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Capítulo 3

Daily seguiu seu longo caminho de volta ao povoado Kasenkino. Iniciou correndo, mas logo cansou e voltou a caminhar novamente, em passos largos. Ela foi costeando o rio. O sol já estava alto no céu. Ela não estava muito preocupada com isso, pois sabia que seu pai não estava em casa. Estava na batalha com os demais Kasenkinos. Ela parou e olhou para o outro lado do rio. Aquele lado da floresta era escuro e não havia caminhos abertos em lugar algum. Além das árvores, o mato cobria tudo. Nunca se ouviu falar de alguém daquele lado do rio, nem mesmo outros povos. Todos diziam que lá não havia árvores frutíferas, pouca caça e animais ferozes que rondavam em todos os lugares. Daily se sentou sobre as pedras pequenas e arredondadas que ficavam na margem do rio. Estava cansada e o vestido pesava em seu corpo. Começou a jogar algumas pedras dentro do rio. A correnteza era forte e todos sabiam que era bastante profundo. Ela colocou a mão na água límpida e sentiu uma enorme sensação de frescor. Tirou o vestido quente e pesado e colocou os pés na água refrescante. Sentiu a brisa tocar seu corpo e seu rosto e sentiu aquele véu, que sempre a acompanhava, coçar sua face. Não havia ninguém naquele lugar e a possibilidade de alguém aparecer era quase nula. Ela tirou o véu e colocou-o junto do vestido. Olhou sua imagem refletida em uma poça de água na margem do rio. Passou a mão no seu rosto macio. Seria tão bela quanto sua mãe? Sabia o quanto seu provo se preocupava com a beleza das mulheres e o quanto elas se empenhavam para estarem sempre bonitas. Mas esta beleza também poderia trazer perigo nas atuais circunstâncias. Ela entrou na água e foi nadando devagar para sentir a correnteza. Precisava ver se conseguia atravessar, mas percebeu que era quase impossível. A correnteza conforme ia adentrando ficava cada vez mais forte... Sem contar as enormes pedras que havia no leito. Logo ela precisou voltar às margens e deitou-se sobre as pedras, sentindo-se muito cansada e com os braços doloridos.

Ela fechou os olhos e ouviu o forte barulho da correnteza do rio descendo. Sabia que mais adiante havia uma enorme cachoeira que formava um imenso rio manso. Tinha o sonho de um dia conhecer aquele lugar que ouvira falar, mas nunca conseguira ter coragem para esta aventura. Imaginava a cachoeira de uma forma, mas talvez não fosse daquele jeito. Pensou o quanto ela sabia pouco sobre tudo. Por vezes achava que sabia mais que seu povo, mas ouvindo Moa falar percebeu que não sabia quase nada. Tinha tanto a aprender, tantas coisas a ouvir e tantos lugares para conhecer. Ela tinha certeza de que Moa era o mais sábio dentre os Kasenkinos e também mais forte que Ahua. No entanto ainda assim, mesmo sabendo sobre tudo, ele se apaixonou. E não se importou que o amor trouxesse dor. Nunca pensou que ele, sábio como era, pudesse ter deixado o amor se apossar dele daquela forma. Erone pouco respondia suas perguntas sobre o mundo e tudo mais que ela queria saber. Dizia que sempre que ela era muito jovem, embora se achasse madura o suficiente para saber sobre tudo. Talvez seu pai tivesse razão. Ela não sabia ao certo o que queria... Tinha tantos desejos, tantos sonhos... E nenhuma coragem para realizar nenhum deles. Será que o tempo lhe daria a coragem necessária? Moa dissera que ela tinha pensamentos bons e desejos possíveis. Um dia ela conheceria o Reino de Machia, Terry e a cachoeira. Mas tudo tinha seu tempo e ela acreditava muito nisso. Na hora certa, tudo aconteceria como os deuses queriam. E ela estava preparada para tudo, inclusive para a espera.

Ela vestiu-se novamente, colocou cuidadosamente seu véu cobrindo o rosto e seguiu seu caminho de volta. Estava sentindo fome e parou para comer algumas amoras silvestres. Alternava entre corridas e caminhadas largas. Seu vestido estava imundo. Logo ela entrou na bifurcação que se dividia em dois caminhos: um era o caminho de sempre, seguro e recomendado por seu povo. O outro, um caminho de terra e árvores, com um tronco meio caído, muito próximo ao rio, de onde se podiam ouvir as águas. Diziam que o caminho do tronco era perigoso, por ter animais selvagens que iam beber água no rio e ser caminho de pessoas do reino algumas vezes. Ela deu alguns passos no atalho não recomendado... Mas logo voltou e retornou ao seu trajeto de sempre. Ainda não se sentia preparada para ir para o povoado pelo caminho mais perigoso. Era melhor voltar logo para seu povo. Ela lembrou-se do povo Naiguã. Também não era um povo amistoso, embora não fosse inimigo de morte como o Reino de Machia. Era um povo selvagem e só queriam pedras e ouro. E para isso dizimavam outros povos. Viviam em tribos, seminus e eram conhecidos por abusarem das mulheres depois que matavam os homens nos povoados. Eram bons mercadores e por isso os Kasenkinos tentavam uma boa relação com eles em troca das boas mercadorias, em especial as maquiagens de olhos que só eles tinham, assim como excelentes tiaras de pedras e colares valiosos. Nunca entraram em briga com os Kasenkinos pois sabiam que o povo não tinha muitas pedras preciosas guardadas. Mas por inúmeras vezes invadiram Machia e tentaram roubar, sempre impedidos pela boa guarda do castelo. Ela teve medo que os Kasenkinos tivesse se unido aos Naiguã para atacar o reino de Machia. Não queria mais violência do que já estava previsto. Ela particularmente não gostava nem confiava nos Naiguã. Já presenciara uma luta entre os povos na infância, em que vira seu pai lutar bravamente. Era um povo muito forte, mas também sem escrúpulos. Embora Daily gostasse dos produtos que comercializavam, tinha medo de eles irem à aldeia mais para especularem do que para venderem. No povoado Kasenkino os Naiguã trocavam suas belas peças por verduras e legumes produzidos na horta e algumas especiarias como café e chás. Até quando haveria aquela guerra entre os povos? Seria o mundo tão pequeno para ter espaço para todos os povos? Ela esperava que um dia tudo aquilo acabasse, especialmente entre os Kasenkinos e Machia, que eram povos mais próximos.

