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Capítulo 1 - Hoje é domingo

Domingo era o dia que eu tinha que almoçar junto de meu pai. Não importava o que houvesse, naquele dia da semana nos reuníamos na sala de jantar real e fazíamos o desjejum e o almoço na companhia um do outro. Então ele fingia que se importava comigo e eu que acreditava.

Tomei um longo banho e procurei algo para vestir. Iniciar a manhã no desjejum com meu pai era sempre um pouco tenso. Eu tinha que estar impecável. Não que durante os outros dias eu não tivesse cuidado com minha aparência, afinal, eu era a princesa de Avalon. Mas se ele visse qualquer coisa que não estivesse de acordo com o que esperava de mim, eu era punida. A punição não era física, mas com aulas e qualquer coisa que ocupasse ainda mais o meu tempo para aperfeiçoar o que ele julgasse que não estava perfeito.

Enquanto eu olhava para minhas centenas de roupas penduradas no closet completamente iluminado, Mia apareceu:

- Alteza! – ela disse se curvando.

Olhei-a confusa:

- O que significa isso?

- Esqueceu que hoje é domingo, Satini? Estou treinando para quando ficarmos próximas de seu pai.

- Como esquecer que hoje é domingo, não é mesmo? O pior dia da semana.

- Não fale isso! Seja grata por ele vê-la pelo menos um dia na semana. – disse Léia entrando no closet e pegando no cabide um vestido justo de tweed com um casaqueto da mesma tonalidade: preto e branco. Sapatos altos preto foram entregues em minhas mãos.

- Obrigada, Léia. Eu já disse que amo você? – perguntei com um sorriso largo no meu rosto.

- Acho que você diz isso mais que minha própria filha. – ela disse olhando para Mia.

Mia, por sua vez, suspirou:

- Quer me deixar mal com minha mãe, não é mesmo princesa?

Eu ri e saí do closet com as roupas nas mãos, colocando tudo sobre a cama.

- Dúvidas com relação a mais alguma coisa? – perguntou Léia.

- Não... Tudo certo agora que você veio me ajudar.

- Nos encontramos às 8 horas em ponto na sala de jantar real. Não se atrase.

- Estarei exatamente no horário. Quando me atrasei? – reclamei.

Ela sorriu e saiu, fechando a porta.

- Precisa de ajuda? – perguntou Mia.

- Claro que não. Não sou aleijada nem nada, Mia. – reclamei.

- Mas você sabe que é minha função... Às vezes fico um pouco chateada quando você não me deixa fazer nada.

- Mia, você é como uma irmã para mim.

- Isso não significa que eu não tenha minhas obrigações, Satini. Eu sou paga para servir você.

- Você é paga para estar comigo, Mia... Eu só preciso da sua companhia.

- Minha companhia jamais seria cobrada de você, Satini. Sabe o quanto eu amo você.

Eu a abracei com carinho.

- Hum, o que você tem hoje? – ela me perguntou.

Tirei meu roupão e comecei a vestir minha roupa, escolhida por Léia.

- Mia, você sabe que o dia está se aproximando, não é mesmo?

Ela suspirou:

- Sim... Eu sei. Queria não contar, mas não consigo.

- Eu... Estou tão nervosa com isso tudo.

- Imagino, minha amiga. – ela disse me auxiliando a fechar o vestido.

- Casar com um homem que eu nunca vi na minha vida... Isso me arrepia. E você sabe que poucas coisas me dão medo.

- Pensa pelo lado bom, é difícil um príncipe feio.

Eu ri:

- Você só pode estar de brincadeira! Nem sei se a aparência realmente me preocupa. Mas penso em dividir a cama com um homem que eu nunca vi em toda a minha vida. Isso me deixa tensa.

- Talvez ele seja lindo, cheiroso e tenha um corpo escultural. Afinal, ele não é tão mais velho do que você. É um jovem príncipe.

- Me assusta o fato de eu nem saber de onde ele é.

- Eu sei... Mas já procuramos por todos os poucos príncipes ainda existentes no mundo. E nenhum era tão horrível a ponto de fazer você fugir.

- Como eu já disse, aparência é o que menos me importa.

Sentei na penteadeira e comecei a fazer minha maquiagem enquanto ela arrumava meus cabelos.

- Eu tive uma ideia. – falei.

- Você, com uma ideia? – ela riu. – Você sempre tem muitas ideias, Satini.

- Esta é um tanto quanto... Ousada, digamos.

- O que você vai aprontar?

- Você verá no café da manhã com o rei.

Ela parou de me pentear, com a escova em punho e disse preocupada:

- Não se atreva a afrontar o rei Stepjan. Você sabe muito bem que isso é perigoso. Minha mãe já conversou conosco sobre isso.

