Capítulo II
O quartinho
Samanta entrou na garagem, pé ante pé, tomando o devido cuidado de olhar para trás a cada passo. Seu pai não gostava que elas mexessem no quartinho, pois, segundo ele, Aurora mantinha extremo sigilo quanto às suas coisas.
Ao abrir a porta, levemente emperrada, o ambiente imundo do local lhe fez espirrar repetidamente. Espirros estes que ela tentou ao máximo conter para evitar o barulho. Olhou para os seus pés descalços, que sairiam dali cobertos pela poeira negra que se estendia por todo o chão.
Um livro grande, com capa de couro e cor de avelã, a única coisa que não estava soterrada em poeira e teias de aranha por completo, lhe chamou a atenção. Ao pegá-lo com cuidado, notou o quão pesado era, e colocou novamente na mesa, para folheá-lo tendo-a como apoio. O livro tratava-se de uma série de receitas de chás e tônicos, para os mais variados problemas. Em suas páginas, com palavras escritas à mão, continham nomes de doenças que Samanta sequer tinha ouvido. Logo, deduziu que era dali que sua mãe tirava a cura para as enfermidades das pessoas que a procuravam. Leu atentamente algumas poucas receitas, enquanto afastava o livro cada vez mais para a extremidade da mesa, onde a luz refletida através da pequena janela no alto da parede, dava maior visibilidade ao que estava escrito.
Um barulho na cozinha a assustou, e o livro que tinha sua barriga e a extremidade da mesa como apoio, caiu em seu pé, provocando uma dor que ela teve de respirar profundamente para não gritar.
- Burra. - disse baixinho para si.
Samanta esperou até que o barulho vindo da cozinha se dissipasse. E ao pegar o livro que estava no chão, notou que algo havia caído de dentro dele. Uma caixa de madeira, do tamanho exato de uma caixinha de fósforo, e em sua lateral, lia-se "Abra, se a pertencer".
A curiosidade que ela sempre teve como fiel aliada, lhe fez abri-la. E dentro da mesma, continha um pequeno papel dobrado, coberto por poeira e gasto pelo tempo.
Quando desdobrou o papel, as letras estavam semi-apagadas, mas ao colocá-lo o mais próximo possível da luz da janela, e com muito esforço para decifrá-lo, Samanta identificou a frase escrita.
"A chave está na saída."
Ao identificar a frase, uma onda ainda mais intensa de curiosidade lhe atingiu. E, acreditando que tratava-se de algo possivelmente escrito por sua mãe, o desejo de descobrir o real sentido deste bilhete lhe fez sentir calafrios. Dobrou-o novamente, e o colocou no bolso de seu short em malha de algodão.
Samanta continuou folheando o grande livro, na expectativa de encontrar algo novo que, talvez, trouxesse um novo sentido ao estranho bilhete. T odo o restante das páginas tratavam-se dos mesmos assuntos: receitas de misturas milagrosas.
Resolveu arriscar , abrindo as outras caixas que estavam empilhadas no chão, e toda a poeira soltada a cada abertura, lhe fazia respirar com dificuldade. As caixas abertas estavam repletas de álbuns de fotografia e quadros que pertenciam à sua mãe, alguns pintados por ela mesma. Nada parecia intrigante o bastante para ser associado ao bilhete.
Ao se dar conta de que já estava ali há algum tempo, decidiu que, para não causar novos problemas, seria melhor guardar tudo onde estava e voltar para o seu quarto. Samanta concluiu que voltar ali depois com uma lanterna e um espanador , lhe traria mais êxito nas buscas.
Quando chegou em seu quarto, Mabel dormia profundamente, e o silêncio era completo naquela noite, sendo interrompido apenas pelo farfalhar dos galhos das árvores no extenso jardim dos Dante Maia.
Samanta olhou novamente para o seu curioso achado, e o colocou na gaveta de seu criado mudo verde musgo, que combinava com a tinta das paredes do quarto.
Antes de se deitar , pegou o porta-retrato que enfeitava a escrivaninha vazia, já que ela esquecera de pegar a máquina de datilografia que fora levada para o andar de baixo, como argumento para sua desculpa. O porta-retrato exibia o rosto contente de sua mãe, iluminado por um sorriso com dentes perfeitamente alinhados, e o rosto tão sardento quanto o de Samanta e Mabel, os dois grandes amores da vida de Aurora Maia, a mulher mais generosa de Clareira de Misé, que agora descansava na eternidade. Samanta o acariciou por alguns segundos, e como há tempos não fazia, permitiu que as doces lembranças de sua mãe invadissem a sua mente. E estes a inundaram como uma enxurrada que por anos fora contida.
As imagens alegres de Aurora ensinando Samanta a pintar quadros, o segundo hobby preferido da mesma, afinal, o primeiro era a preparação dos chás de ervas que curavam toda a vizinhança. Outro memorável ensinamento de sua mãe foi o hábito de esconder coisas. Escolher esconderijos inimagináveis por toda a casa, onde os segredos seriam sempre mantidos em segurança.
Samanta então se deu conta de que não fora assim tão surpreendente encontrar uma caixinha como aquela escondida no livro de receitas de sua mãe, já que essa sempre tivera como lema, a busca por esconderijos. Ao se deitar , ainda com a imagem de Aurora perambulando cada esquina de seu imaginário, Samanta pensou em outros possíveis esconderijos de sua mãe, e tentou vasculhar em sua memória, algo que ela tivesse lhe dito sobre eles. Mas os anos bloqueando as lembranças da mãe que lhe deixou, dificultavam a memorização imediata dos momentos com ela, e cansada do dia repleto de surpresas, Samanta decidiu fechar os olhos e não mais pensar . Seguindo assim, outro lema de uma mulher também admirável para ela, Scarlett O'hara¹. "Pensarei nisso amanhã."
Afinal, amanhã é outro dia.
¹ Personagem protagonista do romance "E o vento levou" de Margaret Mitchell's.(1936)