Capítulo 2
“Don't let it burn. Don't let it fade.”
Minhas costas queimavam. Havia sido um dia cheio, e uma noite movimentada no restaurante, graças a Deus. Desprendi meu cabelo do coque preso por uma caneta. Quem me visse naquele momento, me julgaria como uma garçonete exausta ao invés de chef, embora ambos trabalhem exaustivamente. Telefonei para Antoine enquanto pegava minha bolsa no escritório, e ele atendeu quando eu fechava o bistrô.
— Hey! Está em casa? – perguntei.
— Ah! Desculpe Katharine! Eu me esqueci completamente!
Revirei os olhos e joguei a cabeça para trás, ainda parada na porta do meu estabelecimento já fechado.
— Tudo bem, Antoine. Nicholas te ligou?
— Não. Se tivesse feito eu não teria me esquecido de buscar a Liz.
— Certo, nos falamos depois irmão. Vou resolver isso.
Ele despediu-se e eu me apressei ao meu carro. Antoine havia dito que poderia buscar Liz no apart-hotel em que Nicholas estaria hospedado após a festa da família, no entanto, aquele incômodo seria inevitável. Mandei uma mensagem ao pai de minha filha antes de dar partida no carro. Dirigia tranquila, mas ágil, quando a chamada de Nicholas no visor me preocupou e rapidamente atendi:
— Olá, estou dirigindo. Não se preocupe, eu estou a caminho do hotel. Ela está dormindo?
— Boa noite Katharine. Tudo bem? – ele perguntou calmo.
Eu detestava quando Nicholas era educado comigo apenas para me irritar como estava fazendo.
— Me desculpe, mas Antoine teve um imprevisto. Só soube agora que saí do bistrô.
— Tudo bem, eu estranhei a demora dele e como sei que você não permitiria minha filha dormir comigo sem um planejamento prévio, eu a trouxe à sua casa. Ela está dormindo. – falou como sempre, alfinetando a minha postura rígida quanto a assuntos referentes à Liz.
— Certo, eu não me demoro.
— Katharine! Venha com cuidado, não precisa correr. Se não se importar... – ele parou de falar ponderando algo.
— Nicholas eu estou dirigindo, seria ótimo evitar ocupar-me muito na linha, então, por favor, seja breve.
— É que eu ainda tenho a chave. – disse sem rodeios.
— Então entre, coloque-a na cama dela e me espere chegar, por favor.
Desliguei a chamada rapidamente. Minha mente tentava imaginar os motivos pelos quais ele ainda tinha a minha chave. Eu claramente não a pedi de volta, pois o contato entre nós era mínimo. E desde que o divórcio saiu e Nicholas abriu mão da nossa casa para que eu vivesse com Liz, acreditava que aquilo não era o tipo de coisa que ele ainda teria.
Minha cabeça ameaçava doer. Dei seta ao identificar o retorno na estrada e me apressei para chegar logo em casa. O perfume de Nicholas Cassano naquela casa de novo era algo que eu não conseguiria lidar após começar a me recuperar.
Abri o portão automático da garagem e estacionei. Ele surgiu na porta de entrada com os braços cruzados e vê-lo ali na soleira daquele modo... Era como uma visão do passado. Só faltava o sorriso. Não o encarei para evitar lembranças a mais.
Abri a porta traseira do carro, e retirei a caixa com as sobras de verduras, e alguns legumes. Esporadicamente eu trazia alguns proveitos para casa. No restaurante reaproveitamos tudo, até as cascas. E o que fabricávamos disto, era doado para instituições, para os funcionários que quisessem levar, e para a minha casa.
Nicholas caminhou até mim sem que eu percebesse e tirou a caixa de minha mão, sorrindo educado. O cumprimentei com “boa noite” sem sorrir, e agradeci a ajuda. Bati a porta do carro trancando-o e me afastando. Nicholas seguiu-me para dentro. Joguei minha bolsa no sofá e retirei minha jaqueta. Deixei a jaqueta no sofá, enquanto Nicholas entrava.
— Ponha a caixa na cozinha, por favor.
