque caloroso em meu ombro me interrompeu pelo caminho.

— London? — Senti um calafrio percorrer meu corpo quando ouvi meu nome ser chamado por aquela voz.

Meus olhos viajaram pela rua movimentada até que se fixassem aos castanhos de Jonathan. Eles pareciam duas joias em contato com o sol de tão brilhantes. As bochechas ligeiramente coradas e os lábios puxando o ar para me mostrar que o mesmo havia corrido até mim.

— Senhor Morgan. — Eu vi o olhar dele se intensificar e lhe dei um sorriso divertido. — Tudo bem?

— Na verdade… — ele gaguejou por alguns instantes, respirou profundamente para recuperar o fôlego enquanto formulava a frase. — Eu queria saber se você está bem. Ontem não me deixou levá-la ao hospital, mas como foi agredida…

— Não se preocupe com isso, Henrietta. Estou ótima! — Meu sorriso se intensificou com a preocupação do rapaz, ainda assim ele não me mostrava a expressão que eu queria. — Só não queria que meu nome aparecesse em alguma rede social para depois ter que explicar duas situações à imprensa.

— Ah! Os problemas familiares. — Eu assenti, ainda mantendo o sorriso no rosto, e ele a expressão curiosa. — Bom, não fique perambulando por aí no meio da noite sozinha. Não é todo dia que temos sorte.

Seu pedido me pareceu grosseiro, mas quase tudo o que ele falava me dava essa impressão. Então eu apenas relevei seu tom de voz e lhe dei uma continência tentando ser engraçada. Nenhuma reação.

— Falando em ontem — lembrei da situação e da luta do moreno com os três. Ele havia usado golpes interessantes. — Você luta o que?

— Já lutei karatê, mas parei há dois anos e me sinto muito enferrujado — ele falou estalando o pescoço.

— Você derrubou duas pessoas — reforcei seu ego. — Se isso quer dizer que está enferrujado, então aqueles rapazes tiveram sorte de não te pegarem em seus melhores anos.

— Eu quis dizer que não participo das competições — posso jurar quase ter visto um risco se forma em seus lábios. — Mas ainda mantenho uma rotina de treino em casa.

— O efeito continua evidente — eu falei em menção ao físico do moreno, que pareceu ficar sem graça com o comentário.

— Você é realmente sincera dessa forma com todos ou me achou um alvo fácil? — Apenas sorri para sua pergunta. Eu realmente havia o achado um alvo fácil, mas também gostava de mostrar minha opinião. Então era uma resposta equilibrada. — Vou considerar que é sincera e vou embora antes que diga o contrário.

Ele parecia brincar, mas — pode até parecer mentira — mesmo assim, ele ainda não demonstrou nada de humor em sua face.

Quando se virou para ir embora, acabou pisando em falso na calçada e sua perna vacilou. Tentei ajudá-lo, mas seu peso era o dobro do meu e quase fomos parar os dois no chão. Por sorte ele se apoiou no poste ao seu lado e abraçou minha cintura para me impedir de cair.

— Tudo bem? — Ele sussurrou e eu assenti. Sua face estava tão próxima que eu pude sentir o ar sair por entre seus lábios, assim como vi seus olhos se focarem em minha boca. — Acho que ando distraído.

— Percebi. — Ele percorreu o olhar por meu rosto, até se prender em minhas íris daquela maneira penetrante.

— Senhor Morgan! — Ouvimos algumas jovens chamando por seu nome e logo estávamos rodeados de curiosos. — O senhor teria um minuto? Queríamos fazer algumas perguntas para nossa escola.

— Jonathan…

O homem piscou por um momento e, ao notar que ainda me segurava, me liberou. Pigarreou de maneira constrangida e observou a rua em sua frente.

— Desculpem… Preciso ir. — Ele endireitou a roupa e começou à fugir, deixando as garotas com seus olhos tristonhos.

— Espero poder vê-lo na festa — falei por fim. Ele enrugou a testa, olhou novamente para a rua de onde veio e se foi depois de acenar para mim.

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