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04.Delegacia

Engoli o seco, encarando a figura brava de Amélia, ela estava furiosa, como se eu tivesse cometido um crime contra ela, ou eu nem sei o quê.

Dei três passos para trás, tentando me afastar, eu não tinha para onde correr, e sabia o quão perversa ela podia ser.

Eu tentava argumentar alguma palavra que pudesse me defender dos abusos sofridos, mas parecia impossível formular uma frase naquele momento.

Minha respiração estava ofegante, minhas mãos tremem enquanto continuo a dar passos para trás quando percebo que já estou encostada na parede ao lado da cama, pois o porão era tão pequeno que eu mal cabia nele. 

Merda

— Eu sempre soube que você era um lixo e devíamos ter deixado você ir para um orfanato. — Ela cuspiu as palavras em mim. 

— Eu só fiquei pouco tempo na festa, não quis…

— Cala a boca, Anne! — me interrompeu. 

Uma mistura de choque e medo invadiu meus olhos, eu não sabia se ela estava brava pela festa, ou por mais o quê.

— Por acaso, a diretora da faculdade onde você estuda, por nossas costas, ligou aqui para casa, para lhe parabenizar por conseguir mais dois anos de bolsa… Bolsa Anne? SUA MENTIROSA! — gritou. 

— Eu…

— Ainda por cima, vai à festa escondida de nós. Eu não autorizei que você estudasse, e você não estudará, você é nossa serva. Nos deve muito, todos os anos de comida e um teto sobre a sua cabeça. 

— Amélia... não tire isso de mim, por favor, eu imploro. — supliquei, as lágrimas escorriam de meus olhos e eu soluçava incessantemente.

— Não tirar isso de você? — ela riu ironicamente. — Você não tem nada, garota, acorda. Você concordou quando eu te disse que você nos serviria.

— Eu era uma criança. — eu abri a boca para falar, sentindo o tapa ser desferido em meu rosto. 

— Você não passa de uma imunda. Faculdade não é para você, isso é para Valerie que é uma menina diferente de você. Eu não vou te bater hoje Anne, pois amanhã teremos visitas e preciso de você bem para servir, mas daqui, você só sai quando eu mandar.

— Quando vocês iriam me contar da casa dos meus pais? A casa não era de vocês! — gritei.

— Do que está falando?

— Você sabe! — protestei. — Vocês vão pagar a dívida e vão de volver a minha casa. É a única coisa que tenho dos meus pais. — senti a lagrima escorrer pelas bochechas e ódio me tomar.

Amélia deu dois passos a frente com uma risada irônica.

— Penhoramos a casa, para poder pagar toda a faculdade de Valerie, você não merece aquela casa. E o que você fará? 

Fiquei em silêncio. Eu não sabia o que fazer.

— Como eu pensei. — ela riu.

Ela trancou a porta, me deixando presa imersa em minhas lágrimas, me sentei no cantinho da parede, no chão, deixando com que os soluços e o choro se misturassem, minha respiração quase falha. Eu só tinha uma coisa na vida: o meu sonho de ser médica e uma casa que eu nem sabia. E até isso, seria tirado de mim. Por que tanta injustiça?

O que fiz para merecer isto?

Eu poderia pedir ajuda ao meu tio, Anthony, mas ele não interviria, ele não iria contra a esposa por mim. Eu não significava nada para ele, a não ser a filha imprestável do irmão dele que morreu.

Meu rosto ardia por conta do tapa, mas meu coração parecia doer mais ainda. Ouvi um barulho de gente se aproximando e me levantei rapidamente, espiei pela fresta pequena que havia ali, e era Amélia, com mais algumas pessoas que pareciam ser… a polícia?

Essa mulher era completamente louca.

Me encolhi na cama, e ouvi a porta do porão ser aberta. Desde pequena, eu tinha uma boa audição e visão, não entendia o porquê, mas ignorei.

Ela entrou com meu tio e dois policiais, o que essa mulher estava planejando. 

— Aqui está ela, senhores policiais. Ela roubou meu colar de ouro. 

Oi? Arregalei os olhos.

— Você fez isso, Anne? — meu tio me encarou.

— Eu não roubei nada, essa mulher é louca. — falei nervosa e assustada com as acusações, minhas pernas tremiam a cada segundo. 

Os policiais se aproximaram do quarto, tentando formular pistas contra mim, e começaram a revirar tudo no quarto, meus olhos permaneciam estatelados, a dor, a raiva, o medo, tudo me consumiam. Eu me odiava, odiava ser eu, e as esperanças de que algo mudaria, morriam a cada dia pior. 