Retirei meus sapatos deixando-os jogados perto do sofá também. Nicholas encarava-me apoiado no balcão da cozinha americana. Assim que senti meus pés no chão, levei as mãos aos cabelos, aliviada os sacudindo.
— Você está mais magra. – ele disse cortando o silêncio.
Olhei-o de lado, desconfiada. Minha blusa era curta. Era uma blusa antiga do Ramones, de quando eu ainda era adolescente. Era uma blusa que Nicholas adorava. Pigarreei e disse mudando de assunto:
— Vou ver a Liz e já volto.
Caminhei até o quarto e a pequena criança dormia angelical, mal sabia que os pais estavam novamente, após tanto tempo, sob o mesmo teto.
Beijei a testa de minha filha e acariciei seus cabelos agachada à sua cama. Quando levantei para sair, Nicholas nos olhava da porta do quarto. Desviei-me de seu olhar que percorreu meu corpo parando na blusa. Eu estava mais magra, realmente. Não tive fome por três meses. Passei por ele na porta, que mal fez questão de se afastar para me dar passagem.
De volta à sala, Nicholas sentou-se no sofá e eu o encarei descontente. Eu estava cansada, e não acreditava que ele ficaria ali fazendo aquele tipo de jogo, como se fossemos amigos.
— Desculpe o incômodo em trazê-la. – falei sentando-me relaxada no sofá.
— Ela é minha filha. Não é um incômodo, não se preocupe.
Suspirei cansada. Não estava com forças para iniciar uma discussão com ele.
— Por que não foi ao aniversário de Frankie?
— Por que deveria ir? – respondi.
— Não precisa cortar os laços com a minha família.
— Não cortei. E eles sabem disso. Apenas não sou obrigada a frequentar eventos familiares em que não me sinta confortável.
Um silêncio incômodo se pôs, e eu aproveitei para me afastar. Fui à cozinha guardar os alimentos que havia trazido. Nicholas se pôs de pé observando em volta.
— Você... Está bem?
— Não pareço bem? – perguntei diretamente.
— Está mais magra. – ele repetiu pela segunda vez aquela noite.
— Me desculpe se não me entupi de chocolates e me tornei gorda o suficiente para deixar de ser atraente.
— Você nunca deixará de ser atraente, Katharine.
Fechei a porta da geladeira bebendo meu copo de água e ao ouvi-lo bati o copo sobre a pia.
— O que está tentando fazer Nicholas?
— Estou apenas tentando conversar.
— Não tente. Nossos assuntos dizem respeito à Katharine, apenas.
— Me preocupo com você. É meu dever de pai também, já que ela mora com a mãe.
Bufei numa risada sarcástica.
— Estou ótima, Nicholas. Não pense que vou falhar com minha filha.
— Katharine. Não precisa ser assim. Tivemos uma história que deve ser respeitada, não seja tão dura, ok?
— Não venha me falar de respeito... Francamente! O que você quer afinal? Que sejamos grandes amigos depois de tudo?
— Quero apenas que nos demos bem, por Liz.
— Eu considero que estamos nos dando bem demais. Não temos que conviver um com o outro para isso.
— Certo... Bem, se cuide Katharine.
Ele encaminhou-se à saída sem muita demora, mas rapidamente voltou lembrando-se de me devolver a cópia da chave. Eu estava perto da porta, para trancá-la e ele pegou minha mão e depositou a chave na minha palma dizendo apenas uma frase:
— A decoração era melhor com os porta-retratos.
Tive vontade de batê-lo. O que ele pretendia? De que adiantam as fotografias espalhadas, deixando rastros de lembranças se aquelas imagens mentiam?
“I'm sure, I'm not being rude, but it's just your atitude. It's tearing me apart, it's ruining everything”.
Eram três e vinte da madrugada, quando eu liguei para Antoine, alarmada. Liz estava gemendo de dor e apresentava palidez. Eu tocava a barriguinha dela e ela chorava ainda mais, a dor parecia ser tanta que minha filha não conseguia parar de chorar. Em desespero liguei para Antoine que se dispôs a nos levar ao hospital, mas eu já estava preparando tudo para ir o mais rápido possível. Só pedi que ele me encontrasse lá. Na emergência, vazia, o médico avaliavam Liz que ainda chorava. Antoine nos aguardava do lado de fora do quarto.
