Capítulo 2
Rio de Janeiro, Brasil.
Sete de janeiro de 2015.
O imponente prédio do Hospital São Miguel, por longos anos, era administrado pela Diretora-executiva Sophie Bittencourt. Embora ela comandasse os negócios com mão de ferro, a renomada neurocirurgiã avaliava mentalmente sobre cada minuto que dedicou à empresa nos últimos 40 anos, enquanto captava a imagem cansada no espelho do banheiro.
Anos de trabalho e dedicação para preservar os negócios e o bom nome da família Bittencourt não evitaram que Sophie recebesse o temido diagnóstico que a obrigou a se afastar do cargo. A tomografia contrastada do abdômen e a cintilografia óssea detectaram uma metástase.
O rosto pálido demonstrava que aqueles dias, entre a internação e a radioterapia, foram os momentos mais dolorosos de sua vida. Uma das enfermeiras a auxiliava no banho. Sophie olhou para o reflexo da mulher pálida e franzina. A enfermeira colocou a roupa na paciente, segurou-a pelo braço e levou-a até a cama. Enquanto Sophie se ajeitava na cama, o celular tocou em cima da cômoda.
― Nicky, atenda o meu celular, por gentileza!
Uma mulher com rosto fresco se remexeu na poltrona. Os cabelos castanhos e ondulados tinham um leve corte que emoldurava o rosto com maçãs salientes. Nicole pegou o aparelho e hesitou, pensou se deveria atender, já que a ligação era de um número desconhecido.
― Nicky, quem está me ligando? ― indagou Sophie
― Não sei! É um número desconhecido. ― Tocou na tela. ― Alô!
Por alguns segundos, Nicole ouviu o barulho da respiração do outro lado da linha, e então encerrou a chamada.
Da janela do prédio, uma suave brisa acariciava o rosto de Nicole. Com os olhos cerrados, as mechas onduladas que voavam a favor do vento.
― Quem foi que ligou? ― Sophie mirou a tela do celular.
― Não faço ideia!
Nicole virou-se na direção da cama e olhou para o outro oposto, parecia que Sophie lia seus pensamentos.
― A pessoa não disse uma palavra.
― Se for algo importante, vão ligar de novo.
Ela se afastou da janela e se sentou na poltrona de couro marrom. Resistiu ao impulso de perguntar sobre Alexander. Nos últimos anos, Nicole se esforçou para esquecer a ideia de que ele voltaria em seu cavalo branco e que ambos viveriam o famoso “felizes para sempre”, como nos contos de fadas. Não que, às vezes, esse final não passasse pela sua cabeça, mas depois de cinco anos esperando, ela não sabia no que deveria acreditar.
Era quase meio-dia quando uma criança entrou correndo no quarto, acompanhada por um senhor elegante de porte físico esbelto e cabelos pretos. Ricardo pedia em vão para que a criança não corresse.
― Mamãe, mamãe! Olha o que meu avô comprou.
Uma euforia tomou conta do pequeno Alex, que usava uma blusa com o símbolo do Homem-Morcego, uma bermuda comprida e tênis pretos. A criança que tinha pouco mais de cinco anos, media 1,17 m. Alex ajeitou os óculos com o dedo indicador sobre o nariz e prestou atenção na mãe que se abaixou e ficou na altura dele.
― Meu anjo, Sophie está cansada, agora se acalme um pouco e leia uma história para ela.
Nicole deixou o filho aos cuidados da enfermeira e acompanhou o doutor Ricardo. Ambos saíram ao encontro do oncologista de Sophie para obter informações sobre os últimos exames e o estado de saúde do paciente.
O menino se sentou sobre a cama com a ajuda da enfermeira. Abriu a revista com algumas ilustrações e leu os trechos da primeira página. Os olhos cansados reluziam com a boa leitura e a forma como Alex interpretava cada personagem. Sophie pegou o aparelho de telefone e pediu que a criança aguardasse por alguns minutos.
― Oi! Aqui é a doutora Bittencourt!
― Oi! Dra. Bittencourt, como vai?
Alexander brincou ao ouvir a voz da Avó
― Ah, então era você!
