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Capítulo II

Os pesadelos retornam

Quando o despertador tocou, acordei suada e com o coração acelerado. T ive pesadelos outra vez, os quais sequer me lembrava. Há muito tempo eu havia os deixado para trás, mas naquele dia resolveram fazer uma surpresa, tirando o meu sossego como de costume. Após alguns minutos no banho e o mesmo percurso de sempre, cheguei à escola.

Na entrada, lá estavam as pessoas as quais eu convivia há anos, e no início do corredor ... isso mesmo, o Beto. Me esperando e apontando para o relógio, como um pai quando sua filha chega tarde em casa.

-O que foi agora? - Beto perguntou, andando em minha direção, com sua calça preta cheia de pequenos rasgos no joelho. Era o terceiro dia consecutivo que ele a usava, observei ligeiramente.

-Dá para parar? - disse, furiosa, enquanto tirava alguns fios de cabelo do meu rosto levemente suado.

-Calma Alice, só estou brincando. Mas por que tanta demora?

-Por que se importa tanto? Eu demorei no banho, acordei assustada, tive pesadelos... - suspirei lembrando-me deles - Enfim.

-Como os de antes? Pensei que tinham acabado...

Parece que resolveram me assombrar novamente.

-V ai passar, fique tranquila... Acho melhor sentarmos lá fora. Perdemos o primeiro horário - disse ele segurando meu braço.

-Perdemos? Se você estava aqui o tempo todo, por que não foi para a aula? - o encarei.

-Não queria que perdesse o horário sozinha.

Um suspiro foi a única resposta que encontrei após ver naqueles olhos esverdeados, tamanho carinho e bondade.

-Às vezes não entendo suas atitudes.

-Alice, você é minha melhor amiga. – disse ele, tirando mais alguns fios de cabelo que caíram sobre meu rosto.

Melhor amiga, pensei, era ainda mais claro agora, era apenas assim que ele me via. Deveria estar feliz, mas ao ouvir essa frase, meu coração foi invadido por uma onda de insatisfação, só queria expulsar esses sentimentos de mim, e não permitir que minha mente voltasse a confundir nossa amizade com qualquer outra coisa.

-Olha, me desculpe. Eu sei que sou uma idiota às vezes, principalmente quando se trata do seu cuidado... é que eu realmente não compreendo, parece que você está tentando ser meu pai. – disse, em um tom brando, tentando fazê-lo compreender.

-Não Alice, claro que não! É que nos conhecemos há tantos anos, eu estava lá quando... – o interrompi.

-O "quando" se refere à morte dos meus pais?

-Sim. Sei que não gosta desse assunto. Me desculpa. Ando pegando no seu pé ultimamente, mas, é que eu sinto como se tivesse que protegê-la sempre.

O abracei, abracei o Beto com todas as minhas forças, abracei-o com meu coração, onde ele sempre estaria. Naquele momento eu senti em seu abraço, uma paz fora do comum, senti o calor de alguém que sempre estaria ao meu lado, não importa o que acontecesse.

Vamos esperar lá fora - falei, após me desvencilhar de seu abraço.

-É... – disse ele, que agora parecia pensativo.

• • •

Ao chegar à sala de aula, me deparei com uma figura diferente, provavelmente uma aluna nova. Ela se vestia de modo estranho, usava botas pretas, calças jeans rasgadas e desbotadas e talvez umas duas blusas de cores diferentes, preta e azul. Ambas cobertas de acessórios como caveiras, zumbis e alguns símbolos. Apesar do estilo incomum, a garota tinha uma beleza nunca vista antes na escola: cabelos loiros e incrivelmente brilhantes, um corte incrível que ressaltava seu rosto simétrico, olhos azuis bem claros e um nariz de boneca. Ao seu lado, a mesma imagem, figuras idênticas, porém, com estilos diferentes, a garota estranha tinha uma irmã gêmea, entretanto, gêmea apenas em aparência, pois seus estilos e provavelmente personalidades deviam ser completamente opostas. A outra gêmea se vestia de um jeito básico e mais adequado ao ambiente em que estava, calças jeans e uma blusa simples, azul clara, sapatilhas, e um colar dourado, nele, um pingente com a letra A. Ela me passava a imagem de uma garota tranquila e centrada, o oposto de sua irmã, que parecia aquelas meninas que estão sempre envolvidas em confusão. Minha primeira impressão quanto a gêmea esquisita não foi das melhores.

