Capítulo 1 - Érina
— Central de atendimento. Érina, boa tarde. Em que posso ajudá-lo?
Foco na tela do computador, agilidade nos dedos e paciência com o cliente. Quando ele te chamar de puta, sorria. Quando ele te mandar ir tomar no cú, sorria um pouco mais. Se ele citar que o seu atendimento é uma merda por falta de sexo — mesmo que isso seja verdade —, apenas respire fundo, ignore os palavrões e continue o atendimento.
Não é isso o que aprendemos na zona de treinamento, mas tenho que admitir que nenhum cliente do banco liga para uma central a fim de dar elogios. Sem contar que os bancos, em sua maioria, não são muito justos com seus clientes.
Já estava perto do meu horário, mas como em muitos momentos, o último cliente da linha tinha vários desabafos para fazer. Como por exemplo, citar que os juros estão grandes do tamanho da minha bunda. E olha que ele nem sabe que eu não tenho bunda. Depois de muito explicar que eu nada podia fazer para diminuir a taxa bancária, o cliente resolveu desistir e desligar o telefone na minha cara. Ótimo. Nada como mais um dia de trabalho.
Computador desligado, cadeira encostada na mesa e bolsa nas mãos. Eu já tinha tudo para ir embora. Meu supervisor, ou chefe se preferir, sempre me oferecia educadamente um café na saída e depois disso, eu ia pra casa.
— Fez um ótimo trabalho hoje, Érina.
— Diz isso todas as tardes. — respondi ao devolver minha xícara na ponta de sua mesa.
Sua mesa fica no começo de todas as baias, de onde ele possa ver cada funcionário como uma águia e manter a ordem de seu reinado. É claro que Denver não é nenhum tirano, e isso ajuda muito.
— É porque tem feito um bom trabalho em todas elas.
— Obrigada. — sorri de um modo cansado, já que ele se surpreenderia com a quantidade de momentos em que pensei me demitir, e, jurei nunca mais atender o telefone.
— Será que hoje tem cinco minutos? — pergunta educado, ajustando os olhos sobre o nariz.
Me sentei à frente de sua mesa, fazendo um “sim” de um modo decepcionado. Mas, tentei a todo custo não transparecer a minha vontade louca de voltar para casa, tirar os sapatos do pé e lavar a minha periquita. Mesmo já estando cansada de bater a gilete no azulejo da parede à toa, hoje era dia de arrancar os pelos da vagina e rezar para que a limpeza tenha valido a pena. Enfim...
— Os rumores já haviam se espalhado, então sabe que logo eu não estarei mais sentado nesta cadeira.
— Ah, sim. Teremos um novo chefe. Me desculpe perguntar, mas o senhor foi demitido?
Ele ampliou o sorriso. Bonito. Como aquele jornalista que costuma ser herói nas horas vagas.
— Valha me Deus Érina, se me chamar de senhor de novo, eu demito você. Mas não, vou trabalhar na coordenadoria.
Eu não sorri. Não sorri de jeito nenhum. Minhas contas são caras e o feijão também. Mas, fiquei muito feliz por ele.
— Me desculpe. E parabéns.
Ele sorriu, sabendo que mesmo brincando eu estava desconfortável.
— Tudo bem, eu vou logo ao assunto. Eu preciso de alguém com comprometimento, esforço e dedicação para deixar nesta mesa. Depois de tempos analisando, eu cheguei à uma conclusão. Com o treinamento certo, você pode ocupar esta cadeira, se quiser.
Eu pisquei aturdida. Chocada. Não consegui abrir a boca e nem pensar. Eu estou recebendo uma promoção? Eu, Érina, promovida?
— Quer um copo d'água? — pergunta educado ao notar que minha alma quase sumiu do meu corpo.
— Porquê eu?
— Olhe ao seu redor, Érina. — eu olhei — A maioria das pessoas derrubam seus telefones, desligam o sistema ou mantém suas linhas ocupadas para não perderem a hora de saída. Você está aqui, e é disso que eu…
Eu não consegui ouvir o término de seu raciocínio. Nossa atenção foi direcionada às muralhas de vidro, agora se despedaçando em mil pedaços. As paredes do edifício se tornaram em mil estilhaços, e a pressão de qualquer coisa que explodiu nos tacou longe. Meu corpo foi arrastado pelo piso frio, assim como o meu chefe. Folhas voaram, telefones caíram e telas de computadores foram ao chão. As luzes do edifício piscaram e algo me disse que a estrutura do lugar estava em perigo.
— Você está bem? — pergunta preocupado, me ajudando a levantar.
Seus óculos quebraram, o susto o fez entrar em estado de alerta, mas o lugar continuava vazio. O único problema, era que o edifício ao lado, no décimo terceiro andar, estava pegando fogo. E podia cair a qualquer momento.
— Vamos, precisamos sair daqui…
Ele deu o primeiro passo me puxando pelo braço, notando que eu ainda estava assustada e o pânico não me deixava mover. Como todo ser humano agindo sem pensar, fizemos a coisa errada. Pegamos o elevador. A porta se abriu e se fechou com uma facilidade imensa. No rádio alguém tentava dizer algo, mas a voz estava ruim. A energia parou e o elevador se quer começou a descer.
— Puta merda, estamos ferrados! — socou a porta, só então percebendo o quanto foi tolo. Fomos, aliás.
