Capítulo 1 Alvorada
Junho de 1998
De certo, a pequena cidade era infestada de crianças. Elas estavam sempre pelas esquinas; carregando mundos imaginários, brincando de pipa, recebendo reclamações dos seus progenitores. No entanto, nunca deixavam de estar ali, assim como os paralelepípedos que cobriam as ruas de Itororó.
─ Pessoal, preciso do silêncio de todos agora! ─ Disse Pedrinho com a luz da lanterna direcionada sobre seu rosto ─ Eu trago hoje para vocês a lenda de dona Nancy!
As crianças ao seu redor aquietaram-se e fizeram grunhidos de suspense.
Era sexta-feira, dia em que, religiosamente, todas as crianças do bairro se reuniam em uma construção velha e abandonada que cheirava a mofo e madeira molhada. Este fora o lugar escolhido como a sede das histórias, lendas e relatos assustadores. Lá a garotada encenava e narrava tudo aquilo que era repassado por seus tios e avôs como sobrenatural. Com o passar dos tempos, formou-se um clube, cujo título era "alvorada", por ser esta a palavra utilizada pelo pai do José Lucas todas as noites antes de sair de casa.
O local era úmido e, hora ou outra, insetos estranhos faziam aparições. Mas mesmo com tamanha imundice, os membros do clube traziam quitutes de casa para tornarem o entretenimento digno de gente grande.
Naquela sexta-feira estavam presentes cinco crianças, sendo essas, Mônica, Maria Lúcia, José Lucas, Pedro e Felipe.
─ Essa história se deu início em março de 1980 ─ continuou Pedrinho com empolgação.
─ Qualé, Pedro! Todos já estão fartos de ouvir sobre a lenda de dona Nancy ─ Felipe dizia com pedaços de torta na boca. ─ A terrível história da velhinha e sua bicicleta... Patético! Vocês já viram alguma criança desaparecer por aqui?
─ Para com isso, Felipe ─ Maria Lúcia fez o sinal da cruz. ─ Tu sabe que não se pode falar desse jeito sobre gente já morta, quanto mais uma senhora de alma presa por aí.
─ Claro que não! ─ José Lucas intrometeu-se na discussão. ─ Ninguém sai de casa tarde da noite, como poderia uma criança ter sido pega por ela?
─ Não importa! ─ Pedrinho gritou. ─ É minha vez de contar. Fiquem calados!
─ Se for este o caso, José, hoje à noite eu sairei de casa tarde da noite. Vamos ver se alguma senhorinha virá do além para me pegar! ─ Felipe estreitou os olhos afim de passar um tom intimidador para a turma.
─ Chega dessa história ─ Mônica empurrou Felipe para o lado. ─ Para a satisfação de todos, sugiro brincar de pega-pega pelo quarteirão.
As crianças consentiram com animação e se dispersaram brincando pelas ruas até o entardecer, e às seis horas todos foram para suas respectivas casas no intuito de descaçar para o sábado.
✼ ✽
─ Pedro, meu filho, acorda! Estou lhe dizendo... essa é a última vez que chamo.
─ Já vou, mãe. Já estou indo!
O menino levantou-se da cama com sonolência. Não havia pregado os olhos tão cedo aquela noite, ficara divagando sobre as possibilidades de Felipe ter ido comprovar a veracidade da lenda. Ele sabia que seu amigo não era um dos mais corajosos, mas conhecia como a palma da mão as suas travessuras.
─ Mas que diabo! Precisa comer nessa velocidade, Pedro? ─ indagou Virginia sentada na mesa de café da manhã.
─ Eu preciso resolver um caso muito sério com o Felipe antes de visitar a vó. É coisa de vida ou morte!
─ Me diz, o que pra você não é coisa de vida ou morte? Vê se engole esse pão direito.
Após terminar o café da manhã sem seguir os conselhos da mãe, Pedrinho pegou sua bicicleta e foi em direção à casa de Felipe. O tempo lá fora estava fechado, os relâmpagos em conjunto a rajada de vento chicoteavam seu corpo e anunciavam a vinda de uma frente fria.
Quando parou os pés no chão, Pedrinho observou que havia um carro de polícia estacionado em frente à casa do seu amigo. Ao encostar o pneu na calçada, pôde ouvir a conversa de Baltazar, pai de Felipe, com o delegado de feição dura que fazia anotações em seu bloco de notas.
─ Escute, meu senhor, irei repetir, de novo, em alto e bom tom. Eu não sei o que aconteceu. Apenas acordei e meu filho não estava na cama e em nenhum outro lugar! ─ dizia Baltazar com expressão apreensiva.