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Último ano de residência (1 ano atrás)
[Fernanda]
Acordo em minha confortável cama às seis da manhã e me preparo para a corrida matinal pelo condomínio.
Vou até a cozinha, como uma maçã, pego uma garrafa de água e saio de casa.
Só o som de meus tênis batendo contra o asfalto me acompanha por um período de tempo, depois de uns trinta minutos encontro alguns vizinhos em seus respectivos quintais com seus afazeres e os cumprimento com um bom dia.
-Bom dia, Fernanda. Como vai? -não preciso nem me virar para saber quem agora corre ao meu lado.
-Bom dia, Eduardo. Eu vou bem e você? -perguntei por educação.
-Muito bem, você sabe. O que acha de sairmos qualquer dia desses? Abriu um novo restaurante italiano no centro da cidade, a gente pode ir lá...para saber se lugar é bom. -disse como quem não quer nada.
A questão é que ele quer alguma coisa. Eduardo sempre foi doido comigo desde que nos conhecemos. E o problema nem é aparência ou personalidade do cara. Ele é até que é muito bonito, simpático e às vezes, esporadicamente falando, charmoso.
Só que... eu simplesmente não gosto dele. Pronto, é isso, falei. E é meio chato quando a pessoa não se toca e continua insistindo como se um dia viesse existir a remota possibilidade de que nós tornemos algo mais. Vai sonhando, é o que eu sempre penso quando o vejo.
-Então... -comecei.
Não vai rolar, eu pensei.
-É que está uma loucura lá no hospital, e eu tô bem sem tempo ultimamente. Mas quem sabe num outro dia? -perguntei evasiva com um sorriso meio amarelo.
-Tudo bem. A gente se vê por aí. -despediu-se quando chegamos em frente minha casa.
-Até mais. -respondi já na varanda.
Abri a porta da sala bebendo a água da garrafinha que eu havia levado e fechei a porta com a mão livre.
-Pelo visto Eduardo ainda não desistiu de você, hein? -ouvi aquela voz logo atrás de mim.
Virei-me com um enorme sorriso.
-Seu cachorro, porque não me avisou que estava vindo? -perguntei agarrada ao seu pescoço em um abraço de urso.
-Quis fazer uma surpresa e pelo visto consegui. -riu ao tirar meus pés do chão.
-Devia ter me ligado ou mandado uma mensagem. -bati em ombro ao nos separamos.
-Estava com saudades de casa. -ele disse.
-Também sentimos sua falta, Miguel. -subimos as escadas ao lado um do outro.
-Kaile também chegou há poucos minutos, acho que está no banho agora. -Miguel anunciou.
-Parece que hoje todo mundo resolveu fazer uma surpresa nessa casa. -eu disse contente ao olhar para meu irmão.
-Parece mesmo. Agora vai tomar um banho logo para podermos tomar o café da manhã com todos. -deu um tapa em minha cabeça e eu rosnei em protesto.
De banho tomado e um vestido soltinho desci para o primeiro andar.
-Bom dia vovó. Veio tomar café conosco hoje? -perguntei curiosa.
-Bom dia, querida. Vim sim, não é todo dia que consigo ver todos os meus netos juntos em um mesmo lugar. Então aproveitei e passei por aqui assim que saí de casa, mas não poderei demorar muito, tenho algumas coisas para resolver na rua. -disse e beijou a bochecha de cada neto, de meu pai e de minha mãe.
Comemos e conversamos durante toda a refeição com uma agitação fora do comum, já que todos estavam em casa. Judite estava de parabéns como sempre, tudo estava uma delícia, e quando a elogiávamos a mulher ficava da cor de um tomate, mas tentava disfarçar com sucesso.
Depois do café saímos os quatro irmãos, eu, Miguel, Kaile e Isadora para o centro da cidade.
Fomos a uma casa de jogos, famosa entre os jovens, onde havia o que mais gostávamos, o boliche.
Ainda bem que eu estava de folga.
Brincamos uns com os outros cheios de provocações, até nos fatigarmos.
No caminho de volta para casa, Miguel dirigia o carro quando ouvi meu celular chamar em minha bolsa tira colo.
Era do hospital.
-Alô?
A pessoa passou as informações de maneira rápida do outro lado.
-Aham. Sim. OK, já estou indo. -respondi e desliguei o aparelho. -Miguel, pode fazer o contorno e me deixar no hospital? Aconteceu um grande acidente e muitos feridos estão sendo encaminhados para lá. Estão precisando de reforço e eu fui chamada de última hora. -expliquei.
-Ah, não, Fe. A gente acabou de chegar e você já está voltando para o trabalho?! -Kaile reclamou.