Após observá-las um tempo, eu sentei em meu lugar de costume. Beto à minha frente também se mostrava curioso quanto às meninas. Ao meu redor toda a sala em seus grupinhos, cochichando e olhando para elas, a de estilo chamativo com certeza era a que mais dava o que falar. Aos poucos pude ouvir diversos comentários do tipo "Nossa, que garota estranha" ou "Que roupa maluca." Após uma pausa nos cochichos, a professora resolveu apresentar as novas colegas.

-Alunos, receio que já tenham visto as meninas que acabaram de chegar aqui na escola, e ficarão pelo resto do ano letivo conosco. Seus pais acabaram de chegar na cidade, são gêmeas, como já perceberam... A de blusa azul é a Ana Hoffmann, e a de blusa preta é a.... - a professora franziu o cenho enquanto tentava se lembrar - Elisa! - exclamou com mais entusiasmo do que pretendia - Meninas, quero que sintam-se à vontade nessa escola, espero que esse lugar seja um lar para vocês.

-Obrigada. – As duas responderam em uníssono.

Também gostaria que estivessem atualizadas quanto às nossas programações, como o acampamento que teremos amanhã, dia 23. A maioria dos alunos já colocaram seus nomes na lista, mas creio que ainda há vagas para vocês duas. Hoje é o último dia, falem com a Alice, ela está logo ali. – orientou a professora, apontando para mim.

Após a rápida apresentação, nos dividimos em grupos para a or ganização do trabalho que apresentaremos na semana que vem. Almoçamos na escola, pois, naquele dia em especial, teríamos aulas à tarde.

Ao final da aula, Ana veio falar comigo.

-Oi, tudo bem? - Perguntou com um sorriso simpático.

-Tudo, e com você? Prazer em conhecê-la - respondi apertando a sua mão.

-Eu queria saber mais sobre o acampamento - disse Ana.

-É amanhã. O ônibus da escola nos busca em nossas casas, e vamos até o local do acampamento. É um lugar lindo com um lago enorme onde ocorrem algumas competições, temos uma programação bem divertida com jogos, fogueira, essas coisas de acampamento... – mostrei algumas fotos em meu celular – Esse foi o do ano passado, todos da escola foram, foi bem animado.

-Que legal. Eu gostaria de ir.

-Vou te dar um formulário para preencher. Sua irmã também quer?

-Sinceramente não consigo imaginá-la participando, ela não gosta muito dessa coisa de... - Ana gesticulou enquanto procurava a palavra certa - Socialização – disse, completando a fala com uma risada curta.

-Ah, entendo... É uma pena porque eu tenho certeza que ela iria gostar do nosso passeio. V ou tentar convencê-la.

-É, não garanto que consiga. Mas tente. – respondeu com um semblante alegre.

Olha, aqui está o formulário, você deve preencher e me entregar o quanto antes, tenho que levar à casa da coordenadora, daqui a pouco. É bom dar uma lida aqui em cima, pois tem uma pequena lista do que você deve levar.

-Tudo bem, então preencho e te entrego agora mesmo.

-Ótimo.

Esperei Ana terminar de preencher sua inscrição, organizei as fichas em uma pasta e fui procurar o Beto. Para a minha surpresa, ao seu lado estava a outra aluna novata, Elisa. Ela o olhava fixamente e ria de algumas piadas que ele devia ter contado. Pensei que a esquisita não fosse sociável.

-Ah, oi Beto, estava te procurando.

-Oi Alice, essa é a Elisa... - disse ele, um tanto assustado com minha chegada inesperada, e, ainda se recuperando de algumas últimas risadas de sua conversa com ela.

-É, eu sei, a professora nos apresentou.

Sei que não fui simpática, mas de um jeito inexplicável, eu sentia ciúmes e não entendia o porquê do Beto estar ali, sem sequer ter me procurado quando a aula acabou.