Quando saímos do quarto para conversar o médico e eu, deixamos Liz medicada e sonolenta sendo acompanhada pela enfermeira infantil. Antoine se aproximou preocupado me abraçando, e atento ao que o médico iria dizer.
— Você é o pai dela? – perguntou ao meu irmão, ao qual ele não havia conhecido ainda.
Iríamos responder, mas a voz de Nicholas atrás de nós me fez congelar.
— Não. Eu que sou.
Ele se aproximou estendendo a mão em cumprimento para o médico, e eu encarei Antoine com uma expressão confusa.
— Obrigada por me ligar, Rob. – ele disse ao meu irmão e me olhou preocupado: — Como ela está?
— Agora está medicada e o Dr. Rhodes já ia nos explicar o que aconteceu.
— Desculpe, mas... Não era o Dr. Hunter o pediatra dela? – Nicholas perguntou incisivo para o médico como se ele tivesse alguma culpa.
— Há mais de três meses o Dr. Hunter se aposentou Nicholas. Daniel vem cuidando de Liz desde então.
Era inacreditável a postura do Cassano. No entanto, toda vez que ficava nervoso, Nicholas era impulsivo. Desculpei-me discretamente com o médico que me olhava com paciência e compreensão.
— Acho que você quis dizer Dr. Daniel, não é Katharine? – Nicholas perguntou diretamente para mim, de forma julgadora.
— Não. Eu disse Daniel, que é o nome do médico que cuida da nossa filha há mais de três meses.
Minha resposta foi suficiente para fazer Nicholas sentir que passou dos limites. Antoine e eu não entendíamos nada, e Daniel apenas ajeitou o jaleco concentrando-se em nos dar as notícias:
— É um prazer, finalmente conhecê-lo senhor Cassano. A Liz falou muito de você em todas as últimas consultas.
Nicholas confirmou num aceno de cabeça e estava envergonhado por sua postura. Pude notar pela maneira como seu olhar era reto e o sorriso falso. Eu sorri discreta. Não havia um movimento de Nicholas que eu não conhecesse, nem um pensamento que eu não adivinhasse. Certamente ele estaria murmurando em sua cabeça “desnecessário Nicholas”, como dizia todas as vezes que se pegava cometendo uma atitude, realmente, desnecessária.
— Bem, eu preciso explicar algumas questões mais complexas a vocês, por isso, eu gostaria que me acompanhassem ao meu consultório. – Rhodes falou me olhando como se esperasse resposta.
— Antoine, pode fazer companhia à Liz enquanto nós conversamos com o Dr. Rhodes?
Perguntei e meu irmão prontamente afirmou me abraçando e indo para o quarto da pequena. Acompanhei o médico que se pôs a caminhar na frente, e Nicholas veio em seguida nos observando. Assim que ele notou que o médico já me dizia algumas coisas, ele apressou os passos chegando ao meu lado.
— Então pode ser isso? – perguntei ao médico no momento que Nicholas se aproximou.
— Pode Katharine. Mas, eu vou explicar melhor para vocês.
Suspirei e entrei no consultório sendo seguida por Nicholas. Sentamo-nos nas cadeiras frente à mesa, e Daniel sentou-se também em sua cadeira. Retirou o estetoscópio do pescoço o pousando na mesa, e relaxou ao nos falar:
— Como você me informou no mês passado, a Liz tem histórico de diabetes na família, e conforme os últimos exames, nós estávamos atentos a esta possibilidade.
— O quê? Eu não entendo. – Nick perguntou diretamente a mim.
— O último exame de rotina da Liz, demonstrou que ela estivesse numa possível “pré-diabetes” Nicholas, por isso o Dr. Rhodes e eu temos nos atentado aos sintomas. Entramos com uma dieta mais específica e os cuidados necessários, mas a chance de Liz desenvolver a doença, você sabe...
— Pode me explicar por que eu não soube disso Katharine? – me encarou arrogante.
— Onde você estava no último mês?
— Eu estava em turnê, mas isso significa que você possa esconder de mim este tipo de coisa?