-Deixa ela, Kai. Sabe que é o trabalho dela, a gente pode esperar. Ainda vamos estar em casa quando ela voltar. -Miguel salvou a situação como sempre.
Rolei os olhos com impaciência para tanto drama.
Miguel parou no estacionamento para pacientes que ficava em frente a recepção do hospital. Mandei um beijo para todos e desci do veículo.
-Obrigada, Miguel. Tchau, meninos. -e saí em direção a entrada.
Mal pisei dentro do local e fui designada para um caso.
-Doutora Fernanda, prepare-se para entrar em cirurgia. Sala 205, trauma, um adolescente que estava no acidente, atravessou o para-brisas do carro na hora da batida. -disse doutor Vicente.
Sem esperar pelo elevador, subi as escadas correndo até o segundo andar, onde troquei de roupa e calcei meus tênis que estavam em meu armário.
Chegando em frente o centro cirúrgico de número 205, calcei as luvas de proteção para os pés, vesti o avental do uniforme em frente o lavabo que ficava dentro do centro cirúrgico, mas separado por uma parede de vidro que isolava um local do outro.
Fiz todo o processo de limpeza, lavei as mãos, coloquei as luvas e puxei a máscara de rosto para cima. A porta automática se abriu com o meu toque e eu entrei do outro lado me aproximando do leito do paciente.
-O que temos aqui? -perguntei.
***
Ao final do procedimento retirei a máscara e as luvas jogando-as no lixo ao sair da sala.
Suspirei exausta.
-Você fez tudo o que podia. -o ouvi dizer se aproximando de mim.
Estávamos caminhando rumo ao elevador. Quando as portas se abriram nós entramos e eu apertei o botão para o segundo piso (andar da recepção).
-Você acha? Podíamos ter feito mais por esse garoto... - questionei olhando sério para Vicente.
-Fizemos um bom trabalho. Ele está vivo, não está?! -perguntou cruzando os braços ao se encostar na parede de metal ao fundo do elevador.
Só havia nós dois dentro dos aproximadamente dois ou três metros quadrados do ambiente.
-É, mas... -tentei contradizer mas fui interrompida.
-Mas nada. Aquele garoto chegou aqui praticamente morto e nós salvamos a vida dele. Agora, se ele vai ficar em uma fila de espera por um órgão, é porque demos essa chance a ele com o melhor tratamento possível. Não se cobre tanto, Fernanda, isso pode se tornar frustrante com o passar do tempo. -aconselhou no final.
-Eu só... Ai! -reclamei quando bati a testa na porta com o solavanco que elevador deu.
-Que merda, será que a força caiu? -Vicente perguntou notando que todas a luzes do local haviam se apagado, até os botões estavam escurecidos.
-E não tem outro gerador? -perguntei o óbvio.
-Claro que tem, tonta. Todo hospital tem que ter no mínimo um extra. Isso aqui não é um açougue, não, garota. -mesmo na penumbra pude avistar seu semblante de escárnio, como se eu fosse algum tipo de idiota.
-Seu imbecil, não precisava ser grosso. Eu só perguntei por perguntar. -retruquei irritada.
-Então não faça perguntas idiotas, loirinha. -debochou.
Nesse momento senti o sangue ferver em minhas veias. Que babaca! Quem ele pensa que é, para me insultar desse jeito?
-Seu babaca... -dei um gritinho estridente.
-Você tem algum celular aí? -ele ignorou meu acesso de raiva.
-Não seja estúpido. Porque eu levaria um celular para dentro do centro cirúrgico? O meu está lá em cima no meu armário. -me senti um pouco vingada com essa resposta.
-Não seja infantil, Fernanda. Estou perguntando isso porque não quero ficar aqui o dia todo. -sentou-se no chão.
-E muito menos eu, ainda mais na companhia de certas pessoas. -alfinetei-o.
-Nossa, partiu meu coração, docinho. -ironizou.
Rolei os olhos com impaciência.
***
Já faz duas horas e nada de ninguém nos tirar daqui. Eu pouco me importava com Vicente, contando que eu saísse estava tudo bem.
-... eu estou faminta. -gemi ao sentir meu estômago roncar.
-Cala boca. -Vicente resmungou.
-Nós vamos morrer aqui, sozinhos nesse elevador deserto. -comecei a divagar delirante. -Vamos conversar com uma bola de futebol que tem a mancha da palma de uma mão, pintada com nosso próprio sangue... -eu estava deitada no chão daquela caixa metálica com os braços tampando meus olhos.
-Você é louca. -ele murmurou consigo mesmo.
-...e então ela vai se tornar nosso amigo imaginário, e se chamará Wilson. -acrescentei .
-Por Deus, cala essa boca, mulher! -reclamou pela centésima vez.
