lobo
Lobo
Assim que Ellie sai da loja, Charlie coloca as mãos no balcão à sua frente e se apoia nelas, abaixando a cabeça. Ele inspira e depois expira profundamente.
As palavras do trio ainda ecoam em sua cabeça. Palavras que parecem muito mais dolorosas do que as feridas em seu corpo. Estas simples palavras foram suficientes para trazer de volta todas as lembranças ruins do jovem. É como ficar preso no fundo de um poço e cair no meio do caminho toda vez que tenta voltar à superfície.
O ferimento na cabeça de Charlie é muito mais sério do que ele esperava. Ele coloca a mão trêmula no couro cabeludo e faz uma careta diante da dor infligida pelo simples gesto.
Nestes casos Charlie normalmente buscaria a ajuda de Marguerite, a única pessoa que o entende nesta cidade e que não o olha de soslaio. Apenas Marguerite está agora na companhia de sua filhinha, Ellie, e Charlie não quer atrapalhar esses momentos de felicidade que Marguerite tanto merece após a morte do marido. Além disso, Charlie deseja evitar a todo custo ver Ellie novamente, a quem ele considera curiosa e dolorosa demais para seu gosto.
Joe está excepcionalmente ausente hoje, para lançar o barco do Sr. Dubois, que ele terminou esta manhã bem cedo. Joe está trabalhando nisso há vários meses e esta manhã é finalmente a finalização de várias semanas de trabalho duro. Não há dúvida, Joe está muito orgulhoso disso. Charlie fica, portanto, encarregado da loja o dia todo.
Levantando-se, Charlie arrasta dolorosamente seu corpo em direção à sala dos fundos, onde há uma pia. Seu corpo parece estar carregado de chumbo. Sua cabeça está começando a girar seriamente e o sangue ainda parece não querer parar. Mas nada disso é novidade para Charlie. Brigar se tornou um hábito. Algo que ele quase gosta.
Ele apoia uma das mãos na pia de cerâmica enquanto a outra abre a torneira da água. Ele joga água no rosto na esperança de clarear seus pensamentos, mas isso só torna sua visão mais embaçada. Ele fecha os olhos por um momento, tentando controlar sua respiração muito rápida. Sua respiração está irregular e seu ferimento na cabeça de repente fica mais dolorido. A sala rapidamente se torna uma espiral que nunca para de girar.
Ele deixa seu corpo deslizar lentamente em direção ao chão, até ficar encostado na parede.
Ele se concentra em seus batimentos cardíacos e lentamente adormece.
“Charlie, ouve-se uma voz, mas parece distante. Charlie, a voz fala novamente, desta vez mais perto. Filho de Charlie, acorde. »
Charlie lentamente abre os olhos ao ouvir o apelido, na esperança de que tudo isso não seja um sonho e que seu pai esteja seguro com ele. Somente quando a visão do jovem clareia é que não é seu pai, mas Joe, que apresenta uma expressão preocupada. Inclinando-se sobre o jovem, Joe franze a testa.
Charlie vira ligeiramente a cabeça para observar o que está ao seu redor, o que causa um violento zumbido em seus ouvidos. Ele não está mais na loja, mas no Joe's, deitado em um sofá. Ele realmente não sabe quanto tempo esteve aqui. A casa lhe é muito familiar, pois Joe já o convidou diversas vezes para, muitas vezes, finalizar um projeto em que os dois estavam trabalhando.
Charlie se senta, estremecendo de dor e do zumbido constante em sua cabeça. O jovem não é estúpido, sente que sua saúde ainda está frágil, mas mesmo assim está despreocupado.
“Ah, devagar. »
Joe corre para o lado de Charlie e apoia seu braço. Charlie arranca ferozmente o braço do aperto de Joe. Seus olhos estão estreitados, uma mistura de raiva e dor infligida por seus ferimentos.
“Está tudo bem, ele está começando seco, estou bem”, diz ele secamente, mas seus movimentos lentos o contradizem.
Joe sentou-se no braço do sofá, aliviado por Charlie ser Charlie novamente. Ele lhe entrega um bloco de gelo para colocar na cabeça e observa o jovem.
