Capítulo I
Lembranças
Sentei em minha poltrona em mais uma vã tentativa de iniciar um diário, coisinha esta que me deixava impaciente, entretanto, fora uma ideia dada por minha tia, para que eu me livrasse dos sentimentos ruins quanto à morte dos meus pais. Olhei janela afora cerca de seis vezes até completar a primeira frase. O assunto me trazia calafrios.
"Hoje faz seis anos que perdi meus pais em um acidente de carro. E após todo esse tempo de horríveis pesadelos todas as noites, choro, tristeza, e muita, muita dor , eu me considero um pouco mais recuperada. Dizem por aí que falar sobre tragédias as atraem, por isso este é um assunto o qual eu evito, desejo todos os dias e noites que tragédias como essa não ocorra novamente, desejo nunca mais ter que sofrer dessa maneira e passar por todo o horror de uma perda repentina."
Nem sempre nossos desejos são atendidos .
Respirei fundo e permiti que o ar noturno que atravessava a janela aberta, enchesse meus pulmões. T ente se distrair. Eu ouvia essa frase diversas vezes e a carregava como uma espécie de mantra. Pense em outra coisa agora...
Beto me acompanharia no dia seguinte até a casa da coordenadora para entregar as fichas do acampamento anual do colégio. Fiquei encarregada de or ganizar pequenos detalhes, como pegar as fichas de inscrição e levá-las à Sra. Clarice . Ouvi o telefone tocar no andar de baixo e instintivamente desejei que não fosse uma nova tarefa.
-Alô
-Alice?
Sim...
-É o Beto. Sabe, resolvi que vou te acompanhar no acampamento.
-Hum... quando decidiu isso?
-Ontem a noite, acho que será melhor você não ficar sozinha.
-Não precisa se preocupar comigo - minha voz saiu entrecortada devido à tensão do momento.
-Mas me preocupo. Sou seu único amigo, não quero que fique lá sem ninguém.
-Você não precisa ir se não quiser, de verdade, não vou me importar . E o ensaio com a sua banda?
-Os meninos adiaram o ensaio, querem ir também. Por que tantas per guntas? Não quer que eu vá?
-Não é isso... - limpei a garganta enquanto pensava em como me explicar - Só não quero atrapalhá-lo.
-Não se preocupe, não está me atrapalhando... Alice, você nunca é um incômodo, sabe disso.
-Tudo bem, já entendi. Agora preciso desligar, sabe como é... estou cheia de responsabilidades para amanhã. Vou dormir.
-Tá bom, tchau. Ah! antes que me esqueça... vai querer minha companhia ao final da aula até a casa da Sra. Clarice?
-Se você não tiver mais nada para fazer.
-Faço questão de te acompanhar.
-Ótimo.
-Bom... Então boa noite. Até amanhã.
Até.
Não saberia explicar mesmo com muito esforço, esse misto de adrenalina e encantamento que sinto quando o Beto me liga no meio da noite para alguma demonstração de carinho e cuidado. Mesmo que eu não estivesse apaixonada por ele, não, jamais, ele era o meu amigo desde o jardim de infância, e não imagino o cuidado e o carinho dele com segundas intenções. Então antes que eu me perdesse em mais devaneios ilógicos, decidi que já era hora de dormir.