-Não, eu quero sair daqui! -respondi. -Alguém me ouviu? EU QUERO SAIR DAQUI! -gritei.
-Para com isso. A única pessoa que está ouvindo seus berros sou eu. -ralhou cobrindo minha boca com suas enormes mãos.
-Me solta, seu mané. Você vai acabar me sufocando. -me desvencilhei dele.
-Se pelo menos isso te fizer calar... -deu de ombros.
-Ridículo... -murmurei me colocando de pé.
-Mentirosa. -rebateu.
-O que você disse? -me virei em sua direção estreitando os olhos.
-Que você é uma péssima mentirosa. -ergueu uma sobrancelha de maneira irônica.
-Você é louco? Por que está me chamando de mentirosa? -cuspi a última palavra irritada.
-Porque você me chamou de ridículo sendo que nós dois sabemos que você não acha isso. -esboçou um minúsculo sorriso sarcástico.
-Por acaso você bateu com a cabeça hoje pela manhã? Ou isso é um defeito de nascença? Porque sinceramente, acho que você ou é muito louco ou muito convencido. E em qualquer um dos casos, isso parece ser uma falha tentativa de compensar algum... probleminha em particular. -insinuei venenosa.
Vicente se levantou e deu alguns poucos passos para me alcançar. Seu semblante já não era mais de divertimento e sim de seriedade beirando a irritação. Me afastei para trás quando ele já estava próximo demais, e a cada passo que eu dava ele dava mais um até que minhas costas colidiu com o metal frio da parede atrás de mim.
-Que foi Fernanda? O gato comeu essa sua língua ferina, é? -inquiriu colocando uma mão na parede ao lado da minha cabeça.
Sua cabeça estava inclinada, próxima ao meu rosto, seus olhos queimavam os meus com muita intensidade.
-N-não. -gaguejei mas me recompus rapidamente. -É que, você está invadindo meu espaço pessoal. Sai... sai de perto de mim. -falei exasperada.
-Porque eu faria isso? Algum problema? Isso te incomoda Fernanda, tá te deixando nervosa? -colocou a outra mão na parede cercando minha cabeça entre seus braços.
E que braços! Eram grandes, largos e definidos. Será que ele malhava? Sacudi a cabeça para espantar o caminho que meus pensamentos estavam tomando.
-Você me parece um pouco afetada, Fernanda, está tudo bem? Posso ver seu rosto corado mesmo na penumbra. -disse com a voz grave.
-V-vicente, quer... quer por favor se afastar? -pedi um tanto nervosa.
-Não. Eu quero provar uma teoria. Não é você que diz que eu sou ridículo? Vamos, prove que eu não te afeto. Que você não se importa se estou a dez metros de você ou se meu corpo está tão próximo do seu, que consigo sentir sua respiração batendo em meu queixo. -disse acabando com distância entre nós colando seu corpo ao meu.
Ele era quente, forte, e exalava um cheiro inebriante, uma mistura de sabonete, loção pós barba e perfume amadeirado, um cheiro muito marcante, e eu duvidava seriamente se meu cérebro conseguiria apagar essa essência gravada em si pelo menos pela próxima eternidade.
Coloquei minhas mãos sem seu peito para afasta-lo, entretanto ele as agarrou prendendo-as entre as suas mantendo-se no mesmo lugar.
-Eu consigo sentir o ritmo de sua respiração pelo balançar de sua caixa torácica. Você está nervosa. -sussurrou em meu ouvido o que fez arrepiar os pelos da minha nuca.
Vicente tirou uma de suas mão das minhas e enfiou-a entre os fios do meu cabelo. Seus dedos traçavam o caminho desde meu couro cabeludo até as pontas dos fios em uma carícia deliciosa.
Fechei meus olhos apreciando a sensação, meu corpo se derretia a cada segundo e eu relaxei em seus braços.
Eu havia perdido totalmente a noção de onde eu estava e com quem eu estava.
-Você consegue sentir? -perguntou baixinho em uma lufada de ar quente sobre meu rosto. Sua boca estava encostando-se de leve em meu nariz. Aquilo era tão bom.
Quando sua outra mão desceu pelo meu braço estacionando em minha cintura eu abri os olhos. Suas duas safiras me encaravam escurecidas e deslumbrantes.
E em um momento estávamos nos encarando somente pelo olhar e no outro... bem, não sei direito quem começou o que, mas estávamos nos atracando aos beijos.
E enquanto estávamos envolvidos naquilo, nenhum dos dois parou para pensar... pensar nas consequências daquele ato, nas merdas poderiam surgir dali para frente, e em como seria complicado as coisas. Não, nós não pensamos em nada...