Capítulo 4
Eu imaginei que o assunto da conversa fosse exclusivamente sobre a forma que eu havia tratado aquele bandido do chefe dele, eu não imaginava que as palavras do meu pai estavam carregadas de desgraça e dor.
— Nós precisamos ter uma conversa séria, Ana.
— Outra? O senhor não cansa de falar sempre a mesma coisa não?
— Essa conversa é diferente, então sugiro que sente e me escute com atenção.
Eu caminhei até a cama e me sentei, e ele sentou ao meu lado com uma tensão que eu nunca tinha visto antes.
— Qual o problema pai?
— Alguma vez na sua vida você já pensou que eu posso morrer a qualquer momento?
— Eu penso nisso todos os dias.
— E esse é o seu desejo?
— É claro que não pai, se eu falo pro senhor abandonar essa vida obscura, é simplesmente por medo de perder você.
— Mas acho que você vai precisar ir se preparando para essa realidade Ana.
— Realidade? Que realidade? Você está falando que realmente irá morrer?
— Recentemente eu descobri que eu tenho leucemia, e o quadro já está bastante avançado, o médico disse que pode tentar a quimioterapia, mas pelo estágio eu só estaria me dando um pouco mais de tempo de vida.
— Não, não, você está bem, eu estou vendo que o senhor está bem, como pode estar doente se eu estou vendo você sem nenhum sintoma?
Ele se levantou e começou a desabotoar a blusa, ele a tirou e eu rapidamente percebi a gravidade da situação, todo o corpo dele estava repleto de manchas roxas, eu coloquei a mão na boca e comecei a chorar.
— Eu achava que isso era por conta das brigas constantes em que eu me meto, você sabe que esse meu trabalho tem muito disso, mas eu fui começando a me sentir muito cansado, e a minha vista começou a ficar turva, e hoje pela manhã o meu nariz sangrou enquanto você estava se arrumando pra ir pra universidade.
— Esses sintomas são iniciais pai, esse médico está errado, existe tratamento, o senhor pode ficar curado, vamos procurar uma segunda opinião.
— Ana, só hoje eu passei por três médicos, eu passei o dia fazendo exames, foi por isso que o Kall atendeu o meu celular.
— Então mesmo sabendo que você pode morrer, mesmo sabendo que eu posso ficar sozinha no mundo, ele veio aqui me ameaçar? Que tipo de monstro esse cara é?
— Ana, se eu morrer, esse cara será o único que poderá proteger você.
— Não, eu não preciso de proteção, e o senhor não vai morrer pai.
As lágrimas se intensificaram e ele tentou me acalentar, mas não existia dor maior do que saber que em breve eu não teria mais aquele abraço.
— Ana, eu vou tentar ficar o máximo de tempo com você, mas quando eu morrer, o Kall será responsável por você.
Eu me afastei dele bruscamente e me levantei inconformada.
— Eu prefiro a morte a ter que conviver com um mafioso, o senhor não pode fazer isso comigo pai, eu não mereço tamanho castigo.
— A decisão já está tomada Ana,eu não vou seguir em paz sabendo que você estará sem proteção.
— Como o senhor quer que eu fique sob os cuidados de um homem que tentou arrancar a minha língua?
— Ele não ia arrancar, ele só queria que você o respeitasse.
— E ele quer o meu respeito tentando me impor medo?
— Ana, eu sei que essa não é a vida que você quer, mas durante esses anos eu fiz muitos inimigos, e mesmo depois da minha morte, eles não irão deixá-la em paz, pois nesse mundo da máfia todos da família se tornam inimigos deles, e o Kall é o homem mais temido entre os mafiosos, estando com ele você ficará segura, então me prometa que você irá respeitar a minha vontade.
— Mas pai…
— Prometa Ana?!
— Tudo bem, eu prometo.
Ele me abraçou forte e eu me permiti desabar mais uma vez, pois se antes era difícil ter esperança de um futuro diferente, tão pouco eu teria depois daquilo.
— Agora vamos jantar, vamos aproveitar melhor nossos momentos juntos.
A comida desceu queimando pela minha garganta, e eu tentei não chorar novamente, mas por dentro eu estava destruída, não era como o sentimento de não ter tido uma mãe, era muito pior, pois eu já conhecia o sentimento de ter um pai, ele não era perfeito, ele era cheio de defeitos, mas era a minha única família, e depois dele partir, eu com toda certeza me afundaria na tristeza.
— Não quero que você se martirize com isso, quero que você continue sendo essa menina forte que sempre foi.
— Não dá pra continuar sendo forte sabendo do futuro que terei pai, agora eu vou pro meu quarto, eu preciso pensar.
Eu me levantei, tomei a benção e segui pro meu quarto pra chorar mais.
Eu já havia pensado em vários futuros diferentes, dos mais trágicos aos mais felizes, mas jamais passou pela minha cabeça ficar sob a guarda de um mafioso.
— Isso só pode ser um pesadelo, quando eu acordar nada disso será real.
Entre soluços o sono me abraçou, mas na verdade o sentimento era de morte.
O dia amanheceu e eu abri os olhos vendo os primeiros reflexos do sol entrando pela minha janela, o meu corpo estava moído e a minha cabeça estava dolorida, eu me mantive na cama e olhei pro teto e voltei a chorar me dando conta que aquela dor era mesmo real.
Eu não tinha vontade de me levantar, na verdade eu não tinha mais nem
vontade de viver.
Eu ouvi batidas na porta, mas lembrei que eu nem cheguei a trancá-la.
— Pode entrar pai.
Ele abriu a porta lentamente e me analisou à distância.
— Você não vai pra universidade hoje?
— Eu quero ficar em casa se o senhor não se importar.
— Ana, você ainda pode realizar sonhos, não é porque ficará sob os cuidados do Kall que você não poderá realizá-los.
— Eu não quero falar sobre isso agora, pai.
— Tudo bem, eu vou pra minha primeira sessão de quimio, me ligue se precisar de algo.
Eu me levantei da cama na mesma hora e o encarei.
— Porque você não me avisou antes? Eu vou com o senhor, eu não vou deixar você passar por isso sozinho.
— Não é necessário que você vá comigo Ana, fique em casa.
— Eu quero ir, por favor.
— Tudo bem, mas se arrume rápido, eu tenho hora marcada.
Eu me levantei, corri para o banheiro, fiz a minha higiene pessoal, me arrumei e entrei no carro onde o meu pai já está esperando com os capangas dele.