Biblioteca
Português
Capítulos
Configurações

Capítulo 1

[Luz]

O trabalho na casa ducal dos Barnes tinha exigido mais tempo e esforço do que normalmente era o costume na maioria das vezes. Entretanto, o sucesso com que o parto fora realizado pela senhora Barnes, que lutou com todas as forças existentes em seu corpo para trazer a luz o pequeno milagre, o herdeiro e consumação do amor entre ela e o esposo, fez com que todo o trabalho e dedicação valessem à pena no fim.

O chorinho forte e sofrido do novo membro da casa fora a melhor recompensa que eu poderia ter recebido ao deixar a esplêndida residência Barnes.

É certo que também eu recebera bem por meus serviços prestados, e uma ode de agradecimentos da parte do Duque que sentia-se mais do que realizado pela saúde e sobrevivência das duas pessoas mais importantes de sua vida.

Eu havia deixado a residência Barnes há poucas horas atrás após deixar uma extensa recomendação as empregadas da casa, sobre os cuidados que deveriam ter com a duquesa para que a mesma se recuperasse forte e saudável e assim pudéssemos cuidar do filho como era devido.

Estou caminhando a uns bons minutos pela via principal que leva a vila onde o comércio local é intenso e agitado, quando sinto os primeiros resquícios de cansaço me abaterem após longas horas sem me alimentar. Já é fim de tarde e em pouco tempo o sol irá começar a se pôr, reflito ao olhar para o céu sem nuvens.

Dirijo mais alguns passos até uma pequena, porém charmosa delicatessen e minha boca praticamente saliva ao avistar os pequenos bolinhos de creme, canela, coco entre outros diversos sabores delicadamente ornamentados com a mais fina e saborosa cobertura de açúcar fino de confeiteiro, que estão expostas diante da vitrine.

Uma verdadeira obra de arte extremamente saborosa, e minha paixão secreta devo admitir.

Com os braços dormentes por carregar minha pesada maleta de trabalho em uma mão, e na outra minha bolsa de viagem aonde carrego um par de roupas limpas para me trocar após um dia trabalho, e também para guardar agora uma trouxinha recheada com um bom número de moedas pelo serviço realizado na casa Barnes, resolvo ceder um pouco as rédeas de minha vida regrada e me permito realizar o desejo de comer meu doce predileto dos sonhos, aproveitando também para forrar meu estômago faminto.

Dou mais alguns passos, deposito a mão na maçaneta do estabelecimento e quase já posso sentir o doce sabor da iguaria açucarada derretendo em minha língua quando de repente sinto um leve puxão na barra da minha saia. Viro-me assustada para o lado quando um par de mãos se acerca do meu braço direito e outro do meu esquerdo.

O olhar de pânico em minha face logo é substituído por puro alívio ao perceber do que se trata, são apenas crianças um pouco maltrapilhas e de aparência apática. Então eu respiro fundo ao colocar a mão sobre o peito.

-Que susto, pequenina! -exclamo com um pequeno sorriso nos lábios e acaricio o cabelo escuro da menininha que continua a segurar a barra da saia do meu vestido. -Onde está a sua mamãe? Quantos anos você tem? -pergunto preocupada por uma garotinha como ela estar andando desacompanhada na rua a esta hora.

-Mamãe está trabalhando com as vacas. -ela responde coçando os olhinhos castanhos com as mãozinhas encardidas de sujo. -E eu não sei quantos anos tenho. Só meus irmãos. -ela aponta o dedo indicador para o rapazinho um pouco maior do que ela que havia segurado meu braço.

-Dona, a gente tá longe de casa e... com fome.

-Muita fome mesmo, moça. -a menina afirma juntando as mãos em forma de prece. -E não temos nenhum dinheiro. A mamãe não tem uma moeda pra gente comprar comida desde ontem, e minha barriguinha tá doendo de fome.

A confissão da garota que parece não ter mais do que uns cinco ou seis anos de idade, de corpo frágil e magricelo, me atinge em cheio. Meus olhos marejam instantaneamente e minha garganta seca. Meu coração se encontra em minúsculos pedacinhos quando eu me volto para ela.

-Vocês aceitariam se eu comprasse um daqueles bolinhos para comerem? Eles são muito bons. -ofereço com a voz embargada enquanto aponto para a vitrine.

O garoto olha para os doces com os olhos brilhantes e lambe os lábios de forma desejosa. Ele permanece pensativo por alguns segundos antes de trocar um rápido olhar com a garotinha mais nova em uma conversa silenciosa, e conseguem me desestabilizar quando por fim ambos chegam a um acordo mútuo.

