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Capítulo IV

Desfazendo uma primeira impressão

A chamada foi feita, os outros alunos não puderam deixar de notar o quanto Elisa estava bonita naquela noite. Seria legal me conformar que há milhões de motivos para o Beto gostar dela, e que se caso ele quisesse algo a mais com a menina que chamava a atenção de todos os rapazes da escola, eu deveria aceitar , afinal não posso fazer nada quanto a isso, apenas desejar sua felicidade, como sempre desejei.

Passadas algumas horas de conversas eufóricas ao redor da fogueira, e de prováveis casais sendo formados - como acontecia em todos os anos - ouvimos as histórias de terror contadas pela Sra. Clarice, que coordenava toda a programação do acampamento, repetia as mesmas todo ano, então comíamos alguns salgados e ríamos da expressão falsamente espantada de todos.

Quando enfim o momento da fogueira terminou, as outras coordenadoras nos deixaram livres para andar em volta do lago e conversar. Podíamos ficar até à meia-noite e meia, passeando pela área dos chalés, depois deveríamos entrar. Elisa resolveu convidar o Beto para uma volta pelo lago, que aceitou, é claro, mas o mesmo, ao notar que eu havia ficado para trás, resolveu vir falar comigo.

-E aí, como você está? - disse ele.

-Bem... e você?

-Ótimo. O acampamento está mais animado este ano.

-É, eu percebi. Principalmente para você, não é mesmo? – disse rindo, para que ele não notasse algum tipo de pretensão na pergunta.

-Por quê?

-Ah Beto, para. Você acha que não te conheço? Não se faz desentendido.

-Está falando da Elisa? Acho que ela não quer nada comigo.

-Claro que quer.

-Ela te disse alguma coisa? – ele perguntou, muito interessado.

-Não exatamente. Mas dá para perceber.

-E o que você acha?

Deveria dizer o que eu realmente achava? Que não gostava dela? Que havia algo sinistro do seu jeito que me incomodava e me passava uma impressão ruim? E se eu dissesse tudo isso, ele acharia que eu só estava com ciúmes? Daria crédito às minhas observações? T antas perguntas encheram a minha mente em poucos segundos, que eu não soube ao certo como processá-las.

-Eu acho que deveria seguir seu coração – disse finalmente – Se você gostou dela, deveria tentar.

-Vou sair com ela agora, se acontecer algo, te digo.

-É claro – é claro que eu não queria saber. Mas não estragaria esse lindo momento romântico e feliz na vida do Beto. Se ele estava feliz, eu também deveria estar.

Não sabia o que fazer, tentava lutar contra o que estava sentindo, então olhava para o Beto e seu ar inocente, para aquele rosto que estava comigo durante tantos anos. O observei de longe, caminhando ao lado de Elisa, e ela parecia mesmo interessada e encantada por ele. Era recíproco. Naquele momento eu percebi que não deveria interferir, era a felicidade dele.

Andei sozinha pela área do acampamento evitando pensar no mesmo assunto o tempo inteiro. Encontrei Ana sentada em um banco próximo à fogueira já quase apagada.

-Ei... - me aproximei devagar - Está gostando do acampamento? – perguntei.

-Oi! Sim, estou gostando muito. Conheci as duas meninas do seu chalé, Raquel e Charlote.

São bem legais. E a parte da fogueira, eu adorei! – disse animada.

-Que bom que está gostando. Eu também adoro as programações do acampamento.

-Conheceu a Elisa?

-Sim... Ela é legal, está no mesmo quarto que eu.

-É, fiquei sabendo. Sinto muito por você. – disse com uma risada em seguida.

-Por quê? –perguntei curiosa.

-Ah, a Elisa é uma pessoa bem difícil de lidar. Nós duas não temos uma boa relação.

-Que triste... Sempre quis ter uma irmã, para que pudesse ter uma amiga comigo o tempo inteiro.

-Meus pais também pensavam que seria assim. Mas a Elisa não colabora mesmo...

-Nossa, que chato.

-Sim... É uma longa história.

-Quer conversar sobre isso?

-Quem sabe uma outra hora. Que tal amanhã à tarde? T enho que voltar ao chalé, meus pais pediram para ligar para eles nesse horário. Os seus também são preocupados assim?

Aquela velha tristeza invadiu meu coração.

-Os meus pais faleceram.

-Nossa, me desculpe. Eu sinto muito. – disse Ana muito desconcertada.

-Não, fica tranquila. Eu já me acostumei. - forcei um sorriso para que ela se tranquilizasse.

-Alice, me desculpe mesmo. Fui tão indelicada.

-Calma Ana, está tudo bem... Então fechado. Amanhã à tarde te procuro para conversarmos.

Depois que Ana se despediu e se dirigiu ao seu chalé, de número nove, fiquei sentada no banquinho observando o lago. Seria mesmo maravilhoso se meus pais estivessem vivos, e me cobrassem uma ligação naquele momento. Pensar na ideia me entristeceu, mas sabia que não deveria chorar ou mesmo me abater por isso, pois os mesmos, quando vivos, me criaram para ser uma garota forte, que enfrenta as situações ruins, e era exatamente isso que eu fizera durante toda a minha vida.