“Você precisa parar de brigar com os Darnells, Charlie”, Joe suspira, observando o jovem.
Charlie rapidamente tira a bolsa de gelo da mão de Joe e a coloca no ferimento na cabeça. O frio ataca repentinamente o hematoma provavelmente já formado em seu couro cabeludo, fazendo-o estremecer levemente.
“Não me diga o que fazer, Joe”, ele murmura sem sequer olhar para o homem.
Seu rosto está fechado e novamente não é propício para conversa. No entanto, Joe conhece bem o menino e não recua quando Charlie pergunta a ele. Nada disso é novidade para Joe também. A cidade inteira certamente saberá de pelo menos uma das muitas brigas em que Charlie se envolveu. Apenas Joe é um dos poucos que quer ajudar o jovem.
“Estou apenas cuidando de você”, explica Joe.
Charlie finalmente vira a cabeça para Joe, suas feições ainda contraídas.
“Eu não preciso que você cuide de mim, Joe”, ele faz uma pausa por um momento. Você não é meu pai”, finalizou.
À menção do pai de Charlie, Joe fica tenso e abaixa ligeiramente a cabeça. Ele sabe muito bem que as palavras do jovem são verdadeiras e que quando Charlie menciona seu pai, muitas vezes é difícil encontrar uma resposta.
“Eu conheço Charlie bem. »
Ele levanta a cabeça.
“Mas eu disse ao seu pai que cuidaria de você. »
Após essas palavras, um pesado silêncio se instala entre os dois homens e Charlie parece matar Joe com seu olhar. O ar fica pesado nos ombros de Joe, como se alguém tivesse colocado as mãos em seus ombros para pressioná-lo contra o chão.
Depois do que parece uma eternidade, Charlie se levanta, tirando o cobertor do colo e jogando a bolsa de gelo no sofá. Ele se dirige para a saída e está prestes a sair quando Joe abre a boca.
“Você está correndo para o seu destino, Charlie! »
O jovem para perto da porta sem se virar para Joe.
“Se você continuar assim, você está indo para o seu destino, saiba disso”, Joe diz com uma voz muito mais profunda do que alguns minutos atrás.
Charlie não diz nada, mas sua mandíbula se contrai e sua respiração fica agitada novamente, desta vez não pelos mesmos motivos. Após essas últimas palavras, o menino sai da casa do pescador de Joe, tendo o cuidado de bater a porta.
Ele nem sabe que horas são, mas a julgar pelo sol baixo no céu, deduz que devem ser por volta das seis e meia. Seu ferimento na cabeça o manteve acamado a maior parte do dia. Ter passado tanto tempo dormindo sob os cuidados de Joe irrita Charlie. Ele não gosta da ideia de alguém se envolver em seus assuntos pessoais. Essa é a principal razão pela qual Charlie foi tão frio com Joe. O velho sempre teve tendência a se intrometer nos negócios de Charlie, mesmo que Charlie nunca lhe peça nada.
O jovem caminha lentamente ao longo do porto, local de que gosta particularmente. Sua cabeça ainda está um pouco dolorida, mas a dor não se compara à desta manhã. O sol poente se reflete no mar oleoso, enquanto um barco à vela entra no porto.
Charlie para por um momento para observar a cena. Isso o lembra de quando ele e Milo costumavam pegar o barco do pai depois da escola. Na maioria das vezes o pai de Milo não sabia, o que tornava a tarefa mais perigosa.
Não tem destino específico. Voltar para casa e enfrentar o pesadelo está fora de questão, pelo menos não imediatamente.
Então ele caminha, perambula pela pequena cidade sob o olhar atento dos transeuntes. Algumas pessoas ficam com expressões indignadas com a roupa manchada de sangue do jovem, mas Charlie não se importa. Ele está acostumado com isso agora.
Depois do que aconteceu com sua família, o mundo começou a se fechar ao seu redor. Ninguém presta mais atenção em Charlie Wolf, exceto quando ele é polêmico. Ele é conhecido por ser o bandido que passa os dias lutando. Ser aquele garoto de dezenove anos que está predestinado a ficar preso em Edgartown pelo resto da vida.