-Oi, prazer em conhecê-la - disse Elisa.

-Prazer em conhecê-la também – falei em um tom levemente ríspido, observando aqueles olhos azuis cobertos de delineador preto.

-Elisa, agora eu preciso ir , prometi à Alice que a ajudaria a levar as fichas de inscrição para a Sra. Clarice. Mas foi ótimo conhecê-la, você é muito divertida.

-Foi ótimo te conhecer também Roberto... aliás, você vai ao tal acampamento?

-Vou sim, e você, pretende ir?

-Eu não estava muito animada, mas agora que te conheci, acho que será bem legal.

E Elisa sorriu para mim também. Um sorriso inocente mas que ao meu ver pareceu uma provocação. Mas por que ela me provocaria? Eu e ele éramos visivelmente apenas amigos.

-Se quiser ir mesmo, precisa se inscrever agora. – disse ele, virando-se para mim para pegar uma ficha.

-Claro... - me contive como nunca, mas a minha vontade era gritar um sonoro não, e impedir que ela fosse e passasse mais tempo com ele.

-Elisa, esse é o formulário, tente preencher o mais rápido possível, porque eu preciso entregar as fichas agora. Tem algumas informações aí, sua irmã já leu, então para não me atrasar é melhor perguntar a ela.

-Tudo bem.

Minutos depois ela me entregou o formulário, coloquei o último na pasta e puxei o Beto pela camisa, sem nem mesmo dar tchau à garota ou permitir que ele o fizesse.

•• •

No caminho para a casa da Sra. Clarice, ambos permanecemos calados, o silêncio era tão profundo que eu podia ouvir sua respiração, um tanto ofegante devido à caminhada. Resolvi puxar conversa.

-Então... - tentei pensar em uma maneira menos direta de chegar ao assunto, ora olhava para os cadarços do meu sapato, ora para a rua à nossa frente. Decidi pelo modo direto, nosso nível de intimidade me deixava à vontade o bastante para isso. - Como começou a conversar com aquela garota?

-Ela estava sozinha no canto do pátio, parecia excluída, pensei que seria legal conhecer alguém.

-Ah, você como sempre muito bondoso.

-Acabei descobrindo que ela é uma ótima pessoa. Muito engraçada. V ocê deveria conhecê-la também.

-Legal. - Foi apenas o que eu disse, mas não foi o que queria ter dito. Nem forcei um sorriso para parecer de fato animada com a nova amiguinha que ele havia feito, acredito que o Beto tenha notado que eu estava insegura.

-Alice... eu só...

-Beto, você não me deve explicações.

-Só não quero vê-la assim.

-Assim como? Eu estou bem, não está vendo? - forcei um sorriso, não queria mesmo que ele se preocupasse mais.

-Tudo bem.

Refleti alguns segundos em tudo aquilo, e no porquê de ter ficado tão insegura, senti tanto medo de pensar em não tê-lo mais em minha vida o tempo inteiro, imaginar isso era tão nauseante que interrompi meus pensamentos rapidamente. Depois de alguns passos e um silêncio inquebrável, chegamos à casa da Sra. Clarice.

Entreguei as fichas de inscrição e observei que a da Elisa estava na extremidade da pasta, e com a maior facilidade poderia ser tirada dali sem que ninguém percebesse, me contive, pois não fazia o menor sentido, precisava controlar imediatamente essas emoções insensatas. Eu, Alice, era sempre racional, e deveria continuar cultivando esse hábito. No caminho de volta para casa, Beto resolveu me levar até a porta.

-Obrigada, nos vemos amanhã no ônibus para o acampamento.

-Nos veremos sim. Se cuida.

-Você também.

Nos despedimos com um abraço que, por minha causa, foi mais demorado do que o normal, abracei-o como se fosse uma despedida definitiva. Depois olhei em seus olhos, e senti um ímpeto desejo de dizer alguma coisa, mas não saiu som algum de minha boca. O que eu queria dizer , não foi dito. A verdade é que nem eu mesma sabia o que queria falar , ou se o deveria. Ele me olhou fixamente após nosso abraço, deu um de seus sorrisos maravilhosos que sempre me deixavam mais feliz, sem motivo algum, e foi embora.