― Quem atendeu seu telefone? A voz era idêntica a…
― Nicky! ― Sophie completou. ― Foi por isso que você ficou em silêncio?
― Não, eu só fiquei surpreso por ela me atender.
― Sempre que Nicky tem uma folga no trabalho, vem me visitar. Diferente de você que só promete voltar para o Brasil e nunca vem.
― Daqui a alguns dias vou te visitar.
― Alexander, não demore tanto ― suspirou e olhou para o menino sentado ao lado. ― Talvez eu não consiga te esperar por muitos dias. Preciso conversar sobre um assunto sério com você, quero descansar em paz. ― Sophie acariciou o rosto do menino com ternura.
― Não diga isso! Logo estarei de volta.
A enfermeira entrou no quarto com uma bandeja prata nas mãos. Pegou o menino no colo e o acomodou no sofá.
― Alexander, preciso desligar, é hora da minha refeição.
― Até breve! Daqui a alguns dias chegarei ao Rio de Janeiro.
― Eu te espero! Deus o abençoe!
― Que assim seja!
Apesar do ceticismo, ele respeitava a fé da avó que foi criada com uma família católica e acreditava em Deus. Sempre que ele tinha algum paciente em estado terminal, aconselhava-os a se apegar à fé.
Centro de Lyon, França.
Faltavam pouco mais dez minutos para as sete da noite quando o garçom limpou a garganta e colocou a comanda na mesa. Alexander olhou em volta da cafeteria, estava vazia. Apenas o caixa e o garçom aguardavam o único cliente que “esqueceu da vida”. Pagou a conta com cartão de débito e deixou uma boa gorjeta.
A noite de janeiro era congelante, ele fechou o zíper do casaco na altura do pescoço, ao sair da cafeteria. Fez sinal para um táxi que, por sorte, passava próximo ao estabelecimento.
O trânsito parecia mais calmo enquanto o automóvel seguia pela via A7. Durante todo o trajeto até Sainte-Foy-lès-Lyon, ele pensava em alguma forma de manter uma conversa pacífica com Josephiné. O carro se aproximou da cidade agradável e rica em vegetação. Em poucos minutos, o motorista estacionou em frente à calçada, próximo a uma casa luxuosa de dois andares, com uma fachada elegante.
A magnífica propriedade tinha uma construção tradicional e impecável. Alexander fechou a porta do automóvel e caminhou pelo estreito piso de ardósia cinza. Subiu às pressas os degraus da escada que dava para a varanda em frente à entrada principal. Abriu a porta e olhou para a sala de estar.
― Josephiné! ― Foi até os outros cômodos do primeiro andar. ― Marcelly! Tem alguém em casa?
Voltou para a sala de estar, com uma decoração que mesclava força e delicadeza nos detalhes em gesso e nas curvas das mobílias. Pousou a mão comprida na cintura e coçou o rosto com barba por fazer.
Cansado, ele foi até o quarto, jogou a mochila em cima da cama e pegou alguns dos livros espalhados pelo chão.
Organizou o amplo cômodo bagunçado pela fúria de Josephiné e recolheu os pedaços da foto. Os olhos claros reluziam quando notou parte do rosto de Nicole no pedaço da fotografia.
Juntou os restos das fotos nas mãos e jogou na lixeira do banheiro, assim que ouviu o barulho do carro estacionar na garagem.
Josephiné afastou o cabelo platinado do rosto oblongo, depois que saiu do automóvel e encaminhou-se até a entrada da casa com a filha. Marcelly acabara de completar três anos naquele ano e sua maior paixão era o pai.
― O papa chegou! ― Ela acenou para Alexander, ao vê-lo através da janela de vidro no segundo andar.― Papa, papa!
Os passos ligeiros de Marcelly ecoavam pela casa. A menina de cachos dourados subiu as escadas e atravessou o corredor até o quarto com a porta aberta.
― Papa! ― Marcelly correu na direção de Alexander. ― Estava com saudades.
― Eu também, princesa. ― Ele a abraçou.
