Tese Sobre o Prazer - Capítulo 2
O sol da manhã filtrava-se pelas grandes janelas da sala 106, lançando retângulos de luz dourada sobre as carteiras. Era a terceira aula do semestre e, ainda assim, havia uma expectativa muda quando ele entrava pela porta. Seu andar era firme, o olhar grave, e a forma como carregava os livros, como se fossem instrumentos de poder, fazia os sussurros cessarem no instante em que pisava no chão frio.
Luna já estava sentada. Primeira fileira, desta vez. Usava uma camisa bege, solta no corpo, mas os botões abertos no limite do aceitável. Um colar fino caía entre os seios discretamente marcados pelo tecido. As pernas cruzadas, a caneta entre os dedos, e os olhos, sempre os olhos, cravados nele como se cada aula fosse uma continuação do último olhar.
Ele passou os olhos pela turma enquanto se aproximava da mesa. Abriu um livro, repousou-o sobre o tampo de madeira e anunciou:
— Hoje, leitura em voz alta. Vamos trabalhar um trecho de Clarice Lispector. “A Paixão Segundo G.H.”. Página 87. — E então, levantou o olhar. — Luna Andrade, pode começar, por favor?
Alguns alunos se entreolharam. O nome dela era um acontecimento agora. Desde a redação. Desde o bilhete. Desde os olhares demais.
Ela sorriu com os lábios, não com os olhos. Pegou o livro devagar. A ponta dos dedos passeando pelas margens como se tocasse algo vivo.
Abriu a página. Limpou a garganta, mas a voz saiu baixa.
— “Então veio a revelação. O que me invadira fora uma enorme identificação com o mundo. A minha mais dolorosa sensação era que me parecia que eu era uma mulher com sexo. E é isso que me tomava como uma desgraça e como um bem...” — ela pausou, engolindo seco. — “... e como um bem. Como um bem.”
A sala estava em silêncio. Nem as janelas se atreviam a ranger. Só a voz dela, trêmula de leve, crescendo a cada frase, encontrando um ritmo.
Ele observava sem piscar. A tensão em seus ombros era mínima, imperceptível para a maioria. Mas Luna sentia. Sentia nos poros, como uma corrente elétrica silenciosa entre os dois.
Ela continuou.
— “Era como se meu corpo tivesse me sido dado como algo muito mais do que minha alma podia aguentar. Meu corpo era maior do que eu.”
A frase caiu entre eles como uma confissão. Alguns alunos pareceram inquietos. Um pigarro ao fundo. Mas ninguém ousou interromper.
Ela parou. Não porque o trecho terminara, mas porque era o limite. O calor subia por sua pele, da barriga até o pescoço, e não era vergonha. Era exposição. Era desejo traduzido em literatura.
Ele se aproximou devagar, como se não quisesse acordar ninguém além dela.
— Pode parar por aqui — disse em voz baixa. — Mais do que suficiente.
Ela levantou os olhos, as pupilas dilatadas. E ele ficou ali, a meio metro, olhando para ela como quem decifra um texto secreto.
— Você interpreta bem. — A voz dele era um sussurro firme. — Mas quero ver se executa com a mesma entrega.
Os olhos dela tremeram. Um instante. Depois, ela piscou devagar. E respondeu com o silêncio mais ousado que já tinha dado.
A aula seguiu, ou pelo menos para os outros.
Ele continuava explicando, agora sobre o conceito do corpo como território simbólico na literatura brasileira contemporânea. Mas sua mente não saía das palavras lidas por ela. Havia algo na forma como pronunciara “meu corpo era maior do que eu” que ainda vibrava em sua espinha.
Luna não tomava mais notas. Apenas olhava. Como quem acabara de dizer tudo o que precisava.
No fim da aula, os alunos começaram a levantar, pegando mochilas e arrastando cadeiras. Ela continuou sentada. Ele recolhia os livros com lentidão quase meticulosa.
Quando a maioria já havia saído, ela levantou. Caminhou até a mesa dele sem desviar o olhar.
— Professor...
Ele ergueu os olhos, mas não respondeu.
— Aquilo que disse... sobre execução. O senhor costuma avaliar... desempenhos?
A pergunta era absurda. Perigosa. Totalmente fora dos limites acadêmicos. E, ainda assim, ele sentiu o sangue ferver.
— Só os que merecem — respondeu, a voz baixa.
Ela se aproximou mais um passo, encurtando o espaço. Os livros eram a única barreira entre os dois.
— E como alguém... merece?
Ele respirou fundo. Seus olhos fixos nos dela.
— Submissão. Lealdade. E coragem. — E então completou: — Saber calar quando é hora de ouvir. E falar quando for ordenado.
Ela mordeu o lábio inferior, por puro reflexo. As palavras tinham peso. E prazer.
— Entendi.
Ela virou-se. Passos firmes. O som dos saltos ecoando no corredor.
Ele ficou parado, a mão ainda sobre a capa de Clarice, como se o livro pudesse absorver o calor que ela deixara no ar.
Naquela noite, o vento parecia quente demais para um início de semestre.
Ele caminhava entre os corredores silenciosos da universidade rumo ao estacionamento, os pensamentos girando em círculos viciosos. Uma aluna. Um olhar. Uma leitura. Uma frase. Um convite velado.
Seu telefone vibrou.
Mensagem anônima. Sem nome.
“Quando quiser avaliar... estarei pronta para a leitura.”
O coração acelerou. Ele sabia quem era. Aquilo já tinha saído do território seguro.
Mas havia algo nele — mais forte que o medo, mais fundo que a ética — que queria ver até onde aquela história podia arder.
Na aula seguinte, ela não chegou atrasada. Mas ele sim. De propósito.
Quando entrou, ela já estava de pé, diante da lousa. Os outros alunos sentados. E ela, como se fosse parte da mobília da sala, com um livro nas mãos.
Ele parou na porta, intrigado.
— Posso começar, professor? — ela perguntou, sem ironia, mas com os olhos cheios de desafio.
Ele assentiu, intrigado e excitado.
Ela abriu o livro. Era o mesmo. Clarice.
E leu:
— “De repente percebi que minha verdadeira vida era a que me parecia a mais improvável. A mais indesejável. A mais perigosa. Era ela.”
As palavras queimaram mais que qualquer nudez.
Ele caminhou até a mesa e sentou-se, encarando-a como quem assiste a um filme que sabe que não deveria gostar — mas ama.
Quando ela terminou a leitura, fechou o livro com calma e se sentou. Nenhum aluno percebeu o que acabara de acontecer. Mas os dois sabiam.
Naquele dia, ele não deu aula. Pediu uma atividade escrita, fingiu correção. O tempo inteiro, só conseguia pensar nela lendo aquela frase. “A mais perigosa.”
No final da aula, ele recolheu as folhas, mas separou uma. A dela.
No verso, escreveu com sua letra firme:
“Provoque menos com a boca. Mais com o texto.
Ou, se preferir, me mostre que sabe fazer os dois.”
Dobrou a folha, discretamente. Entregou junto com as anotações.
Ela recebeu. Sorriu. Não disse nada.
Mas antes de sair da sala, virou-se e perguntou:
— Professor... posso sugerir o próximo trecho para leitura?
Ele a olhou. Avaliou a ousadia com olhos frios — mas o sangue fervia.
— Pode.
— A História do Olho, de Bataille — disse, com a voz mais calma do mundo.
Ele sustentou o olhar.
— Aprovada. Mas lembre-se... algumas leituras são irreversíveis.
Ela piscou.
— Eu conto com isso.
E saiu. A saia balançando nos quadris, como um ponto final sem arrependimento.