- Eu não vou afrontá-lo, Mia. Vou lhe fazer uma proposta.

- O quê?

- Você vai saber durante o desjejum.

- Satini... Não faça besteiras.

- Não vou. O não eu já tenho, não é mesmo? Não custa tentar.

- Se não quer me falar antes sobre o que é, pelo menos fale para minha mãe.

- Não. Léia não me deixaria pedir nada ao meu pai, com medo do que ele pudesse me dizer ou fazer.

- Por isso mesmo, consulte-a antes, Satini.

- Não...

- Mas...

- Mia, ele é meu pai, não é um monstro.

- Me desculpe... Não foi minha intenção ofendê-la.

- Não precisa se desculpar. Mas às vezes vocês o tratam de uma forma que eu fico até com medo... Eu não o vejo como um ótimo pai, mas também não é tão horrível assim. Ele não é um pai normal, como outro qualquer... Ele é o rei. Eu sei que ele precisa ser duro comigo algumas vezes.

- Por favor, não me diga que acha que ele faz isso pelo seu bem.

- Não... Eu não quis dizer isso. Mas me vejo no lugar dele daqui a alguns anos e penso se eu não agiria da mesma forma.

- Autoritária?

Eu suspirei:

- Ok, vamos acabar a conversa por aqui.

- Desculpe, Alteza.

- Você está sendo irônica comigo.

- Não estou. – ela disse secamente.

Eu conhecia Mia só de olhar para ela e sabia que ela ficou chateada comigo.

- Precisa de um tempo sozinha, para se preparar? – ela perguntou.

- Sim, obrigada, Mia.

Ela saiu e fechou a porta e eu levante e respirei fundo. Os domingos ao lado do meu pai eram sempre uma caixinha de surpresas. Eu nunca sabia sobre o que conversaríamos, exceto sobre meu casamento, que era um assunto constante em nossas conversas. Eu era prometida em casamento ao príncipe desde que nasci. Acordo entre os poucos reinos que ainda existiam nos arredores (às vezes nem tão arredores). Sim, no século XXI ainda existia casamento arranjado, especialmente na realeza, em especial quando as monarquias estavam cada vez mais extintas ao redor do mundo. Laços e uniões eram imprescindíveis para manter o pouco que ainda havia de reinado por aí. Eu não sabia sequer o nome do meu futuro marido, muito menos o lugar de onde ele vinha. Claro, tudo isso para minha... Segurança. E dele, é claro.

Ninguém conhecia o meu rosto em Avalon. Desde que nasci, eu fui protegida da mídia nacional. Meu pai dizia que era para minha proteção. O povo conheceria a princesa de Avalon, Satini Beaumont, no dia do meu casamento, quer seria também a minha coroação.

Sempre me pareceu que o casamento era algo distante. E realmente era. Mas agora faltavam seis meses. E quando este tempo passasse, eu seria a esposa de um homem que eu não conhecia e isso passou a me assustar um pouco. Se me passou pela cabeça fugir ou questionar sobre isso? Não. Eu sabia que sempre foi e talvez sempre seria desta forma entre a realeza. Claro que eu soube de princesas que fugiram e tentaram ser felizes no amor. Mas eu não sabia de nenhum caso que deu certo. Se que queria ter nascido na realeza? Sinceramente eu não sei. Mas eu era grata por estar viva.

Minha mãe teve seis abortos antes de me ter. E morreu no meu parto. Acho que ela não podia ter filhos, mas insistiu muito até conseguir. Léia me disse que meu pai nunca quis uma filha mulher. Claro que aquilo me magoava profundamente, embora ele nunca tenha me dito com aquelas palavras. Mas eu sentia o quanto ele queria ter tido um filho homem para assumir Avalon. Por isso eu me achava um milagre da vida e não contestava ter nascido uma princesa, cheia de deveres e obrigações. Eu sabia que amava a vida. E acho que amaria da mesma forma se eu fosse uma rebelde da Coroa Quebrada, vivendo fora do castelo. Eu gostava de ter sangue correndo entre as minhas veias, das sensações que meu corpo produzia, de poder ver as cores da natureza e sentir a água banhando meu corpo.

E de tudo que eu conhecia da vida, que era bem pouco, uma coisa eu tinha certeza: eu não queria casar virgem. Não havia nenhuma cláusula que dizia que a princesa deveria ter relações pela primeira vez com o príncipe, seu marido. E mesmo que tivesse, acho que eu iria infringir esta cláusula. Por quê? Imagine se eu não gostasse de dormir com ele? Jamais poderia saber se com outro era melhor. Claro que eu não falei isso com Mia, pois ela iria me achar a pessoa mais louca do mundo e me daria um sermão. Mas era meu pensamento e pronto. E eu não precisava compartilhá-lo com ninguém. Por sorte isso eu podia fazer: pensar sem precisar contar. Então quando minha mente falava sozinha eu podia dizer e sentir tudo que meu corpo não sentisse e minha boca não falasse.