É assim que a maioria das pessoas vê. É assim que ele se vê.
Como uma alma abandonada tentando fazer-se ouvir pelo mundo apesar da barreira de universos que os separa.
•••
Depois de provar o delicioso prato de Marguerite, as duas mulheres tiveram a grande ideia de jogar cartas. O que deveria durar cerca de meia hora durou uma tarde inteira. Ellie, frustrada por sempre perder para a avó, pede vingança a cada vez e até tenta mudar o jogo, mas Marguerite é inabalável.
“Tenho certeza que você está trapaceando!” Ellie exclama ao se levantar abruptamente da mesa quando Marguerite vence mais uma vez.
Marguerite e Ellie estão jogando Rummy, um jogo que envolve fazer sequências. Um jogo que Ellie joga desde os doze anos.
“Ellie querida, não tenho culpa que você seja péssima em todos os jogos de cartas”, Marguerite se defende, com um leve sorriso nos lábios.
A velha odeia perder. Ellie abre a boca, falsamente magoada com o comentário da avó.
" Você está trapaceando ! Você acha que não vejo você olhando minhas cartas quando finge deixar cair seu lenço no chão! » Ellie retruca, mencionando o lenço de papel cuidadosamente dobrado no canto da mesa.
Marguerite encolhe os ombros enquanto guarda as cartas.
“Gravidade”, disse ela, com um sorriso dançando nas pontas dos lábios. »
Ellie rosna de frustração e aponta para a avó.
“Nunca mais vou jogar cartas com você.”
— Que jogador ruim! ri Marguerite, levantando-se e indo guardar as cartas na gaveta da TV.
"Que trapaça!" »
Ellie mostra a língua o que faz Marguerite rir.
Um leve sorriso se forma nos lábios de Ellie com o gesto infantil.
As brigas entre as duas mulheres sempre estiveram presentes no relacionamento. É uma maneira de dizer um ao outro o quanto um significa para o outro. Uma forma de dizer em voz alta: “Eu te amo. »
“Bem, já é hora de sua avó ir para a cama”, diz Marguerite, bocejando.
Ellie sorri e pega Marguerite nos braços. Eles ficam assim por um momento e depois se separam.
“Boa noite, Nonna. »
Marguerite coloca a mão delicadamente na de Ellie.
“Boa noite, minha pequena Ellie”, ela responde.
Marguerite sobe para seu quarto, deixando Ellie sozinha na sala, tendo o fogo de lenha dançando na lareira como única companhia. A jovem pega um cobertor quentinho, liga a TV e senta-se confortavelmente no sofá. Como sempre, Ellie para no canal de desenhos animados.
Sua mente não está com vontade de assistir desenhos animados, já que todos os seus pensamentos estão ocupados com perguntas sobre um certo jovem. Algo sobre Charlie o leva a descobrir mais.
Ellie culpa os olhos do jovem por isso. É como se seus olhos fossem o ponto de partida de um mapa do tesouro. Um enigma que desafia os mais ousados a mergulhar nele por sua própria conta e risco. Suas íris verdes são a única coisa que desperta a curiosidade de Ellie.
Ellie não contou a Marguerite o que aconteceu. Ela achou por bem ficar quieta, não querendo estragar a atmosfera. Ellie não se engana, ela percebeu a proximidade de Marguerite com o jovem. A maneira como ela falou com ele foi quase maternal. Portanto, a briga em que Charlie se envolveu pode não ser um assunto para discutir.
O som abstrato dos desenhos animados acaba dominando Ellie e ela adormece no sofá, embalada pelo som suave de sua infância.
•••
Os próximos três dias não serão chatos, já que os dias de Marguerite e Ellie consistem em cozinhar e jogar cartas. É uma forma de recuperar o tempo perdido. Isso pode parecer chato para a maioria dos adolescentes, mas não incomoda nem um pouco Ellie, pelo contrário. Quando ela estava em Boston, tempo era o que ela precisava. Acima de tudo, os estudos médicos exigem muita paciência e muitas vezes noites sem dormir.