— Eu não escondi nada, controle-se. Eu conversei com os seus pais, e eles pediram para eu não lhe falar até você retornar. Afinal, você não poderia fazer nada e nós não tínhamos um diagnóstico concreto. Porém, na casa da sua família, todos estavam cientes e colaborando no tratamento preventivo. Foi a sua mãe que me deu maior apoio inclusive, já que ela passou pela mesma situação com você.
Minha fala calma e consciente fez com que, Nicholas mais uma vez, percebesse o momento errado de lavar a roupa suja. No fundo, todos nós pensamos em não prejudicá-lo e cuidar da melhor forma de Liz.
— Nicholas. – o médico o chamou o fazendo parar de me encarar: — A Liz está desenvolvendo insuficiência pancreática, ainda no início e nós vamos continuar o tratamento, ok, Katharine? Eu já pedi novos exames e vou reavaliar os resultados para ver se nós tivemos alguma melhora, ou se de fato é um caso progressivo à Diabetes tipo um.
— Não acredito. – Nicholas falou arrasado.
Naquele momento eu o encarei com um zelo que há muito eu não tinha. Ponderei antes de levar a mão ao seu ombro, mas o fiz e recebi um olhar confuso de volta. O Dr. Rhodes continuou falando.
— Não é algo grave, mas também não deve ser ignorado. Você deve saber como é, a Katharine me contou que você tem diabetes tipo um. O que faremos agora é garantir a boa nutrição de Liz como temos feito, porque a falta de algumas vitaminas e o mau funcionamento do pâncreas pode comprometer a saúde de uma forma geral. É importante também, pais, que vocês comecem a estimular a Liz aos hábitos ativos de vida, que ela se movimente e faça algum exercício físico frequente. No geral, Katharine, não vai mudar muita coisa. Continuaremos com os horários de alimentação, e caso haja a necessidade de acordo com o resultado dos novos exames, eu irei prescrever a reposição de algumas enzimas.
— Daniel... – falei diretamente me aproximando mais da mesa: — Me diz, na maneira como ela está... Eu devo começar a me preocupar que a diabetes vai ser inevitável ou ainda podemos reverter isso?
Nicholas que me encarava desde a hora que o soltei e me aproximei da mesa do médico para fazer aquela pergunta, sacudiu levemente a cabeça e prestou atenção ao que seria dito.
— Como eu disse, só diante os novos resultados eu saberei se ela está num quadro reversível da insuficiência, ou se isso já é uma sequela da diabetes.
Suspirei pesadamente olhando para o teto. Denise já havia me contado tudo o que passou com Nicholas na infância. E saber que eu não estaria sozinha com aquela doença que era novidade para mim, apesar de ter sido casada com um diabético, me tranquilizava. Nicholas sempre foi independente com seu tratamento, e tudo o que eu sabia era sobre a necessidade possível de ter que socorrê-lo.
Como Liz era saudável até então, eu não tinha me preocupado em me preparar para aquilo. Aliás, quem faria isso? O que me deixava mais “conformada” era que, Liz desde bebê tivera um estilo de vida saudável, que eu tomei sempre muito cuidado em manter, então o fato de apresentar as suspeitas da doença, já me mostravam que era um fator genético. Por isso, eu não precisaria da resposta dos exames para entender que eu deveria começar a conversar com ela sobre aquilo.
— Katharine, eu sei o que está pensando e acho que você deve realmente, conversar com a Liz e começar a explicar a ela. A consulta com a psicóloga pode ajudar. – disse o Dr. Rhodes sorrindo amigável.
— O que você está pensando? – Nicholas me perguntou incomodado por parecer que tinha muita coisa naquele diálogo que ele não sabia.
— Em explicar para ela o que é a Diabetes e contar que existe a possibilidade dela ter, claro, com toda a pedagogia para uma criança da idade dela.
— Eu também posso te ajudar se quiser.
Dr. Rhodes ofereceu a ajuda, e Nicholas levantou de súbito dizendo colérico:
— Não vai ser preciso, doutor. Eu sou o pai, eu tenho a doença, fui eu quem deixou esse vestígio no DNA da minha filha, eu sei como é receber o diagnóstico, então eu converso com a Liz.