Naquele momento eu pensei em tudo o que a minha vida não tinha. Filhos. Quando percebi eu chorava porque ia morrer sem ter filhos. Cachorro. Eu não tenho cachorro. Também chorava porque nunca arranjei alguém para morder minhas almofadas e mijar na roda do meu carro. Espera, eu nem tenho carro!
Pra ajudar, eu ainda moro com meus pais, porque alugar uma casa é caro e comprar é mais ainda. E o sexo? Meu vizinho arrumou uma namorada, me fazendo ver que eu tenho sorte pra canalhas. Quando achei que a coisa estava séria, o filho da mãe sumiu, antes mesmo de eu perder a minha virgindade! Desde então, a seis longos meses, só enchi a cara e paguei mico cantando sertanejo em um karaokê com as amigas do happy hour.
— Fique calma Érina, o socorro já vai chegar.
Quando dei por mim, bati na porta feito uma louca achando que aquilo ia fazer a energia voltar e o milagre se fazer.
— Eu não quero morrer assim! Não, eu não quero!
— Érina! Érina! — Me agarrando pelos braços Denver me pôs junto ao seu peito e tentou me acalmar. — Fique tranquila, a última coisa que precisamos é de um surto de pânico. Fique tranquila. Eu estou aqui, e vou ficar com você até que dê tudo certo. Entendeu?
Quando levantei os olhos, ele tentava sorrir. As lágrimas ainda queimavam a minha bochecha e eu tentei não fazer a velha boca de choro que eu sempre fazia. Chorar educadamente não era comigo. Meus lábios se transformavam em uma vagina do avesso, pois inchavam a saliência rosada e se dobravam de um modo absurdamente explícito. Parecia que eu fiz sexo oral até dar cãibra.
— Tá… — solucei chorona.
Mas ele se penalizou, me olhou por tanto tempo que o choro chegou a sumir. Minha vergonha saiu dos lábios rosados e avermelharam as maçãs de minhas bochechas, e quando dei por mim, meu chefe depositava sua boca na minha. Quando o beijo ia se concretizar, a energia voltou e a porta se abriu, mas nós não paramos o beijo. Ele só foi impedido pelo barulho estrondoso de munição ao ar. Os tiros que vieram da porta pegaram o corpo de Denver em cheio, abriram buracos em sua lateral e respingou sangue em meu rosto enquanto ele caía no chão.
Nossas bocas foram separadas e meu chefe estava sem vida diante dos meus pés. Tudo o que consegui fazer, foi gritar. Gritei de susto, medo ou seja lá qualquer coisa que tenha passado pelas veias de minha garganta.
— Festinha no elevador? — perguntou a imagem do lado de fora.
Diante da porta, alguém de corpo alto, grosso e vedado até os cabelos, apontava uma espécie de arma longa, comprida e silenciosa. Sem nada dizer, ele passou por cima do corpo ao chão e adentrou o elevador, apertando o botão para descer e mantendo minha testa sob sua mira.
— Qual é a dessa? Secretária vadia realizando os fetiches do chefe? — perguntou o homem à minha frente.
Silêncio. Da minha garganta não saia nada. O homem mantinha o rifle e estava pronto para puxar o gatilho a qualquer momento.
— Quem é você? — perguntei baixo, de rosto avermelhado e respingos de sangue por todo o meu uniforme.
Ele não respondeu. O homem monstruosamente grande na minha frente tinha roupas pretas até o topo de sua cabeça, eu não conseguia enxergar nem mesmo os seus olhos, quem dirá os cabelos. O ser humano estava armado até os dentes, vestindo luvas e uma espécie de uniforme muito semelhante aos soldados da nação, mas em preto. Como se ele fosse a versão malvada dos caras bons.
A porta do elevador abriu, e mais dois estavam na porta. Igualmente vestidos como o atirador à minha frente.
Meu destino seria cruel. Eu esperei de tudo nesta vida, até imaginei algumas formas de morrer se eu não conseguisse me casar. Menos levar tiros até o corpo deformar e não poder velar minha imagem de caixão aberto.
— Qual é a sua, cara? Puxa o gatilho. Temos que deixar o lugar limpo! — resmungou um deles ao ver que eu ainda estava viva.
— Eu sei quais são as ordens seu papagaio estúpido, não repita a porra toda pra mim! — retrucou o homem, ainda me mantendo na mira e sem tirar o foco da minha testa.
— Por favor… — implorei com a voz baixa e deixei meus joelhos se dobrarem, abaixei a minha cabeça e fechei os olhos. Apenas esperei ele puxar o gatilho.
— Está esperando o quê, irmão? — comentou o outro.
— Não matamos mulheres. — o homem resmungou.
— Não, o código não permite, mas ele também não permite deixar rastros. Se ela viver, vai abrir a boca. E aí os negócios já era. — Como em uma pressão, a sirene distante de ambulância e polícia soou ao longe. — Ou você atira, ou leva ela daqui. — concluiu um dos rapazes.
Eu ainda continuava do mesmo modo, pensando na vida que eu não tive e como eu ia terminar. Quando apertei os olhos achando que o tiro ia soar, meus braços foram puxados para cima e eu fui obrigada a me levantar. Meus saltos não me ajudavam a correr e para os fundos do estacionamento local eles me levaram. Silenciosamente eu me vi basicamente ser jogada aos fundos de um carro preto, trancafiada com o homem sozinha ao lado da mesma arma que antes estava na minha cabeça. Não me lembro de mais nada, já que perdi os sentidos na primeira curva alucinada que o homem fez, onde a minha testa foi enviada com força contra o vidro blindado e, por fim, a maldita dor me fez apagar.