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Capítulo 5

Isla

Não me sinto dona de mim mesma há um bom tempo desde que o furacão Theodoro Coben invadiu literalmente minha vida com seu jeito irritantemente mandão e mimado. Esse garoto acha que o mundo gira ao seu redor e que todos os meros seres humanos mortais devem simplesmente gravitar ao seu bel prazer. Aos poucos estou tentando me acostumar com essa sua característica em particular, que gosto de denominar como um defeito grave vindo de fábrica. Porém nunca irei aceitar assim tão facilmente.

Ah, mas para cima de mim não, Coben!

Mesmo com pouco tempo de convivência com esse serzinho, acredito que já conheço-o de certo modo, por isso não me surpreendo quando o vejo em plena quarta-feira, entrando na cafeteria e se sentando confortavelmente em uma das mesas espalhadas harmoniosamente pelo local. Seus olhos azuis como duas bolas de gude correm pelo lugar até que me encontram atrás do balcão e um sorrisinho cínico de lado se alastra por seus lábios. Com o dedo indicador, Theodoro faz sinal em sua direção chamando-me e logo volta sua atenção para o cardápio que tem mãos.

Abusado!

E como a boa e eficiente funcionária que sou, eu caminho em sua direção parando ao seu lado.

-Boa tarde, em que posso ajudá-lo? -solto a pergunta de praxe que normalmente faço todos os dias aos clientes.

-Senta aí. -ele aponta para o assento de frente para o seu sem menos levantar o olhar para mim.

Melhor assim, penso comigo mesma. Talvez desse modo eu consiga resistir a vontade de acertar uma dessas bandejas bem no meio da cabeça desse projeto de idiota.

-Estou trabalhando se ainda não percebeu, Coben. -rebato com ironia.

Theodoro rapidamente desvia o olhar do cardápio para minha direção e analisa meu rosto por alguns instantes com um semblante impassível.

-Tudo bem. -ele acena com a cabeça e parece pensar em algo antes de voltar a falar.

Antes tivesse continuado calado.

-Você vai lá para casa hoje. -ele diz com simplicidade como se aquilo fosse normal entre nós.

-O que? -pergunto tentando entender em que idioma esse maluco está falando.

-Você entendeu, Isla não se faça de louca. Você não é burra ou surda.

Ignorante.

-Precisamos bolar uma história convincente para as pessoas sobre nosso namoro falso. -diz folheando a próxima página do cardápio. -Amanhã é quinta-feira, sexta tem festa marcando o início da temporada de jogos do time e eu decidi que esse será o dia em que irei apresentá-la oficialmente como minha namorada. Ou seja, temos apenas um dia para colocar tudo em ordem.

-Isso não vai dar certo, Coben. Seu plano é totalmente sem noção e cheio de furos, não percebe? -digo o óbvio, já que o gênio não parece se dar conta dos fatos.

Suspiro. Lá vamos nós.

-Ninguém vai acreditar nessa farsa ridícula. As pessoas nunca nos viram trocar meia dúzia de palavras sequer nos corredores do colégio e agora eu simplesmente apareço como sua namorada num passe de mágica? Fala sério e vê se cai na real. -estou muito irritada com a burrice desse garoto.

-Tibuco! -Paris me grita da cozinha e sei algo está errado.

Ele nunca levanta a voz durante o horário de expediente. Além de deselegante, o chefe de cozinha diz que isso espanta os clientes.

-Tenho que trabalhar, Coben. -viro as costas para voltar aos meus afazeres, porém ainda o escuto falar mais uma vez antes de deixá-lo sozinho.

-Estarei te esperando bem aqui até o final do seu turno, mocinha, para depois irmos juntos para minha casa. -Theodoro diz em alto e bom som e sinto minhas bochechas queimarem com os olhares que recebo de algumas pessoas mediante a insinuação de seu comentário.

Babaca.

Ele não perde por esperar!

× × ×

Trabalho pelo resto do dia tensa com a presença de Theodoro Coben no mesmo ambiente em que eu. Cumpro com minhas tarefas enquanto o espio com o canto dos olhos, ele permanece o tempo todo com a atenção voltada para o celular, como um lunático vidrado na enorme tela do smartphone novinho que reluz a palavra cara estampada em letras garrafais. Recolho o copo descartável e os guardanapos que ele havia utilizado durante o lanche, jogo tudo na bandeja e deixo a nota fiscal após o pagamento sobre a mesa.

E em nenhum momento o idiota se dignou a olhar para mim, mesmo que eu o estivesse atendendo no momento.