— Nicholas não seja rude, o Daniel só falou que pode auxiliar para explicar os termos clínicos. Ele não disse que vai educar a sua filha no seu lugar, até porque a obrigação é sua. – respondi me levantando tranquila.
Estendi a mão para Rhodes que sorria nada afetado por Nicholas, e caminhamos os três para fora da sala. Antoine estava nos aguardando ansioso com Liz dormindo tranquilamente. Expliquei tudo para meu irmão e Nicholas acariciava a filha.
— Ela vai ficar até quando? – perguntei num canto para Rhodes.
— Eu vou dar a alta dela logo pela manhã, o material para o exame foi coletado. Não vou pedir uma ecografia endoscópica de novo.
— Se for necessário pode fazer, quero que ela faça todos os exames.
Falei preocupada e Rhodes tocou meu ombro sorrindo e me acalmou dizendo:
— Realmente, não é necessário por enquanto, tem menos de dois meses que ela fez estes exames. Fique tranquila. Ela permanece em observação esta madrugada, mas amanhecendo vocês podem ir para casa. Mantenha uma dieta leve com ela, principalmente amanhã devido à crise e assim que os resultados saírem eu te telefono.
— Obrigada Daniel.
Agradeci tocando a mão do médico, que desde que iniciou seus acompanhamentos com minha filha dispensou as formalidades. Nicholas surgiu ao meu lado e o médico o encarou sorrindo.
— Obrigada pelo cuidado com a nossa filha. – ele estendeu a mão ao médico em cumprimento.
Rhodes nos acompanhou até o quarto e se despediu brevemente. Antoine se disponibilizou a ficar para eu ir descansar, mas insisti que ele fosse para casa. Eu acompanharia minha filha aquela noite no hospital, e Nicholas, insistente também decidiu ficar.
Eu estava sentada numa cadeira e recostada à cama dela, observando-a dormir e Nicholas mexia em seu celular sentado à poltrona do outro lado.
— Nicholas, pode ir para casa. Amanhã eu te informo quando sairmos. E sua mãe também chegará cedo.
— Eu não vou te culpar porque eu sei o quanto, a senhora Denise é convincente, Katharine. Mas, por favor, nunca mais me esconda nada sobre a Liz independente se eu serei prejudicado ou não. O maior prejuízo é não acompanhar a vida da minha filha.
Falou a última frase me encarando diretamente e eu concordei pensativa:
— Você está certo, eu deveria ter ido contra o conselho de toda a sua família.
— Minha mãe não tem a obrigação de cuidar dela, eu que sou o pai.
— Sua mãe só quis proteger você e a neta, não seja tão duro.
— Por que não me contou que o médico de Katharine aposentou?
— Qual parte do “você estava em turnê, seus pais assumiram as responsabilidades” você não entendeu?
— É realmente esta a questão?
— Qual seria a outra? – falei já nervosa pela audácia de Nicholas com aquele interrogatório.
— Não acha que você e o médico estão informais demais?
Eu comecei a rir sarcástica.
— Tenha misericórdia, Nicholas Cassano! O que isso tem a ver com a Liz? Aliás, o que isso tem a ver com você?
— Só acho que se você estiver saindo com este cara, eu deveria saber.
— Como é que é? Não me faça rir com este ciúme a esta altura do campeonato, Cassano!
— Não é ciúme, é cautela. Liz vai conviver diretamente com seus futuros namorados.
— Primeiramente tire o nariz de onde não te interessa e a minha vida amorosa não o interessa. Depois, eu não estou num relacionamento com ninguém e, portanto, Liz não será atingida. O contrário de você que não preparou a sua filha para o fato de estar namorando. E se for para levar em consideração o que você está dizendo: certifique-se de ter cuidado nas escolhas das suas namoradas.
— Eu não contei a Liz porque acabei de retornar da turnê. E como você sabe?
— Você se esqueceu de quem você é? Aliás, você se esqueceu de quem sou eu?
— A maníaca de ciúmes. – ele resmungou fazendo meu sangue ferver.