Eles continuaram a revirar o quarto até abrirem uma caixinha onde eu guardava meus prendedores de cabelo, encontrando supostamente o maldito colar lá. Isso não era possível, eu não havia roubado. Ela com certeza colocou isso lá para me incriminar.

— Senhorita, infelizmente vamos ter que levar você. — um dos policiais falou me algemando.

— É um absurdo, me soltem, por favor, eu não roubei nada. — eu gritava olhando para eles. — Me soltem!

O nó na minha garganta se apertou mais ainda quando ela proferiu suas ameaças cruéis, usando seu poder para manipular a situação a seu favor.

— Eu juro, eu não fiz isso! Ela armou tudo, é uma mentira! — esbravejei.

As lágrimas já haviam deixado trilhas marcadas no meu rosto, e a sensação de injustiça era sufocante.

— Se quiser sair daqui Anne, posso muito bem retirar a denúncia. Isso é fácil.  Mas terá que fazer absolutamente tudo o que eu mandar sem dar uma palavra, e não irá mais para a faculdade, nunca mais. 

O acordo proposto por ela era uma armadilha, vadia. 

Seria liberdade condicional em troca da minha subserviência completa a ela e ao meu tio. 

Minha voz se perdia nos gritos desesperados, nos pedidos por compreensão que caíam em ouvidos surdos. A dor rasgava meu peito, e eu me sentia afundada em um abismo de desespero.

Eu assenti em um gesto vazio de resignação. Não era rendição, era sobrevivência. Era o peso esmagador da minha falta de opções..

— Tia Amélia… —supliquei”.

— Sem mais, Anne, ficará presa, até decidir assumir a sua culpa e se submeter.”

De repente, pude ouvir passos, pareciam bem perto, seguidos por uma voz atrás de nós, uma voz que eu reconheceria em qualquer lugar. Meus olhos se voltaram e registraram seu rosto.

— Mas que diabos está acontecendo aqui? — ele disse.

Era ele. O homem misterioso da festa. Seus olhos estavam quase acinzentados, buscando entender o motivo da gritaria. Afastando-me da parede fria, desejei ter um portal mágico para fugir dessa vergonha iminente.

Com sua presença, o semblante de meus tios mudou imediatamente, como se sentissem medo. Apertei os olhos pela noite mal dormida quando ele prosseguiu:

— Eu estava no escritório, mas com certeza ouviria a gritaria até do inferno. São vocês, os Turner. O que estão fazendo? — Ele me observou.

Os olhos arregalados de Amélia revelaram seu temor da desaprovação de William. Ela começou a se explicar rapidamente:

— Oh, senhor Carter, não é nada, pode voltar para seus afazeres, não queríamos incomodar… Estamos resolvendo um assunto de família.

Ele olhou para ela e depois voltou a olhar para mim. Será que ele se lembrava de mim? Não seria difícil lembrar-se, afinal, fui eu quem derrubou uma taça de vinho na camisa do homem.

— Volto para meus afazeres quando eu quiser. Estava resolvendo questões de segurança da minha empresa com os policiais e ouvi burburinhos. Está acusando a moça de roubo? — Ele olhou para minha tia, que gaguejou, incapaz de formular uma resposta.

Pela primeira vez em minha vida, a vi assim, sem saber o que dizer. E admito, foi satisfatório.

— Garota? — Ele se dirigiu a mim. — Você fez o que ela está afirmando? — Sua voz grossa ecoou.

E agora, o que eu digo? A verdade ou minto para evitar retaliações?

— Eu não roubei, senhor. — Falei baixinho, comprimindo os olhos.

— Então, se ela disse que não rouba, é porque não roubou. E eu não sou fã de acusações falsas na minha cidade. — Ele chamou o guarda mais próximo. — Essa garota está livre. Deixem-na ir. Agora, se a pegarem roubando, ela terá problemas comigo.

Meus tios abaixaram a cabeça em sinal de redenção, mas não fizeram literalmente nada.

Eu só tinha duas perguntas a fazer: quem ele era de verdade, e porque todos o temiam tanto?

Depois da confusão, seguimos para casa. Não me dirigiram a palavra, só deixaram claro de que eu ficaria presa, e sem possibilidade de faculdade.

Me deitei, e evitei pensar nele, sua voz firme me salvando. 

Minha vida parecia um filme, e nele eu era a protagonista que só se dava mal.

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