•• •

Subi as escadas lentamente, pois estava muito cansada. Cansada dos preparativos para o acampamento, das idas e vindas à casa da Sra. Clarice, da semana exaustiva pedindo aos alunos para preencherem logo suas fichas, e de tantos pensamentos perturbadores que me afligiam, somados aos pesadelos que retornaram após anos, sem qualquer motivo aparente. Ao menos o fim de semana finalmente chegara, e logo eu estaria no acampamento me divertindo com o Beto e com as poucas meninas que eu conversava. Deitei em minha cama e aos poucos pude ouvir o barulho dos passos da tia Elizabeth subindo as escadas, me senti um tanto culpada por não ter avisado que havia chegado, mas eu estava realmente exausta. A porta se abriu e a tia Elizabeth entrou com uma expressão assustada.

-Alice, minha querida, fiquei preocupada com você, demorou tanto para chegar! E nem sequer me avisou. - disse tia Elizabeth com os olhos arregalados e com as mãos no peito como faz de costume quando está apreensiva.

-Desculpe, tia, eu demorei porque tive que entregar as inscrições do acampamento na casa de uma das coordenadoras da escola. Não se preocupe, Beto foi comigo. Eu não te avisei porque cheguei muito cansada... Também me esqueci de avisar que hoje teríamos aula à tarde, me desculpe.

-Tudo bem meu amor , seu rosto está pálido e cansado mesmo. Mas você precisa me avisar quando for demorar... já viu esses noticiários na televisão? Ontem uma garota foi encontrada morta em um terreno próximo à escola onde estudava, quanta barbaridade! Imagine se algo assim acontece a você, Alice...

-Tia, já disse que é melhor não assistir a esses noticiários, você fica totalmente paranoica. - falei enquanto me levantava para guardar a mochila que havia jogado no chão, quando cheguei. Ela detestava esse velho hábito.

-E com razão! Olha quanta coisa ruim está acontecendo... meu Deus... meu Deus – tia Elizabeth disse reflexiva, enquanto fechava a janela.

-Me desculpa, prometo que vou avisar. –falei tentando confortá-la.

-Tudo bem, te perdoo dessa vez. Agora vamos descer , você está com uma carinha abatida, precisa de uma boa refeição, e um bom banho. Fiz uma torta de limão maravilhosa para a sobremesa.

-Tá bom, tia. Vou tomar um banho rápido e descer.

-Te espero lá embaixo.

Me dirigi ao banheiro, tomei o banho mais rápido que pude, para que tia Elizabeth não viesse outra vez ao meu quarto. Ela tomava conta de mim desde que meus pais faleceram, e eu sentia uma imensa gratidão por ela ter me acolhido, me dado um novo lar e me ajudado a superar a perda, mas confesso que às vezes, a convivência era muito difícil. Tia Elizabeth é viciada em tragédias - está sempre assistindo aos noticiários policiais e acompanhando todo tipo de crime horrendo - E isso a deixa paranóica e pessimista quanto a tudo. É muito protetora, e demasiadamente preocupada com qualquer coisa que diz respeito a mim.

Após o banho desci às pressas e comi a torta que estava de fato maravilhosa. Deitei em minha cama mais uma vez e comecei a pensar nos acontecimentos do dia, e como já esperava... pensei no Beto. Em sua possível futura amizade com Elisa e, é claro, tentei expulsar esses pensamentos o mais rápido possível. Eu provavelmente estava muito sensível, TPM, talvez, não costumava ser dramática assim. Revirei na cama algumas vezes até que finalmente adormeci mais cedo do que o normal. Tive outro pesadelo. Mas este me lembrei no dia seguinte.

Eu estava no lago escuro do acampamento, afundando, e gritava pedindo ajuda, mas não estava desesperada por isso, e sim porque precisava contar alguma coisa. Mas o segredo que eu queria desesperadamente estar viva para revelar, não me recordei no dia seguinte. Levantei mais uma vez suada e com o coração acelerado, depois deixei que o alívio de estar em minha casa e não em um lago frio, invadisse meu corpo aos poucos.

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