Encarei-o com os olhos marejados de raiva, e a expressão mais decepcionada do mundo. Então Nicholas coçou a nuca e abriu a boca para se desculpar, mas eu o interrompi:
— Não me interessa com quem você fica ou deixa de ficar. O tempo de me preocupar com isso, já acabou. Mas, jamais coloque a sua filha numa disputa pela sua atenção com outra mulher, como fez comigo. Jamais minta como fez comigo. E jamais a julgue como está fazendo comigo.
Levantei-me e discretamente enxuguei os olhos, deixando-o arrependido pelo que disse.
— Fique com ela, por favor.
— Espera Katharine, desculpa. – ele segurou meu punho pedindo baixo.
Soltei-me o ignorando e saí pela porta do quarto. Respirei fundo. Deixei escorrer a lágrima grossa. E caminhei devagar pelo corredor me abraçando para espantar o frio do ar condicionado.
— Está tudo bem?
Ouvi a voz de Daniel Rhodes que passava por mim no corredor com um prontuário em mãos.
— Sim. – falei disfarçando o embargo na voz.
— Eu tenho que ir ver um paciente, mas se quiser conversar pode me aguardar em meu consultório.
Ele falou depois de se aproximar cauteloso. Neguei com a cabeça e sorri me despedindo. O Dr. Rhodes sempre foi muito gentil com Liz e eu.
FLASHBACK
— Olá, bom dia senhoritas. Eu sou o Dr. Rhodes e estarei com vocês a partir de agora. Como você é bonita, Liz!
O médico novo da minha filha entrou ao seu consultório e se abaixou à altura dela para cumprimentá-la.
Liz não se habituava fácil aos médicos, mas aquele em especial, parece tê-la conquistado pelo sorriso. A menina não parecia assustada, talvez porque o Dr. Daniel Rhodes era tão jovem quanto eu. Ele examinou-a, e antes de finalizar a consulta me passou as recomendações, que eu até já sabia.
— Senhorita... Cassano? – ele perguntou e eu apenas neguei com a cabeça.
— Apenas Katharine.
— Tudo bem, Katharine. Aqui no prontuário consta que ela tem histórico de diabetes familiar, correto?
— Sim, o pai dela.
— Eu gostaria que ele viesse na próxima consulta, se possível.
— Não será possível, Dr. Rhodes. Ele é um cantor e está em turnê. E bem... Estamos em processo de divórcio então... Nicholas está ocupado o suficiente. Mas, Denise, minha ex-sogra pode vir.
— Ah claro. Desculpe-me a indelicadeza, eu só pedi porque compreender a situação de saúde dele pode nos manter mais atentos às crises hepáticas de Liz.
Eu sorri automaticamente. O médico não tinha por que saber que Nicholas não viria. Eu ainda estava anestesiada com tudo, mas o importante é que, Daniel Rhodes acompanhou todos aqueles meses. Ele foi um bom confidente para meus dias de revolta pelo divórcio, para meus dias solitários de mãe aflita no corredor do hospital, e para os dias tristes de Liz onde a falta do pai a fazia visitar o hospital com mais frequência do que o necessário.
FIM DO FLASHBACK.
Peguei um copo descartável na parede do corredor em que eu estava escorada, e caminhei ao bebedouro próximo. Meu celular apitou uma mensagem do Dr. Rhodes.
Sorri ao ler o nome da música. Eu conhecia aquela canção e sabia que o gosto peculiar e nostálgico que o médico demonstrava, poderia ser naquele momento confirmado. Dei play no link do vídeo enviado com a mensagem, mas não ouvi a canção toda.
Tocar: Angel By The Wings
Old soul, your wounds they show
(Velha alma, suas feridas estão à mostra)
I know you have never felt so alone
(Eu sei que você nunca se sentiu tão sozinho)
But hold on, head up, be Strong
(Mas aguente, levante a cabeça, seja forte)
Oh hold on, hold on until you hear them come
(Oh, espere, espere até ouvir eles vindo)
Here they come, oh
(Aí vêm eles, oh)
Take an angel by the wings
(Pegue um anjo pelas asas)
Beg her now for anything
(Implore por qualquer coisa agora)
Beg her now for one more day
(Implore agora por mais um dia)
Take an angel by the wings
(Pegue um anjo pelas asas)
Time to tell her everything
(É hora de contá-lo tudo isso)
Ask her for the strength to stay
(Peça-o força para ficar)
You can, you can do anything, anything
(Você pode, você pode fazer qualquer coisa, qualquer coisa...)