Não gosto de Theodoro Coben, ele é um idiota isto é fato. Mas ser tratada com indiferença dói, porque me lembra o quão insignificante sou para ele, para as pessoas do nível social a que pertence como os clientes que frequentam a cafeteria. Eu vejo isso refletido em diversos rostos todos os dias. Tão irrelevante, um ser descartável que a qualquer momento pode perder seu valor e ser deixado de lado como um brinquedo velho e sem utilidade.

* * *

-Acabei. Vamos. -suspiro resignada.

Passo os braços pelas alças da mochila depois de ter trocado o uniforme de serviço e bato o pé impacientemente quando Theodoro não esboça nenhuma reação.

-Coben! -ralho nervosa e vou em direção a porta destravando o sistema de segurança.

-Estou indo. -após alguns segundos ele se coloca de pé e seguimos até sua caminhonete imponente em silêncio.

O caminho até sua casa não demora mais que vinte minutos. O tempo todo permaneço calada com o rosto virado para janela evitando ter de encara-lo. Quero evitar o máximo possível o momento em que teremos finalmente que conversar. Estou exausta tanto física quanto psicologicamente depois de um dia inteiro de trabalho. Mas ele não se importa. Por que se importaria, não é mesmo? Theodoro Coben não sabe como é a vida das pessoas comuns que tem que ralar todos dias para se manter. Não, não. O garotinho mimado sempre teve tudo na mão e ainda sim parece não dar o menor valor para isso.

Quando Theodoro estaciona o veículo em um belo gramado, quase tenho um pequeno infarto ao reparar na beleza que o local como um todo transmite, além da suntuosidade e riqueza em cada detalhe, desde a entrada feita de caminho de pedras polidas até a enorme mansão alguns metros mais a frente.

Theodoro me conduz com uma mão em minhas costas para dentro da casa, não gosto do contato, mas de certo modo é um tanto confortador depois de um dia intenso e cansativo. Estou distraída demais para reparar tardiamente que estamos sendo observados por alguém.

-O que está aprontando, Theo? -congelo no lugar ao ouvir essa voz

ESSA NÃO! Perigo!

Stella Coben, líder das Tigress e a garota mais popular do Potossin Honório, senta-se no sofá caríssimo com a compostura de uma rainha e um olhar avaliativo sobre mim quando vê o irmão com a mão em minhas costas empurrando-me em direção às escadas que levam para o andar de cima.

-Não é da tua conta, peste. -Theodoro rebate rispidamente e eu o olho alarmada.

Que grosseria é essa, meu Deus? Por que tratar a garota assim? Sei que Stella Coben pode ser terrivelmente má e vingativa pelo o que já ouvi falar a seu respeito em meio as fofocas no colégio, mas poxa vida! Ela era sua irmã, deveria trata-la com um pouquinho mais de respeito e cordialidade, no mínimo.

-Eu se fosse você pensaria com muito cuidado antes de escolher as próximas palavras, Theo. Tcs...tcs... posso acabar com você em um estalar de dedos. -o tom suave, porém ameaçador faz com que Theodoro pare de caminhar e a encare.

Um frio na espinha me percorre com a troca de olhares frios e silenciosos entre os dois irmãos. Sinto-me no meio de uma guerra entre titãs e não sei o que fazer. Interferir está fora de cogitação, eu seria esmagada por qualquer um deles antes mesmo do primeiro round chegar ao fim.

Será que ainda dá tempo de fugir de fininho sem que ninguém veja?

-Não vai me apresentar a sua convidada? -Stella fica de pé e caminha como um gato sortuno em nossa direção. -Perdeu os modos por acaso, irmãozinho? -questiona com as mãos na cintura.

Jesus me ajuda! Eu vou correr!

-É claro que não, querida irmã. -o sorriso falsamente ensaiado no rosto de Coben me faz questionar que merda está acontecendo aqui.

Eu não estou entendendo mais nada. Que povo maluco!

-Isla essa é minha irmã Setlla. Stella essa é Isla, minha namorada. -e simples assim ele solta a bomba sem aviso.

-Namorada, Theo? Desde quando? -ela parece surpresa, mas logo volta a máscara de neutralidade de segundos atrás.

Quando Theodoro vai responde-la sabe-se lá o que, é interrompido pela mesma.

-Não importa. -ela faz pouco caso com a mão. -É bom conhecer você Isla...?

-Tibuco. -respondo.

-Isla Tibuco. -ela repete medindo-me da cabeça aos pés. -A garota que enfim conseguiu amarrar Theodoro Coben, o arisco capitão do time de lacrosse do colégio. Uau, isso é mesmo uma novidade surpreendente devo admitir.

