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Acordo em estágios, aos poucos. Primeiro me dou conta da claridade em meu rosto, para só depois perceber que minha nuca doía, graças a posição que estava meu pescoço.
Semicerrando os olhos, noto que o carro balançava um pouco de um lado para o outro, devido a estrada esburacada que estava com mato ao redor. Franzindo o cenho, tento decifrar que local era aquele mas, desisto após alguns segundos, olhando para Rafael, que tinha os olhos fixos na estrada.
- Para onde estamos indo? - pergunto com a voz rouca, não notando nenhuma alteração em sua expressão. Seus olhos continuavam focados e a única coisa de diferente que ele fez, foi passar a marcha - Rafael - Insisto, impaciente.
- Você precisa de um lugar para se esconder - Ele me olha por uma fração de segundo - Não é? - Sustento seu olhar, ainda não conseguindo decifrar aquele enigma.
Respiro pelos meus lábios entre abertos, engolindo em seco quando uma teoria surge em minha mente, que ignoro no mesmo instante, acreditando que ele não seria tão... drástico.
- Onde, Rafael? - pergunto novamente, dessa vez devagar e de forma intimidadora. Naquela altura, já estava começando a ficar irritada com todo aquele silêncio e suspense que Rafael estava me obrigando a passar.
Dessa vez, ele engole em seco e com um suspiro, ele me olha mais uma vez.
- Pra favela - Suas palavras pairam no ar por alguns instantes, talvez enquanto estou processando suas palavras e o significado que tinham para mim.
Quando um estalo ocorre em minha mente, me dou conta de qual favela em questão ele estava mencionando e me viro rapidamente para a porta.
- Para o carro - digo séria.
- O quê? - Ele pergunta confuso.
- Abre a porta, Rafael! - digo pausadamente, agora mais alto e claro.
Quando ele não obedece, simplesmente decido fazer isso eu mesma, puxo o freio de mão, fazendo com que o veículo brecasse bruscamente e meu corpo fosse para frente, quase batendo no painel. No mesmo instante, abro a porta do carona e desço do veículo, começando a andar na direção oposta que o carro que estava indo, em passos largos e decididos.
Eu não podia ir para aquela favela e achava que ele também já sabia disso mas, pelo jeito, ele havia se enganado por completo, pois estava me levando para o segundo último lugar que eu não queria ir naquele momento.
- Laura! - Ouço Rafael gritar em minhas costas, a medida que me afasto cada vez mais - Laura, para com isso!
- Para com isso você! - digo sem o olhar, batendo meus pés contra as pequenas pedras no chão, as sentindo machucar meus pés - O que você tem na cabeça?! Me levar justamente para lá!
Continuo a andar, ainda determinada para ir para algum lugar, só ainda não sabia qual lugar que eu iria, já que logo eu seria uma procurada da polícia, se já não tivesse. Minha cabeça girava, vários pensamentos brigavam entre si, exigindo minha atenção e não conseguia me concentrar em apenas um, não conseguia arrumar toda aquela bagunça.
Nos próximos passos, comecei a sentir as lágrimas começarem a queimar meus olhos e me odiei por isso, por demonstrar fraqueza justamente naquele momento. Não era algo que estava esperando de mim naquele momento, esperava que eu lidasse com toda aquela situação, que eu mesma havia me enfiado, da melhor forma possível, mas como? Como faria isso na situação que estava?
- Para!! - Rafael segura meu braço de repente, impedindo que eu continuasse a andar. Me viro para ele furiosa, o fuzilando com o olhar, esperando que ele não me impedisse mais e que me deixasse ir para qualquer lugar.
- Não! - digo com as lágrimas embaçando minha visão - Você sabe muito bem de tudo que aconteceu! - Acuso, ele suspira, olhando ao redor.
- Ele é a única pessoa que pode ajudar agora, não vê? E a favela era o único lugar que não tentariam procurar você - Balanço a cabeça de um lado para o outro, limpando bruscamente com força as lágrimas que começam a molhar meu rosto.
-... ele não vai me ajudar - digo baixo.
- Você não tem certeza - diz ele com a voz firme - Já passou tanto tempo, Laura. Tempo o suficiente para colocar uma pedra sobre tudo que aconteceu - Para algumas pessoas, era difícil simplesmente se desapegar do passado, o passado muitas vezes servia como combustível para continuar a viver.