Já não bastava toda a vida que eu tinha com uma rotina dura, cheia de pessoas ao meu redor, observando tudo que eu fazia. Pouquíssimas pessoas moravam dentro do castelo comigo e meu pai. Quem circulava por ali eram pessoas de extrema confiança dele. E ninguém ousava fazer qualquer coisa que pudesse causar a ira do rei Stepjan Beaumont.

Léia me criou desde que nasci. Pegou-me dos braços de minha mãe quando ela morreu comigo aninhada em seu corpo e me deu todo amor que eu tive o prazer de conhecer. Ela não me tratava diferente dos seus filhos. Por isso eu tinha tanto afeto por Mia. E um pouco por Alexander também. Embora nos déssemos muito bem quando éramos crianças, conforme fomos crescendo eu e Alexander nos afastamos um pouco e agora mais brigávamos do que nos entendíamos. Meu primeiro beijo foi com ele. Quase o peguei a força. Mas eu já tinha quatorze anos e se ele era o único garoto que eu conhecia.

Eu não estudava fora do castelo. Tinha professores que vinham me dar aula. E Alexander e Mia me acompanhavam. Então os professores nunca sabiam qual de nós duas realmente era a princesa, pois não podíamos revelar. Penso como pude me acostumar àquilo desde criança: você é a princesa, herdeira de tudo, um dia comandará este reino, mas ninguém pode saber que você é você.

Voltando aos beijos, depois eu aperfeiçoei meus beijos e acho que hoje eu já posso me considerar uma expert. Como eu fiz isso? Os guardas reais, claro. Fora da nossa bolha dentro do castelo, os guardas não tinham certeza se eu ou Mia era a princesa. Enquanto isso eu beijava umas bocas para quando eu encontrasse o meu marido não fizesse feio. Nunca me apaixonei por nenhum deles. Acho até que eles fugiam um pouco de mim e me achavam louca e pervertida. Certamente pensavam que Mia era a princesa: dócil, recatada e educada. Eu não me importava o que pensavam sobre mim. Eu ria sozinha quando imaginava a reação deles quando soubessem um dia que eu era a princesa. Poderiam se gabar por aí dizendo que beijaram a princesa nos corredores estreitos e frios do castelo de Avalon.

Meu pai havia acordado que se fosse de minha vontade e aceitação de meu marido que eu fizesse uma faculdade depois do casamento, assim o faria. Mas fora de Avalon. Dentro do meu reino era proibido. Por quê? Para minha segurança novamente, já que todos saberiam que eu era a princesa.

Por que se preocupavam tanto com minha segurança? Eu não sabia. Mas uma vez, há muitos anos atrás, enquanto brigávamos, Alexander me disse que todos odiavam meu pai. E por isso me matariam se me vissem na rua. Na época eu era tão nova e dei de ombros. Achei que ele falou só para me magoar. Mas agora eu me pegava pensando naquilo de vez em quanto. Seria verdade? Talvez. Mas eu havia saído tão poucas vezes de dentro do castelo que não tinha como saber. E das vezes que saí, nunca foi num carro real, com brasão, muito menos aparentando ser uma pessoa da realeza. Conheci algumas lojas caras próximas do castelo. Só isso.

Olhei-me no espelho e estava impecável. Hora de enfrentar Stepjan Beaumont, o temido rei de Avalon... E para mim, simplesmente meu pai frio e distante.

Mia estava me esperando na porta. Não havia guardas no corredor onde dormíamos. E os que faziam vigia nos aposentos mais familiares eram os de extrema confiança do meu pai. Saindo da zona de convivência diária, nenhum deles sabia exatamente quem eu era. Por isso Mia dormia próxima dos nossos aposentos, junto de sua mãe. Léia ocupava aquele corredor porque sempre me cuidou, então acho que meu pai não arriscaria me mandar para a ala dos empregados com a governanta do castelo e sua mais fiel criada. Cresci junto de Mia e conforme fomos ficando amigas inseparáveis, a nomeei minha dama de companhia, pois eu não conseguia ficar longe dela. Era a minha única e melhor amiga e pensar em perdê-la era algo que não passava pela minha cabeça. Meu pai concordou. Acho até que ele nunca a deixaria sair do castelo, em função de nossas idades serem próximas e a confusão que ele gostava de causar em todo mundo sobre minha identidade.

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