Look up, call to the sky
(Olhe para cima, clame aos céus)
Oh, look up and don't ask why, oh
(Oh, olhe para cima e não pergunte por quê, oh)
E depois de ouvir o primeiro trecho da música eu sorri. Então apenas respondi ao médico antes de voltar ao quarto de Liz:
Caminhei para dentro do quarto e Nicholas se levantou da poltrona, e se aproximou de mim, que estava em pé ao lado do leito da nossa filha.
— Katharine...
— Você pode ir Nicholas. – eu o interrompi — Rhodes deve dar alta para ela, logo de manhã.
— Eu não vou. Eu quero ficar aqui.
— Você não tem que pegar voo para nenhum lugar? – falei irônica.
— Eu estou no meu lugar.
Encarei a expressão cansada dele e respirei fundo com a sobrancelha arqueada. Dei as costas a ele e me sentei na outra poltrona de acompanhante. Fechei os olhos evitando enxergar Nicholas.
xxxx
Pela manhã, Joseph estava ali sussurrando algo com o irmão, e eu abri meus olhos, um pouco desnorteada. Percebi o casaco de couro de Nicholas sobre meu tronco, pelo qual eu estava me aquecendo.
— Ei! Acordou! – Joe falou vindo abraçar-me.
— Ei Joe... – correspondi e retirei o casaco pousando-o no braço da poltrona — Com licença um momento.
Eu disse saindo em direção ao banheiro do quarto para lavar o rosto, a boca e me recompor minimamente. Na porta, antes de retornar ao quarto percebi que os irmãos sussurravam ao pé da cama de Liz, e decidi que precisava sair dali e não dar motivos para acharem que eu estivesse ouvindo escondida.
— Bom dia. – falei formal aos dois e me direcionando ao pai da minha filha, perguntei: — Daniel já veio aqui, Nicholas?
— Durante boa parte do tempo. Entrava e observava as duas, como se eu não existisse aqui, e saía.
O tom de voz incomodado dele já estava me irritando logo cedo.
— Refiro-me à previsão de alta médica.
— Não.
— Vou procurar informações com ele. – falei me encaminhando à maçaneta do quarto.
— Ei, Katharine. Eu posso ficar para você. – Joe alertou-me e Nicholas franziu o cenho contrariado.
— Não é preciso, Joe. Obrigada. Eu deixei Alex informado, e ele dá conta de tudo no restaurante em minha ausência. Vocês podem ir, Daniel me garantiu que daria alta para Liz pela manhã.
— Eu vim para render o Nick de qualquer forma, você pode ir também se quiser. – Joe informou e Nicholas de novo o encarou contrariado.
— Tudo bem Joe, eu só vou procurar o Daniel.
— Katharine. – Nicholas alcançou-me chamando por meu nome e iniciando as explicações: — Eu deixei alguns compromissos meio ao avesso ontem, então, eu só preciso sair para resolvê-los.
— Eu já falei desde ontem Nicholas, você não precisava ter ficado. E logo mais, Liz e eu iremos embora, então, pode ir.
Eu falei cansada para Nicholas que me encarou silencioso, mas profundamente.
— Katharine... Não podemos nos tratar com menos frieza?
— Nicholas... Ainda é tudo muito recente para querer que nos tornemos bons amigos, não?
— Não era para termos deixado de ser bons amigos. Era você quem eu procurava no restaurante quando meu mundo ia desabar, lembra? Em que momento nós deixamos de ser quem éramos?
Ele declarou e passou a mão em meu rosto. Saiu dali cabisbaixo e contemplativo. Eu não pude evitar algumas lágrimas que caíram. E caminhei até a recepção da enfermaria. A alta de Liz estava ali, assinada. Retornei ao quarto dela, e enxuguei as poucas lágrimas que haviam deixado rastro. Joe me perguntou se estava tudo bem, e eu apenas desconversei. Ele me fez companhia até Liz acordar e nós três seguirmos cada um para o seu trajeto.