Ela chegou logo ao povoado. Estava muito cansada e foi para sua casa. Ainda havia pessoas na rua.

Ela acendeu o lampião e preparou algo para comer. Estava faminta. Logo subiu as escadas e foi para sua cama. Sentia falta do pai em seu lar. O ar fresco da noite entrava pelas frestas e ela sentiu um pouco de frio. Levantou-se para pegar uma pele para cobrir-se. Observou do alto de sua janela a rua. Podia ver todo o povoado dali. Quase todos dentro de suas casas, com seus lampiões acesos e provavelmente solitários como ela, esperando alguém voltar da batalha. Ela estava cansada, mas não tinha sono. Reconheceu Ahua andando e voltou depressa seu corpo para dentro da casa, escondendo-se ao lado da janela. Seu coração bateu mais forte. Não sabia ao certo o motivo, mas temia aquele homem. Algo lhe dizia que os espíritos que conversavam com ele não eram do bem. E depois da conversa com Moa, ela teve mais certeza ainda de que seus pensamentos sobre ele não estavam errados. Ela foi deitar novamente.

Ela levantou-se da cama num salto. Seu coração batia descompassadamente. Se Ahua tivesse virado para trás a teria visto sem o véu. Então, segundo a tradição Kasenkina, teriam que se casar. Ela sentiu um arrepio percorrer seu corpo ao pensar na possibilidade de ser mulher de Ahua.

Ela desceu, fez um chá calmante e logo foi deitar novamente. Depois de muito pensar, rolar pela cama, ela acabou finalmente pegando no sono.

Daily acabou acordando mais tarde do que o normal. Percebeu o sol já no alto. Ser uma Kasenkina sem um marido lhe dava liberdade para fazer o que quisesse durante o dia. Sua única função era cuidar de seu pai e lhe servir. As mulheres casadas cuidavam dos maridos, dos filhos e trabalhavam de dia na horta do povoado. Daily sabia que um dia teria que se casar. E haveria luta se ela tivesse mais de um pretendente. E o que vencesse a luta e matasse o adversário seria o seu marido. Então deveria pedir aos deuses que se um dia se apaixonasse, não houvesse outro homem interessado nela. Então, no dia do casamento, tiraria seu véu para que todos conhecessem seu rosto. E começaria a ser como as outras mulheres: cuidar do marido e ir diariamente para o trabalho na horta. A horta era muito bonita e dela saíam as verduras e legumes frescos, que todos almejavam. Porém os mais bonitos eram reservados para o líder Ahau. O restante era dividido em partes iguais para todos que trabalhavam na colheita. Daily não trabalhava, por isso não tinha direito em usufruir dos produtos que eram cultivados lá. Era um privilégios das famílias constituídas de casais e filhos. Se sua mãe estivesse viva estaria trabalhando na horta, então eles teriam direito nas coisas produzidas lá. Erone era o melhor guerreiro Kasenkino, conhecido em todo o povoado, no entanto ele não tinha nenhum privilégio por isso, nem nos produtos da horta. Moças que ainda não eram casadas não trabalhavam em nenhum lugar pela possibilidade de perderem o véu. A única função que elas tinham era ficar em casa e cuidar da organização da mesma e serem responsáveis pelos cuidados com o seu véu e sua aparência. Precisavam sempre estar com cabelos penteados e adornos que chamassem a atenção. Tiara era item quase obrigatório também, pois chamava a atenção dos homens. Daily se cuidava conforme era necessário, mas achava aquilo ridículo algumas vezes. Alguém precisava se interessar por ela, mas o que ela sentia com relação a esta pessoa pouco importava para o povo. Qualquer descuido com o véu e o rosto ser mostrado antes do casamento levaria a jovem a ser ofertada aos deuses. O marido era o primeiro que deveria ver o rosto da mulher no dia do casamento. Em seguida ela seria mostrada para todos os demais presentes. Quando as meninas começavam a dar os primeiros passos já eram presenteadas com seus primeiros véus. E assim se seguia as tradições, que eram cultuadas de séculos em séculos, sem nunca serem questionadas.

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