Prólogo
Kelly Ferraço
Lembranças...
É triste acordar de um lindo sonho e vê que tudo se tornou um terrível e irrevogável pesadelo. Ao abrir os meus olhos me encontrei dentro de um hospital e o Lipe não estava lá comigo. Vi o meu pai debruçado em uma janela, com o olhar perdido, encarando as ruas do lado de fora e a minha mãe, estava sentada em um pequeno sofá, com a cabeça apoiada em uma de suas mãos e um jornal na outra. Talvez nem estivesse lendo as notícias de fato. Eu conhecia bem aquele rosto cansado e sofrido. Ela estava sofrendo por algo... por mim talvez? Mas, o que realmente aconteceu? Então o meu pai se mexeu, voltando ao nosso mundo real e os seus olhos cansados e cheios de olheiras me encontram. Adonis sorriu para mim.
— Filha? — Ele disse caminhando com pressa na minha direção e me abraçou ainda deitada no leito de hospital e só então me dei conta dos fios em meu corpo e dos sons das máquinas ao meu lado.
— Meu amor você acordou! — Minha mãe falou com um tom emocionado na voz. Respirei fundo e isso causou uma dor pesada em meu abdômen, me fazendo soltar um gemido dolorido em seguida.
— O que aconteceu? — perguntei atordoada, cansada de ficar no escuro. Senti a minha garganta seca e isso me causou uma sequência de tosses — Onde está o Lipe? — Meus pais se olharam e eu entendi que havia algo errado.
— Querida, você sofreu um acidente de carro muito grave. — Agnes, começou a falar. As palavras de minha mãe, me trouxe uma cena de horrores a memória. O Adam nos perseguindo em uma corrida louca no trânsito. Era de madrugada e as ruas estavam calmas e desertas, mas algo aconteceu e eu nem tive tempo de perceber o que foi.
— E o Lipe, ele está bem? — insisti na minha pergunta. Observei o meu pai respirar profundamente e se preparar para dizer-me algo.
— Eu sinto muito, filha! — sussurrou com pesar. A dor que eu senti por dentro, parecia me partir ao meio e era bem maior do que a que o meu corpo desferiu quando me encolhi na cama, me entregando ao choro.
— Não — gemi dolorosamente. — Por favor pai, me diz que ele está bem. — Em resposta recebi o seu abraço, mas esse não me confortava, não tirava essa dor que estava me matando por dentro. O choro durou alguns longos minutos e eu só parei quando a realidade me bateu na cara, com uma violência espantosa.
“A culpa foi minha!”
Constatar isso, me fez afastar dos braços carinhosos dos meus pais e da suas tentativas patéticas de me consolar. Eu não merecia aquele consolo.
— Kell, o que está nos pedindo? Nós não podemos...
— Por favor pai, eu preciso ficar sozinha — insisti.
— Querida, eu não seria o seu pai se te deixasse sozinha em um momento como este.
— Mais que merda, pai! — bradei irritada e eu nem sabia o porquê. Eles não mereciam esse comportamento de mim, mas eu não conseguia evitar. _ Eu quero ficar sozinha, podem por favor sair do meu quarto, por favor? — Adonis e Agnes apenas me olhavam, sem saber o que fazer. — Saiam agora! SAI DO MEU QUARTO! — gritei tão alto, que cheguei a ver o medo estampado em seus olhos. Eu sei, fui dura demais com eles, na verdade estou sendo uma megera. Mas me entendam, eu não sou mais eu. Uma parte de mim ficou lá, naquele maldito acidente e se foi junto com ele. O meu melhor se foi. O meu sorriso também e comigo só restou uma única coisa, a culpa. Eu o matei, foi tudo culpa minha.
Os dias seguintes foram os piores da minha vida. Eu não pude ir ao seu velório, não pude me despedir. Adam me tirou esse direito. Ele me tirou tudo. Deus como odeio esse homem! Eu só queria ter a certeza de que está ardendo nas profundezas do inferno. Recebi a visita dos pais do Lipe alguns dias depois de acordar do coma de quinze dias. Não foi fácil olhá-los nos olhos, não depois do que eu fiz ao filho deles. Queria não tê-lo conhecido, mas o conheci. Queria não tê-lo amado, mas eu o amo. Se não tivéssemos juntos, o Lipe ainda estaria vivo e talvez eu sim, estaria morta em seu lugar. Acordar todas as manhãs e encarar essa nova e dolorosa realidade é o meu martírio. Contra a minha vontade decidi seguir em frente, mas nem tudo é aceito em minha nova vida. Decidi que serei dele como havia lhe prometido, que o amarei até o fim da minha vida e que serei a chef que ele sonhou que eu seria.
(...)