Fiquei um bom tempo sentada, presa aos meus devaneios, pensando em meus pais, em minha vida, e em como gostaria de estar conversando sobre isso com o Beto agora. Lembrei do que Ana dissera sobre Elisa, e sobre a mágoa que parecia guardar da irmã. Senti uma súbita curiosidade em saber qual seria a longa história que Ana não poderia me contar naquele momento.

Já se aproximava das meia-noite e meia, resolvi chamar Elisa para entrarmos antes que perdessem a hora. As regras no acampamento eram rígidas, e é trabalhada a nossa união, precisamos entrar juntas no horário correto. Se alguém desobedecer ao horário, todas as outras também são punidas. A punição geralmente é fazer alguma tarefa relacionada à limpeza, como lavar a louça no refeitório após o almoço, por exemplo.

Quando me aproximei das redondezas do lago, avistei Elisa e Beto juntos sentados na grama, eles estavam abraçados. O que me causou ciúmes, é claro, mas prometi a mim mesma que não deixaria me levar por essas sensações. Não sabia se deveria chamá-la e interrompê-los, eles pareciam muito entretidos. Esperei alguns minutos até que eles se levantaram e começaram a andar em minha direção.

-Precisamos entrar? –perguntou Elisa

-Sim, e é melhor que Raquel e Charlote já estejam lá dentro. –respondi.

-Tudo bem. Tchau Beto, nos vemos amanhã.

E eles se despediram com um beijo rápido. Que eu assisti impacientemente. Dei um último abraço no Beto e acenei.

No rápido percurso do lago até o chalé, ficamos quietas. Não sabia identificar o porquê daquele silêncio constrangedor, será que ela podia perceber que eu havia ficado com ciúmes?

Quando abrimos a porta do chalé, Raquel e Charlote não estavam lá. Elisa olhou impaciente em seu relógio.

-Droga, já são meia-noite e vinte e cinco, e nem vimos as duas perto do lago.

-Não quero me prejudicar por causa delas. Precisamos procurá-las - falei depressa.

-Acha que conseguimos achá-las e voltar para cá dentro de cinco minutos? –Elisa perguntou. - Precisamos tentar. – respondi inquieta.

Andamos por toda a área dos chalés e do lago, mas não as encontramos. Decidimos então nos separar, eu olharia o refeitório, e ela, a sala de jogos. Quando nos encontramos, ainda não havia qualquer sinal de Raquel e Charlote. Não nos restava outra escolha senão procurá-las pela região da floresta. Entramos em um pequeno bosque próximo ao lago e começamos a gritá-las. Ouvimos sussurros de uma conversa um pouco distante, seguimos a direção dos sons, e depois de caminhar mais um pouco, finalmente as achamos. E lá estavam elas com cigarros e bebidas, sentadas na grama, iluminando a escuridão do bosque com uma lanterna.

Raquel fumava tranquilamente como se não pretendesse sair dali tão cedo, e conversava com Charlote sobre suas desilusões amorosas. Charlote parecia ligeiramente alterada, trocando as pernas enquanto andava tonta atrás de uma árvore para se escorar , com um copo na mão, talvez o seu quinto ou sexto. Elisa e eu observamos de longe, incrédulas. Nos entreolhamos por alguns segundos e decidimos intervir.

-Sério... qual o problema de vocês? – per guntou Elisa com as mãos na cintura e olhando para elas com fúria.

Raquel nos olhou assustada e Charlote mal conseguia levantar seu rosto para ver o que estava acontecendo.

-Vocês sabem que temos horário para voltar. Se a Sra. Clarice for averiguar o nosso chalé e vocês não estiverem lá, todas nós seremos punidas – falei tentando parecer brava o bastante para amedrontá-las.

-E se isso acontecer, vocês terão um grave problema comigo. –ameaçou Elisa.

-Não sei se consigo voltar - disse Charlote com dificuldade.

-Vou te ajudar. Mas precisa nos prometer que não vai fazer barulho e chamar atenção até chegarmos no chalé – disse eu me aproximando de Charlote, para ajudá-la a se levantar.

Elisa e eu carregamos Charlote até o chalé, lhe passando sermões durante todo o caminho. Raquel ficou encarregada de sumir com os cigarros e as bebidas para não levantar suspeitas. Quando chegamos, Elisa se prontificou a dar um banho em Charlote e colocá-la para dormir . Depois de mais algumas broncas, as duas se desculparam e adormeceram. Elisa e eu ficamos na varanda, exaustas.

-Que sorte Clarice não ter nos pegado – disse ela.

-Sim, ela deve estar ocupada com os outros chalés. Obrigada por me ajudar com as meninas.

– falei

- Não precisa agradecer. Somos um grupo. –disse Elisa sorrindo para mim.

Retribuí o sorriso, e ficamos na varanda conversando por alguns minutos até que decidimos entrar para dormir . Ao me deitar, pensei nos últimos acontecimentos, talvez eu estivesse enganada sobre ela. Elisa agora já não me parecia aquela pessoa tão horrível como imaginei que fosse inicialmente. Talvez Ana fosse só exagerada. Acreditei que Elisa devia mesmo ser legal, afinal de contas, o Beto se apaixonou por ela. E ele sempre distingue muito bem pessoas boas de pessoas ruins.

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