A médica
Naquela noite chuvosa, as ruas estavam vazias. Enrico seguiu o homem de capa preta por um longo caminho sem ser notado. Queria ter certeza de que não havia testemunhas à sua volta antes de cumprir a sua missão.
Ele cresceu sabendo que os traidores eram raças da pior espécie e que deveriam ser liquidados o quanto antes. Parado num beco mal iluminado, esperava que o contador chegasse mais perto, nesse ramo a paciência é indispensável. Em um movimento súbito, Enrico passou a corda no pescoço do homem que, instintivamente, lutou para sobreviver.
— Seu traidor de merda! — ele impôs toda a sua força apertando a corda cada vez mais, o homem buscava freneticamente pelo ar sem conseguir se desvencilhar de seu algoz — Vou te ensinar a não se meter com a minha família!
Segurando entre o queixo e a cabeça, ele virou o pescoço do traidor para o lado oposto e quebrou-lhe o pescoço. Enrico soltou o corpo do homem sem vida no chão e cuspiu sobre ele, não satisfeito, desferiu chutes contra o corpo estirado no chão. Abaixou-se e vasculhou a capa até encontrar o livro e um pen drive.
— Hei!
Enrico se virou após guardar os objetos recuperados, viu dois homens vindo em sua direção e então tentou fugir, mas um deles venceu a distância e o agarrou pelo braço. Enrico desferiu uma cotovelada no queixo do homem, fazendo-o perder os sentidos.
— Menos um, — mostrou os dentes alinhados num sorriso branco. — Venha! — Ajeitou a luva preta e enxugou a água da chuva que começava a embaçar a sua visão.
O homem comprido tirou uma faca da cintura e correu para cima de Enrico, ele se esquivou do primeiro golpe, mas segundo, acertou o seu braço esquerdo. Segurando a cabeça do seu rival, chocou o rosto dele contra o joelho e o jogou no chão, a faca caiu longe.
Enrico estava pronto para executá-lo, quando foi surpreendido por uma pancada violenta contra a sua cabeça. Sentiu a visão turva e o corpo pesado, mas sabia que se caísse ali seria o seu fim. Reunindo as poucas forças que tinha, ele cambaleou até um muro baixo que havia ali e pulou com dificuldade.
Do outro lado, o cão que guardava a propriedade rosnou ferozmente ao ver o homem invadir o local, Enrico correu o mais rápido que pôde e, em um último esforço, escalou o portão para o outro lado.
Ao pisar na calçada, conseguiu ainda dar alguns passos até que sua visão escureceu por completo e ele tombou inconsciente no chão molhado pela chuva.
Flashes dos momentos de sua infância pareciam bem claros em sua memória. Havia um lindo sorriso no rosto de sua mãe quando ela o acordava pela manhã para ir à escola. Fazia tempo que não sonhava com a imagem terna e bela.
As pálpebras abriram lentamente e se fecharam. Apesar da visão turva, ele vislumbrou a mulher de cabelos molhados, ela tinha uma aparência que recordava a mãe de Enrico.
— Mamãe — Enrico sussurrou.
— Não se mexa, — a médica ordenou enquanto o homem ferido delirava, — vou cuidar de você!
Lívia arrancou a manga de sua camisa branca e enrolou no braço ensanguentado do homem desconhecido antes de arratá-lo para o carro.
Pelas ruas molhadas, ela estava dirigindo em alta velocidade para socorrer o homem que permanecia inconsciente no banco de trás do veículo. A médica freou bruscamente em frente ao hospital. Seria complicado carregar aquele homem alto e musculoso até uma das salas com materiais de suturas. Pelo inchaço que se formou na cabeça dele, provavelmente, ele teve uma concussão.
Após tirá-lo do carro, ela o arrastou até uma maca com certa dificuldade e conseguiu levá-lo até a sala onde encontraria o material necessário para cuidar daqueles ferimentos. Por um instante, julgou a si mesma por estar sozinha ajudando um homem que nem conhecia.
— O juramento de Hipócrates! — Lembrou-se de sua promessa no dia da cerimônia de formatura. — Cumprir segundo meu poder e minha razão.
Ela respirou profundamente, pegou a tesoura e logo rasgou a manga do blazer para examinar melhor o ferimento no braço ensanguentado.
— Ferimento de facada! — murmurou para si mesma.
Lívia deu início ao procedimento de sutura após a limpeza do ferimento e aplicação de anestesia local. Passou o quinto, e último, fio de seda e então fechou antes de dar o nó. Examinou o inchaço na testa de Enrico, ele fez um muxoxo quando ela pressionou os dedos sobre o hematoma. Precisaria fazer uma tomografia e limpar o pequeno corte no supercílio. Toda aquela agitação a fez lembrar da época em que exercia o trabalho braçal, durante a residência no hospital da Francês.