-Stella... -Theodoro diz como um aviso.

-Calma, Theo. Não irei arrancar nenhum pedaço da sua misteriosa namorada a qual nunca vi na vida. -ela sorri docemente, mas eu não me engano. -Podemos quem sabe até bater um papo para nos conhecermos melhor. O que acha, Isla? -ela pergunta e eu busco ajuda ao olhar para seu irmão que aparenta estar tão perdido quanto eu.

-Está tarde, Stella. Porque não deixa para outro dia... -Theodoro começa com a desculpa, entretanto é ignorado.

Toma essa, otário! Está vendo na pele como é bom ser ignorado? Quando não te escutam ou ligam para sua opinião? Dói para caramba. Então sinta um pouquinho do próprio veneno, seu egocêntrico.

-A noite é apenas criança, Theo. Aposto que vamos nos dar muito bem em uma conversa só de mulherzinha. E você não está convidado, caso não tenha entendido o recado implícito. -Stella me puxa para seu lado como se eu já tivesse me decidido ir com ela e coloca um braço ao redor dos meus ombros como se fôssemos íntimas a esse ponto.

Não que eu vá contradize-la nesse momento. Eu não sou louca. Se até o irmão metido a machão dela não a enfrenta, não serei eu a fazê-lo.

-Enquanto nos conhecemos a gente aproveita e dá uma repaginada nessa sua aparência um tanto... digamos que ultrapassada. Sem ofensas, colega. -Stella se apressa em dizer, mas sei que ela não está nenhum pouco arrependida.

Theodoro me olha nesse instante como se realmente ponderasse aquilo como uma opção válida e razoável. "Por favor, não me deixe sozinha em um mesmo cômodo que sua irmã maluca!" É o que imploro com os olhos, mas o imbecil parece não se dar conta.

-Isso me parece uma boa ideia. Pode ir com ela se quiser, Isla. Vai ser legal mudar... os ares, antes da festa de sexta.

Otário! É o que quero gritar em sua cara, mas me contenho. Como se eu pudesse dizer não a algum dos dois... Seria o fim da picada! Um tiro no pé.

-Tudo bem. -minha voz soa estranha aos meus próprios ouvidos quando me ouço concordando e, como ovelha muda sou levada ao matadouro mais conhecido como o quarto de uma tigress.

* * *

Foram horas de pura tortura até que tudo acabasse lá pelas duas da madrugada. Não os cuidados de embelezamento em si, as duas profissionais que foram chamadas com urgência de última hora, coisa que só gente podre de rica montada na grana pode se dar o luxo de fazer, me trataram muito bem, como eu fosse uma verdadeira dondoca igual a Stella. O problema foi a sabatina intensa que sofri nas mãos de Stella enquanto era desmontada e recriada das cinzas em uma nova pessoa que eu não conseguia reconhecer diante do espelho a minha frente.

Me orgulho de ter sido forte o bastante para não revelar nada comprometedor antes de ter tido a conversa com Theodoro. Mas sei que Stella ainda está insatisfeita e não irá parar por aqui. Se tem uma coisa que esses Coben tem de sobra no dna é insistência. E sei que no momento certo ela voltará atacar. Paciência! Agora é esperar para ver.

-Vamos lá. Quero ver a cara de trouxa do Theo quando te ver. -ela pisca empurrando-me para a porta.

Essa mania danada que esse povo tem de me puxar e empurrar de um lado para o outro é muito irritante.

-Ok. -digo quando chegamos na sala de estar novamente e Stella grita pelo irmão.

-Pode dizer, eu sou incrivelmente demais, não sou? -ela me faz dar uma voltinha no momento em Theodoro aparece no alto das escadas.

Theodoro Coben me olha por duas vezes de cima abaixo como se para confirmar que se trata da mesma pessoa, e permanece mudo por longos segundos que mais se parecem uma eternidade.

-Você está... -ele pisca algumas vezes, e vem descendo vagarosamente as escadas observando-me sem quebrar o contato visual.

-Linda? -Stella se intromete e eu engulo em seco. -Eu sei, eu que fiz. Todos os créditos são meus é claro. -ela se gaba.

-Isso também. -ele concorda com a voz baixa. -Mas eu iria dizer loira. O que deixou que a doida da minha irmã fizesse com você, Isla? -ele pergunta preocupado enquanto prende meu rosto entre suas grandes mãos quentes e, eu sinto um frisson atingir minha medula até os ossos como um raio.

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