Eu conhecia, talvez bem o bastante, o leão que Rafael achava que não iria me devorar. Mesmo passado tanto tempo, eu duvidava que ele não tivesse ressentimentos, muito menos que havia colocado uma pedra sobre tudo que aconteceu.
Naquele momento, me vi diante de um dilema, me entregar para a polícia ou enfrentar a única pessoa na face da Terra que me odiava com todas as forças. E eu preferia enfrentar a polícia.
- Vou me entregar para a polícia - digo com a voz firme, dando novamente as costas para ele, continuando a andar.
- Você não pode estar falando sério! - diz ele me seguindo.
- Não vou pra lá. Sem chance.
Ele solta o ar dos pulmões incrédulo.
- Você prefere ser presa e passar boa parte de sua vida atrás das grades? Se der sorte, né? Já que você pode correr o risco de morrer antes que saia de lá - Paro aos poucos de andar, imaginando aos poucos eu atrás das grades, precisando ter que conviver com outras mulheres que cometeram crimes semelhantes ou até mesmo piores.
Não precisava pensar muito para chegar a conclusão que a cadeia não era para mim e que eu não era uma assassina, mesmo tendo acabado de cometer um assassinado. Eu não me considerava uma assassina, e isto para mim, já era mais do que o suficiente.
Me viro para ele com meu rosto molhado de lágrimas, me sentindo completamente despedaçada. Afinal de contas, não tinha ninguém que pudesse contar, que pudesse me ajudar, além de Rafael e por causa disso, eu precisava confiar nele.
- Estou com medo - Balbucio. Ele encurta o espaço entre nós, me abraçando no mesmo instante, com força.
- Eu sei. E está tudo bem.
- Não está não - digo contra seu peito, com minhas lágrimas molhando sua camiseta - Eu matei uma pessoa. O meu marido!
- Você teve um bom motivo para isso, não teve? - Meus olhos se fixam no vazio, a medida que lembro de algumas partes da discussão que tive e em seguida do barulho estranho que o crânio dele fez. O mesmo arrepio que senti antes, me inundou novamente e me senti nauseada, quando o cheiro de sangue invade minhas narinas.
Me afasto de Rafael, limpando meu rosto, respirando pela boca, esperando que aquele enjoo passasse logo e que eu não vomitasse justamente naquele momento.
- Vamos logo acabar com isso - murmuro, Rafael passa o braço por cima dos meus ombros, me guiando de volta para o carro.
Demorou algum tempo para eu ser invadida por lembranças do passado, quando entramos na favela Brasilândia. Rafael havia entrado por outro acesso à favela, mas assim que o carro começou a entrar e sair de algumas ruas, o passado me atingiu em cheio e senti borboletas no estômago, como antes, mas não era por causa do que estava prestes a acontecer. Atribuía ao fato de que eu iria o ver novamente.
Depois de anos, iríamos nos ver novamente e eu não tinha ideia do que falaria para ele.
Passo minhas mãos suadas na saia branca que vestia, com respingos de sangue, me mantendo o mais calma possível, acreditando que o melhor seria deixar Rafael lidar com ele. O carro continuava a avançar pelas ruas, até que ele para em uma casa que era bastante familiar para mim e que foi palco de momentos que por um tempo eram os mais importantes para mim.
Rafael é o primeiro a descer do carro, o contornando, ele abre a porta do carona, esperando que eu descesse. Encaro o portão preto de ferro, me sentindo paralisada, o observando pegar chaves de seu bolso e destrancar o portão. Respirando pelos meus lábios entre abertos, saio do carro e decido seguir Rafael, notando o quanto as coisas mudaram do lado de dentro daquele portão. Já não tinham as cores de antes e claramente havia passado por uma boa reforma.
- Christian! - Rafael chama antes mesmo de chegar na porta - Christian! - Insiste, quando não obtém resposta.
- Não estou surdo ainda não! - Quando ouço sua voz se aproximando, meu coração acelera em meu peito rapidamente, batendo de forma desregulada - Por que toda essa gritaria? - Ele questiona, parando na porta em nossa frente, seu olhar inicialmente pousando em Rafael, para só então me notarem ali parada, a poucos passos de Rafael, com uma expressão assustada estampada em meu rosto.
Percebo quando o maxilar de Christian tenciona. Engolindo em seco, me arrisco em quebrar aquele gelo.
- Oi, Christian - murmuro.
