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· · • • • Cena I ◗●◖ Cale • • • · ·

Sangue.

Tinha sangue em toda parte.

Em seus cabelos escuros, em seu rosto pálido. Havia sangue até mesmo em suas mãos, na verdade... havia principalmente em suas mãos.

Elas tremiam.

Seus olhos doíam e ardiam.

Ele tinha feito aquilo?

Todos estavam mortos e o olhar vazio de Cale passou de corpo em corpo. Cadáver por cadáver.

Um por vez.

— Por que não falam mais? — Questionou, os lábios se movendo tão devagar que parecia quase irreal, quase como uma pintura que se move no escuro.

— Tinham tanto a falar... — resmungou, a ponta da espada que segurava com a mão cortada, apertando contra o cadáver de sua mãe — não está mais decepcionada, mamãe? Hum? Não me acha um fracasso? Olha... eu sou realmente louco.

Sorriu.

Um sorriso sem vida e sem vontade alguma. O sorriso de alguém que havia desistido.

Cale estava cansado.

Seu corpo parecia prestes a ceder, mas o fedor de sangue ainda o incomodava. O incomodava demais para se permitir cair ali, para se permitir morrer junto àquele banco de inúteis.

Sim.

Inúteis.

Aquele bando de vermes que por tantos malditos anos o perturbaram.

Cale se recordava de cada riso, de cada palavra de escárnio e principalmente de como aquelas mulheres que se diziam suas primas - insistiam em tocar nele. Em deixar claro que ele era um "adulto".

Nojo.

Tudo que sentia por aqueles insetos era nojo.

Havia enlouquecido, certo? Ele os tinha matado, os tinha feito em pedaços e por um momento no relance que se viu ao espelho, pode jurar que seus próprios olhos eram carmins como o sangue que corria por suas mãos.

Carmim. Como se dizia na maldição.

Sim. Ao menos fazia um pouco de sentido. Ele era amaldiçoado.

Todos eles eram.

Sorriu, um sorriso fraco e quase verdadeiro antes de desmaiar naquele corredor que levava ao seu quarto.

Bastava.

Ser louco, amaldiçoado e certamente um assassino - bastava para que a rainha tirasse enfim a sua pobre e desgraçada vida.

Ao menos foi o que o confortou, o confortou até a manhã seguinte, até despertar em aposentos luxuosos, em vestes nobres.

— Arquiduque Lestrad, como tem estado? — a voz da rainha fez seus ossos gelarem.

— Majestade... — sua voz parecia rouca demais, como nos dias em que o prendiam na masmorra com os ratos que tanto temia.

— Uma verdadeira tragédia — a rainha simplesmente continuou — pobre de sua família, sendo o último a restar de sua linhagem... como se sente? Que pergunta tola, não precisa me responder — um imenso sorriso surgiu — apenas descanse, minha criança. O nome Lestrad irá continuar com você e eu farei de tudo para que encontrem quem causou tal infortúnio a sua prestigiada e amada família.

"Eu", queria dizer.

"Eu os matei, atravessei minha lâmina em cada um. Eles gritaram, imploraram e sorrindo... eu continuei!"

— Majestade... — abriu a boca para falar, confessar, mas o olhar da rainha era severo enquanto ela sorria.

— Melhor se calar, jovem Lestrad. O senhor ainda está abalado, apenas descanse e pense muito bem em seu futuro. O senhor é um dos pilares do nosso reino e eu odiaria ter que lidar com algo inconveniente como... perdê-lo.

Ah!

Ele encarou o teto.

Não havia essa opção outra vez.

Não poderia morrer.

Era isso que a rainha dizia, era isso que estampava em sua testa.

"Viva, Cale Lestrad. Viva e seja obediente, um obediente cão para vossa majestade".

Mordeu o lábio com força.

— Sim, minha senhora... — murmurou — irei tomar esse tempo para me recuperar.

⋅• ◗●◖ •⋅

Por 19 dias o Arquiduque foi deixado no palácio imperial, aos cuidados do médico da rainha ele se viu muito bem cuidado e após seu descanso - retornou a sua casa.

Uma versão da mansão Lestrad onde nem mesmo uma gota de sangue podia ser vista.

A tapeçaria havia sido mudada, as camas, os móveis. Não havia nem mesmo um pequeno sinal das mortes, dos corpos, da dor que todos aqueles seres o infligiram.

Cale sorriu.

Era tão fácil assim apagar o início da sua loucura? Então por que nunca era fácil quando se tratava de salvá-lo?

Seu peito doeu com a ideia, mas um homem que beirava seus 70 anos pigarreou.

— Senhor Lestrad.

— Diga, Veiner — suspirou, não era de se surpreender que a rainha o houvesse mandado para espionar.

— Apenas queria lembrá-lo de que o funeral de sua família será hoje às 16:00. O senhor deve comparecer.

"Certo", pensou.

Não era um pedido ou aviso. Era uma ordem.

Tinha que manter as aparências. Tinha que manter aquela visão de realidade absurda.

A visão de que a maldição de sua família era boato. A visão de que os Lestrad - assim como qualquer outra família nobre -, era unida, se amava e cuidava, mesmo que aquela simples idéia fizesse seu peito doer e seu estômago embrulhar.

Quando Cale tinha sentido amor vindo de sua família?

Quando alguém ali o tinha acolhido?

A resposta era tão simples e singela que chegava a ser dolorida.

Nunca.

Suspirou.

— Vou me trocar e estarei pronto com 20 minutos de antecedência — se viu respondendo com certo clamor.

Era sua última vez servindo aquelas pessoas.

Era sua última vez obedecendo daquela forma.

O seu próprio reflexo no espelho era como uma nuvem do que um dia já foi, mas quem poderia se importar? Não havia mais ninguém.

Sorriu.

Uma tarde clara, que se tornou nublada assim que seus pés tocaram o solo do cemitério.

Era um domingo, não era?

Suspirou.

Meia dúzia de palavras foram jogadas fora, ele fingiu chorar e então todos se foram.

— A carruagem o aguarda — Veiner disse, a mão atrás das costas como gesto de cortesia.

Cale suspirou, sua memória era ruim, mas ainda se recordava da vizinhança, do lago.

Um lago pequeno, quase moribundo, em frente a uma igreja ridícula que possuía um vitral bonito.

— Eu vou andando, quero caminhar.

Os olhos do senhor se arregalaram.

— Senhor Lestrad... sua mansão fica à 2 horas de carruagem...

— Eu irei caminhar — insistiu — quando desejar retornar a minha casa, alugo uma carruagem. Me deixe pensar sozinho, Veiner. É meu novo mordomo, não meu pai — a última parte saiu em um quase rosnado e sem esperar uma resposta do homem da rainha. Cale se foi.

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