O apego que a pequena Marcelly tinha com Alexander incomodava Josephiné. Em silêncio, ela entrou no quarto. Abriu a porta do closet, retirou algumas peças de roupas e sapatos. Jogou a mala sobre a cama e colocou os pertences.
― Marcelly, vai para o quarto e separa algumas roupas e sapatos. ― A voz irascível de Josephiné mandou.― Passaremos alguns dias na casa da vovó.
― Oba! Vamos para Paris! Você também vai, papa?
― Não, princesinha! Tenho muito trabalho, preciso resolver alguns problemas.
― Sei bem o problema que você quer resolver.
O clima entre o casal não era amigável. Algumas vezes, os berros de Josephiné durante a discussão assustavam a filha. A última coisa que Alexander queria era que a menina presenciasse mais uma longa e tediosa discussão.
― Princesa, faz o que sua mãe mandou! Daqui a pouco vou até o seu quarto para brincar com você. ― Alexander deu um beijo na testa da filha e fechou a porta.
― Se vai falar alguma coisa, é melhor dizer logo! Vou embora. ― Josephiné fechou a mala.
― Você só quer brigar! Eu aturo as suas mudanças de humor desde que Marcelly nasceu. Não consigo conviver com você.
― Alexander, você só tem tempo para o trabalho.
Parou em frente a ele e colocou a mão na cintura delineada por um trench coat vermelho com cinto regulável.
― Sempre que você tem folga, você sai com seus amigos e com a Isabella. ― Cuspiu a verdade. ― Minha amiga do escritório viu vocês no Castle Pub. Pensei que o problema era a tal da Nicky, mas estou vendo que você já arrumou mais uma distração por aqui.
― Não suporto mais as suas insinuações ― vociferou a voz rude. ― Se você quer saber a verdade, ― ele apontou o queixo para frente desafiadoramente ― fui ao Pub, bebi além da conta e a Isabella me acompanhou até o hotel Campanile. ― O tom gelado confessou.
― Você saiu com aquela chienne? ― Juntou as sobrancelhas.
― Eu trepei com ela, se é isso que você quer saber. ― Alexander confessou.
Os punhos cerrados de Josephiné avançaram contra o rosto dele, todavia, ele desviou. Em poucos segundos, Alexander prendeu-a pelos braços em cima da cama.
― Nunca mais faça isso! ― Tinha uma expressão sombria no olhar, enquanto encarava Josephiné.
Soltou os braços dela e caminhou até a janela.
― Minha residência no Saint-Mary terminou. Vou para o Brasil.
― Dê um abraço e um beijo na sua avó antes dela partir.
― Chega de deboches, Josephiné!
― Procure a sua ex, brasileira. A tal da Nicky! ― Deu de ombros e colocou uma das malas no chão. ― Ah! Aproveita e leva a Isabella. Vocês formam um belo triângulo amoroso.
― Pare de falar coisas estúpidas. Eu já disse milhares de vezes que a Nicole está casada. Namoramos um bom tempo e foi apenas isso.
― Alexander, você casou com ela!
― E daí? Não te devo mais satisfações. ― Ele aproximou-se da poltrona estofada por um tecido bege.― Acabou, Josephiné!
― Au revoir!
Josephiné saiu apressada e chamou pela filha. Pegou uma das malas, enquanto Alexander levava as outras bagagens para o carro.
― Papa, você vai voltar? ― Marcelly abraçou-o.
― Claro! ― Beijou a testa da menina. ― Em breve, eu te levarei para conhecer os seus avós no Brasil.
― Je t'aime, papa!
― Eu também te amo, meu anjo!
Ele colocou-a no chão, ajeitou-lhe a touca, o cachecol rosa e ficou observando até que a menina entrasse no carro. O ar frio do rigoroso inverno batia contra o rosto.
Alexander entrou na casa silenciosa e trancou a porta. Pegou a garrafa na adega climatizada e encheu a taça.
Perdido nos pensamentos, jogou-se no sofá. Era quase meia-noite quando terminou a quarta taça de conhaque. Vencido pelo cansaço e o álcool que ingeriu, adormeceu no sofá da sala de estar.
Copyright © 2.021 por Ana Paula P. Silva.