-A gente agradece, dona. Mas vamos ficar com aquele pão grandão ali. -ela aponta para uma baguete mais ao fundo. -Porque assim dá para a gente dividir com os nossos outros irmãos.

-C-com os seus irmãos? -gaguejo sentindo uma leve vertigem. -Além desse? -digo me referindo ao menino ao meu lado e ela concorda efusivamente com a cabeça, as madeixas escuras sujas de poeira sacudindo no ar com o gesto. -E onde é que eles estão agora?

-Ali atrás escondidos. É que eles estavam com vergonha de se aproximarem da senhorita e acabar apanhando, como aconteceu com alguns outros pedestres que já passaram por aqui.

-Meu Deus, que coisa horrível! -murmuro entristecida e com o peito dolorido. -Chame-os aqui, pequena. Por favor.

-Venham, meninos! Podem aparecer, a moça é boazinha. Não vai brigar com a gente não.

E como se eu já não estivesse emocionada o suficiente, meu coração se parte em milhares de partes quando vejo duas pequenas garotinhas de aparência semelhantes, provavelmente gêmeas, de uns quatro anos de idade, e dois garotos, de aproximadamente sete e nove anos, saírem de detrás e debaixo de uma carruagem estacionada a alguns metros de distância.

Primeiro as crianças espionam a cena com desconfiança de longe. A aparência suja e mal cuidada dos irmãos é um contraste gritante com a opulência do belo veículo que ostenta o brasão real, o qual está sendo usado como esconderijo para os pequeninos.

-Venham logo antes que a dona desista! -o mais velho ralha com os mais novos que logo se aproximam temerosos.

-Fiquem tranquilas, crianças. Eu não irei voltar atrás em minha palavra. Me acompanhem. -peço segurando a mão da garotinha ao meu lado que também faz o mesmo com as duas irmãs mais novas.

Entramos na delicatessen em um grupo mais numeroso do que eu planejava inicialmente, e nos encaminhamos até o balcão onde o dono do estabelecimento nos recebe com um olhar entre curioso e compadecido para as crianças.

-Olá, senhorita Luz. Em que posso ajuda-los? -ele questiona solícito.

-Dê aos pequenos tudo o que desejarem e embrulhe mais alguns pacotes daquelas baquetes recheadas para que as crianças possam levar para casa. Não se preocupe com o custo, eu pagarei por toda a despesa. -digo abaixando-me para pegar a trouxinha de dinheiro na bolsa de viagem.

Enquanto as crianças pedem pelos alimentos em uma mistura de vozes entre comedidas, vergonhosas e extasiadas, o padeiro atende a todos os pedidos com uma risada divertida. Ouço a sineta da porta do estabelecimento tocar, um indicativo de que mais alguém entrara no local. Não consigo ver de quem se trata, o manto e o capuz pesado impedem-me de descobrir a identidade da pessoa, entretanto a qualidade e a riqueza do tecido revelam se tratar de alguém muito rico, talvez até um nobre.

-Aqui está a soma e o total da conta, senhorita Luz. -volto a atenção para proprietário e quando meus olhos pousam sobre o papel retangular, engulo em seco ao notar que o valor é exatamente a quantidade que acabo de receber, o meu salário de um mês inteiro.

-Certo. O pagamento pela compra. -digo depositando a trouxinha com as moedas sobre o balcão ao que ele recolhe após conferir o valor.

-Perfeito, senhorita Luz. Tenham uma ótima tarde todos vocês. -ele responde com um sorriso no rosto ao entregar os pacotes contendo as compras que as crianças irão levar para casa para alimentar o restante da família.

-Moça, moça... -uma das gêmeas me chama ao puxar minha saia. -Obrigada, você é um verdadeiro anjo. Quando eu crescer e for mais velha, quero ser tão bonita e bondosa quanto você.

-Você já é linda por dentro e por fora meu amor, todos vocês são. -digo afagando seu rostinho com delicadeza ao toca-lo suavemente com a ponta dos dedos.

E quando enfim deixo a delicatessen, meu estômago e bolsa de dinheiro estão vazios, porém, meu coração está completamente transbordando com a sensação de paz e realização ao contemplar o sorriso de felicidade emoldurado na carinha daquelas crianças desconhecidas, mas que haviam conquistado uma parte da minha alma com tamanha fragilidade e pureza.

Então eu também me sinto leve e feliz enquanto volto para minha casa com a sensação de missão cumprida.

Baixe o aplicativo agora para receber a recompensa
Digitalize o código QR para baixar o aplicativo Hinovel.