A partida e a retrospectiva
(Bianca)
Reuni apenas objetos queridos, algumas roupas e o ursinho favorito da minha Nathalie. Foi a única coisa que me permiti ficar desde a sua morte. Eu tenho uma quantia significativa no banco e umas jóias que ganhei do Tomaz. Assim que eu chegar no Canadá irei vender as jóias e mudar de banco. Não avisei a minha mãe que estou indo embora, ela surtaria. Nesse momento ela deve estar na França, curtindo sua tão grande lua de mel com Vicente, meu padrasto. Meu pai eu nunca nem vi, nem o mesmo quis saber de mim quando nasci.
Eu deveria estar mais acostumada com as rasteiras que a vida vive me dando.
Depois de deixar a carta perto da garrafa predileta de whisky do Tomaz, entro no meu carro e vou embora. Aproveitei que hoje é domingo e a casa está totalmente sem empregados. Desliguei as câmeras de segurança por precaução e o rastreador do carro. Abandonei meu celular, eu já tinha outro em mãos com os contatos de quem era importante pra mim.
_Vamos lá, Bianca. Não chora, garota._Digo a mim mesma quando percebo que estou em lágrimas.
Me casei com o Tomaz aos 18 anos. Eu estava na faculdade de ciências biológicas e ele, administração. Foi amor à primeira vista mesmo. Namoramos por dois anos e aos 18, casei. Eu me sentia a mulher mais feliz do mundo ao seu lado.
Sabe o homem que você olha e o acha perfeito em tudo? Era o Tomaz, era.
Engravidei aos 20, uma felicidade só. Meus sogros estavam felizes, o Tomaz estava feliz...
Eu, eu estava feliz. Mais do que todo mundo.
Consegui me graduar a tempo, eu queria muito meu diploma. Tive a Nathalie e minha vida só melhorou. Ela veio ao mundo em 18 de Março, numa tarde chuvosa. Um mês depois eu fiz 21. Nossa menina era bochechuda, olhos verdes intensos como o do pai.
Mas a beleza... Ah, a beleza.... Ele dizia que era totalmente vinda de mim.
Meus pensamentos são interrompidos por um alerta no painel do carro. Ótimo! Eu esqueci de encher o tanque. Ainda bem que dá pra dirigir até um posto que tem aqui nessa estrada.
Pedi pra encherem o tanque e aguardei fora do carro. Eu estou com sono, muito sono. Por fim o tanque é completado e eu posso enfim voltar a retrospectiva da minha vida melancólica.
Minha felicidade durou poucos meses. Aos 10 meses, Nathalie demonstrou um comportamento diferente. Estava torta, não tinha apoio em um lado do corpo e não parecia mais a minha bebê alegre e falante.
Levei a minha filha no hospital e depois de uns exames disseram que minha filha tinha tido um AVC.
Enlouqueci. Eu simplesmente enlouqueci.
Liguei pro Tomaz, só que ele estava preso em uma reunião da empresa. Pediu pra eu o manter informado e precisou desligar. Meus sogros estavam viajando e minha mãe também.
Eu estava sozinha. Sozinha e tentando não infartar.
Médicos vem.
Médicos vão.
Nada de notícias da minha bebê.
Surtei.
Falei muito pra coitada da recepcionista que não tinha nada a ver com a situação, exigi que ela chamasse os médicos que estavam com a minha filha. Logo eles apareceram avisando que minha filha estava sem oxigenação no cérebro e que a mesma estava tendo um segundo AVC.
Como assim? Outro?
Não demorou mais de duas horas. A minha bebê, o meu neném tão alegre partiu. Ao receber a notícia, eu desmaiei batendo com o corpo no chão.
Eu estava sozinha. Ninguém iria me segurar. Não tinha ninguém.
Acordei com os médicos em minha volta, minha cabeça doía muito. Ao me dar conta do que aconteceu, pulei da maca ofegante.
_Cadê a Nathalie? Eu vou levá-la pra casa, eu cuido dela._Gritei em pleno pulmões._Vamos, eu quero a minha filha!
_Senhora, não podemos liberar o corpo da sua filha ainda._ A voz do médico chegou até mim como uma bomba._Por favor, a senhora tem que...
Gritei.
Gritei tão alto que o hospital inteiro se calou.
Saí correndo daquela sala atrás da minha filha. Voei em cima de enfermeiras, bati em médicos.
Eu surtei. Eu realmente queria quebrar tudo.
Tiveram que me aplicar três sedativos, três. Mesmo sob efeito dos três, eu não dormi. Ainda consegui ver o rosto do Tomaz se aproximando de mim, que estava amarrada em uma cadeira.
_Ela partiu._Foi a única coisa que consegui falar antes do sedativo me vencer.
Pausa na retrospectiva. Preciso me recompôr. Encosto o carro na estrada e enxugo as lágrimas que embaçam minha vista.
É difícil falar da partida de alguém. Principalmente quando esse alguém foi gerado dentro de você.
Depois de alguns minutos, já é hora de voltar ao caminho até o aeroporto. E voltar ao fim dessa retrospectiva também.
Quando acordei, eu estava sozinha. Totalmente sem forças pra chorar, tive que cuidar de tudo. Liguei inúmeras vezes pro Tomaz, pra todo mundo. Ninguém atendeu. Eu enterrei minha filha sozinha, com nenhum parente presente além de mim. Tomaz evaporou.
Depois que o padre foi embora, eu fiquei no cemitério até altas horas da noite. Eu me recusava a dizer adeus a minha bela Nathalie.
Como eu iria sobreviver sem aquele sorriso? Sem aquele cheirinho?
Voltei pra casa e passei uma semana sem notícias do Tomaz. Minha mãe chegou 3 dias depois do sepultamento. Ficou comigo até Tomaz retornar, bêbado e sujo. A partir da morte da minha filha, Tomaz se tornou o pior homem do mundo. Não falava comigo. Não me queria na cama. Não quis ser mais o meu marido, mesmo não dizendo isso.
Eu suportei dois anos, dois anos nessa indiferença. A última prova de que eu estava disposta a ficar ao seu lado pra sempre foi quando planejei a sua festa de aniversário. Chamei seus amigos e fizemos uma festa pacata. Nesse dia eu pensei que seria a nossa reconciliação definitiva.
Que boba eu fui!
Agora estou grávida e indo pro Canadá recomeçar. Não dava mais, eu estava me matando por quem não morreria por mim.
Agora eu terei a chance de ser feliz, eu e o meu bebê. Acredito que grandes coisas esperam por mim no Canadá.
Longe do Tomaz. Longe do meu ex-marido alcoólatra e insensível que tanto amei.
***