Meu telefone toca insistente em cima da mesa da cozinha do pequeno apartamento que aluguei, me despertando dos meus pensamentos. Decidi que seria pequeno e aconchegante, já que não precisava de tanto espaço só para mim. Pego o celular, largando a xícara de chocolate quente que fiz, e sequer toquei, e abro um enorme sorriso quando vejo que é minha amiga Maah. Ela é tudo o que me restou de uma vida passada. Apesar de ter me ajudado na fuga daquela noite especial e de ter colaborado com a melhor e única noite feliz da minha vida, eu não a culpo por nada. a final, ela só quis o meu bem.
— Bom diaaaaa, flor do diaaaaa! — Ela cantarola com toda a sua animação que realmente não me alcança, mas que de alguma forma me fez sorrir. — Como foi a sua primeira noite em Paris?
— Péssima, diga-se passagem! Um vizinho barulhento se mudou pra cá, então você pode imaginar como foi a minha noite com móveis arrastando de um lado para o outro e um som irritante tocando algum tipo de música francesa — ralho mal humorada e vou até uma das janelas do apartamento, onde tenho a melhor visão de Paris.
— E como ele é? — Deu para sentir um toque de malícia em sua voz e isso me faz revirar os olhos.
— Não faço a menor ideia, Maah! Não ando bisbilhotando os meus vizinhos. Só sei de uma coisa, se ele for barulhento assim sempre, vai ter uma vizinha muito chata pegando no pé dele. — Ela riu, na verdade ela gargalhou.
— E a faculdade? — indaga. Solto um suspiro baixo.
— Fui lá ontem e dei uma olhadinha. Até que é bem legal, acho que vou gostar.
— Hum, sei! Viu algum gatinho perdido por lá? Me disseram que os franceses são bem avantajados... lá em baixo — disse e soltou outra risada alta. Revirei os olhos outra vez. Desde que tudo aconteceu a cinco anos atrás, Maah assumiu a missão que querer me fazer transar com alguém, não importa quem seja. Ela diz que o importante é gozar e ser feliz.
— Não reparei — respondo com toda a sinceridade. Ela bufa bem alto para ter certeza de que ouvi.
— Kelly Ferraço, se você não der essa buceta a terra vai comer, querida! Você já sabe o meu lema, “o importante é gozar e ser feliz!” — retruca e eu repito o seu bordão junto com ela. — Você está em Paris e eu te desejo do fundo do meu coração, que você esbarre fortemente em algum macho alfa e que esse te leve para cama e te mostre o caminho da felicidade. — Agora sou eu quem bufa.
— Eu preciso desligar, sua maluca, tenho faculdade em duas horas e não quero me atrasar no meu primeiro dia de aula, não fica bem para minha imagem na visão dos professores. Como vai o Afonso? — Mudo propositalmente de assunto.
— Hum, tarado e gostoso como sempre! — cantarola de uma forma arrastada e preguiçosa. Provavelmente ainda está cama, depois de transar uma noite inteira com seu marido.
Ah sim! Marina se cansou do desprezo de seus pais quando fez seus dezenove aninhos e fugiu de casa com o seu professor de direito, Afonso Castellini. O cara é pelo menos seis anos mais velho que ela, embora não aparente tal idade. É claro que os pais dela não gostaram da novidade e foram buscá-la no apartamento do homem, e foi ai que ela rasgou o verbo com eles e conquistou a sua liberdade. E hoje, eles são de longe as pessoinhas mais felizes que eu conheço no mundo, depois dos meus pais é claro, e dos meus tios, Oliver e Petrus. Com a Cris não foi muito diferente. Agora ela está nos Estados Unidos fazendo faculdade de medicina e noiva do Call. Esses dois não se desgrudam desde que começaram a namorar no colegial. E parece que se tornou uma lei entre essas duas; elas precisam me ligar, ou fazer chamadas de vídeos dia sim e dia não. É cansativo, mas confesso que se não fosse por elas, ou a minha família eu não teria chegado até aqui.
— Vocês não têm jeito! — resmungo achando graça do seu comentário.
— Claro que temos! É um jeito safado, dengoso e gostoso, mas temos jeito sim. — Sorrio.
— Maah, eu realmente preciso ir, querida. Beijos para o Afonso!
— Tá, me diz onde que eu dou. Na boca, na bunda ou no p…?
— Na bochecha fica melhor! — A corto de uma forma divertida.
— Hum, estraga prazeres! — retruca me fazendo rir e encerro a ligação em seguida. Os próximos minutos são bem corridos. Preciso me arrumar para o meu primeiro dia na faculdade de gastronomia e não quero me atrasar, portanto, o banho foi bem rápido e quando terminei, pus uma roupa simples e peguei o meu material. Isso sim fez-me sentir liberta de verdade, me fez sentir um pouco da alegria que sentia outrora. Respirei fundo, pus os óculos escuros e larguei os materiais no banco do passageiro. Sorri quando liguei o carro e segui para o meu mais novo amor… meu curso preferido.