“Eu deveria arrumar um emprego”, diz Ellie, colocando um prato na mesa.
Esta noite, Marguerite e Ellie vão receber Mona e Thomas, os vizinhos do outro lado da rua, para jantar. Escusado será dizer que Marguerite já está na cozinha cozinhando todas as suas especialidades.
“Eu não quero depender de você. Se eu ficar aqui com vocês quero contribuir financeiramente”, explica Ellie, alinhando os talheres nas laterais dos pratos, tendo o cuidado de colocar um guardanapo ao lado.
Para a ocasião, uma grande mesa de madeira está instalada na sala. Uma linda toalha de mesa branca cobre-o, bem como um buquê de flores coloridas recém-colhido. Várias velas são colocadas por toda a sala, tornando o ambiente muito aconchegante e acolhedor.
“Isso é muito legal, Ellie, eu realmente aprecio isso. »
Marguerite coloca a mão terna no ombro da filhinha para mostrar sua gratidão.
Ellie sorriu levemente.
“É normal, Nonna. »
Marguerite volta à cozinha para terminar de preparar o jantar, enquanto Ellie continua arrumando a mesa.
A ideia de encontrar um pequeno emprego não é repentina, foi desde que decidiu sair de Boston que essa ideia ficou ancorada na sua mente. Está fora de questão ser o fardo de Marguerite. Ellie tem dezenove anos e se considera adulta, apesar do que as pessoas ao seu redor possam dizer.
A jovem sempre foi séria naquilo que soube empreender, só que o seu espírito descontrolado muitas vezes a faz passar por criança aos olhos de muita gente. No entanto, isso realmente não a incomoda.
Depois de arrumar cuidadosamente a mesa de jantar, Ellie sobe para seu quarto para se arrumar, passando silenciosamente pela cozinha. Um cheiro bom provoca suas narinas mais uma vez.
Uma vez em seu quarto, Ellie abre o guarda-roupa onde guardou suas roupas um dia antes de sua chegada. Ela suspira por um momento, sem ter ideia de como se vestir.
Depois de um bom minuto olhando seu guarda-roupa na louca esperança de que isso lhe dê uma roupa adequada, Ellie decide por um vestido azul marinho acompanhado de finas meias pretas. Sua roupa pode não ser adequada para uma noite fria de novembro, mas a casa é quente o suficiente para a garota usar um de seus vestidos favoritos.
Depois de se trocar, Ellie aplica uma leve camada de rímel nos cílios, bem como um pouco de protetor labial. Suas bochechas estão rosadas o suficiente para não corar. Ela borrifa três pinceladas de seu perfume na nuca e nos ombros antes de descer para se juntar a Marguerite.
"Eu posso te ajudar com alguma coisa?" Ellie pergunta uma vez na cozinha onde Marguerite está limpando.
Marguerite olha para Ellie e percebe sua nova roupa.
“Ah, você é linda! »
Ela caminha até ela e a gira, fazendo Ellie rir.
“Obrigada, Nonna”, ela sorriu, olhando para o vestido antes de olhar novamente para a avó. Você precisa de ajuda ? ela repete.
— Ah não, não se preocupe, terminei! ela exclama.
Ao mesmo tempo, a campainha tocou na casa, anunciando a chegada dos convidados.
“Parece que nosso jantar acabou de começar”, comenta Marguerite antes de trotar em direção à porta da frente.
Ellie segue logo atrás, animada para conhecer novas pessoas.
A vida de Ellie em Boston não consistia em convidar pessoas para jantar. Não se tratava de ter qualquer interação com estranhos. Consistia mais em longas horas de estudo e refeições solitárias em frente à TV em seu apartamento, que estava vazio demais para seu gosto. Então tudo isso é novidade e só a ideia de dividir um jantar com completos estranhos já é o suficiente para deixar a jovem nas nuvens.
Ellie se posiciona atrás de Marguerite e alisa as dobras do vestido. Quando Marguerite abre a porta, Ellie sorri, mais uma vez, de forma mais linda.